domingo, 29 de maio de 2022

De ossos e de câmaras de gás

 

26 no Rio, 21 no Texas. Lá, terra de referência para o faroeste; aqui o sonho de torna-lo. Não à toa, somente de abril de 2019 a abril de 2022 as importações de armas e munições alcançaram crescimento de 145,3% (GGN).

Nos Estados Unidos levantam-se vozes contra o armamentismo, inclusive a do presidente daquele país. No Brasil, não bastasse o silêncio obsequioso dos armamentistas e os panos quentes postos por agentes de mídia que defende tais interesses, o inquilino do Alvorada aplaude publicamente a operação que matou (mais uma vez) na ‘Cidade Maravilhosa’ e avisa que pedirá informações sobre a “câmara de gás” inventada por agentes da Polícia Rodoviária Federal em Sergipe.

No filme “Paraíso” (2016), dirigido por Andrei Konchalovsky, personagem de alta patente, coronel da SS (Helmut, vivido por Christian Clauss), fiscalizando um campo de concentração, revela o que muito o incomodou: o chão se mexendo em razão dos corpos ainda vivos sepultados nas grandes valas tentando escapar da morte que não se consumara sob o zkylon. Uma denúncia – dentre tantas – dos desdobros da tragédia levada pelo nazismo na busca por limpeza étnica e extermínio de povos como o judeu. As câmaras de gás foram a solução final. Asfixiavam milhares diariamente sob a batuta de um insano. Todos lembram de tal instante e de quão trágico e triste memória o foi.

Mas, que dirá o paciente e estimado leitor deste escriba de província diante de cena filmada e que circulou pelas redes de integrantes de uma patrulha da Polícia Rodoviária Federal, em Sergipe que, não satisfeita em deter o abordado, fecha-o no fundo da viatura e nele uma bomba de gás acionada, prendendo com a porta a perna daquele que agoniza (balançando-a na tentativa desesperada de salvar-se), enquanto o gás sufoca o detido?

Não tenhamos que tal comportamento seja política de Estado como o foi o extermínio de povos e etnias preconizado pelo nazismo como solução final. Mas, postura consciente de criminosos travestidos de policiais.

Resta-nos a indignação, porque é inconcebível que tal aconteça no improviso de criminosos a soldo do Estado brasileiro.

Estranha-nos, no caso concreto, apenas o ‘afastamento’ do exercício das funções (certamente as externas) quando deveriam, em razão do flagrante e da comoção causada, serem imediatamente presos em flagrante através de mandado expedido judicialmente.

Somos peremptoriamente contra o uso de armas, a não ser por quem autorizado em razão de sua função institucional (polícias e Forças Armadas). Ainda que registros como Carandiru (São Paulo), Escuderia Le Cock (Espírito Santo), Candelária (Rio de Janeiro), Vila Moisés, no Cabula (Salvador) revelem ações questionáveis e que vão além do exercício institucional da função. Por sinal, gente que sonha com a “excludente de ilicitude” como salvo-conduto.

Não abrimos espaço para argumentações que digam respeito à segurança privada como justificativa. Para nós coisa de outros tempos, primitivos, de quem se utilizava de armas para impor a própria lei.

Partimos do pressuposto de que muito – ou quase tudo – do que há de violência ou agressão (salvo àquelas de natureza patológica) não existiria caso não houvesse o enraizado ‘espírito’ de conquistar e ter, o que desperta a cobiça como finalidade última no âmbito da sociedade contemporânea. E de que tal se materializa sob o cutelo da força.

Por outro lado, também acreditamos que não há mal que não esteja a servir aos interesses dos que o controlam. Sempre alguém ganhando. Uma indagação aqui se impõe, apenas para ilustrar: existiria a comercialização de drogas se alguém não ganhasse dinheiro com elas?

E não se diga que são os traficantes os beneficiados. Até porque ‘traficantes’ são definidos sempre os que estão nas periferias (os destinatários das operações policiais), nunca os que traficam a partir de onde moram: Leblon, Barra, Jardins etc. etc. etc. 

Somos contra qualquer tipo de arma, porque a arma é o instrumento da opressão para corresponder ao interesse do opressor. Razão por que somos contra a guerra em qualquer dimensão.

A propósito, no dominical anterior aventamos em torno de “2001: uma odisseia no espaço”, de Stanley Kubrick. Dele nos vem apoio a este registro, da Aurora do Homem, sob o poema sinfônico “Assim Falou Zaratustra”, de Richard Strauss: a descoberta pelo homem primitivo de um osso (fêmur) que o desperta para utilizá-lo como instrumento de ataque (através do seu uso conquista alimento e território).

Fácil perceber que no mais profundo do inconsciente humano as raízes da violência, manuseada socialmente sob as mais diversas vertentes.

E o mais grave: a indiferença. O que antes nos estarrecia torna-se lugar comum, nenhuma reação compatível. Que o digam candidatos, ministérios públicos etc.

O que dói é perceber que milhões de anos depois – quando nos afirmamos Civilização – avançamos um pouco mais no quesito violência: do osso à câmara de gás improvisada no fundo de um veículo da Polícia Rodoviária Federal.


domingo, 22 de maio de 2022

Entre o sonho e o pesadelo

 

Sonha esculpir, compor, cantar, pintar, fotografar, arquitetar. Expressar o que sente e percebe a mente criativa. Erigir estátuas e monumentos, traduzir a percepção do universo em volta, emitir os sons traduzidos das composições, levar às telas o que lhe aporta, fixar na celulose e no papel as ideias, elevar aos píncaros a expressão dos sonhos, mesmo icáricos.

Também sonha com uma vida melhor para si e para todos. Afinal, iguais em essência.

Mas lhe faltam os recursos para materializar o sonho, vivificar a expressão. E afunda mais e mais no buraco que cava no desvão das impossibilidades.

Assim o homem que está ao nosso lado ou alhures: todo ele sonha e se esvai nas dificuldades que inviabilizam a materialização dos seus sonhos.

Temos, em reiteradas oportunidades, aventado que parte da tragédia que acomete o país encontra origem não necessariamente na classe política em que pese muito de tudo passar por ela quando demanda decisões congressuais  mas na incompreensão por parte de instituições, às quais compete decidir, se omitirem diante de fazê-lo, quando não o fazem deliberada e conscientemente contrariando os interesses gerais.

Como ex-professor de Direito (alcançado pela compulsória ministrando Direito Financeiro e Direito Municipal na Universidade Estadual de Santa Cruz-UESC) somos crítico da forma como as instituições judiciárias se portam diante de fatos concretos, muitos deles de influência decisiva nos destinos da nação.

Não se negue que muitas de suas decisões estão pautadas na conformação ideológica que norteia a origem de muitos, alguns vivenciando típica circunstância de casta (de pai para filho, para neto etc. dentro de uma conformação classista originada da classe dominante), plantados no sistema não necessariamente por seus conhecimentos jurídicos mas para atender e perpetuar interesses.

Mas não tenhamos somente o Judiciário com decisões flagrantemente ideologizadas em defesa do mercado, como bastião de políticas liberais e neoliberais. Órgãos outros, como CADE, Agências reguladoras etc. reproduzem tais interesses.

O que dizer desta decisão do TCU (Tribunal de Contas da União) autorizando a privatização da Eletrobras?

Para embasar seu voto contrário à privatização, o ministro Vital do Rêgo apontou seis supostas irregularidades no processo de desestatização da empresa, desde subavaliação da Itaipu Binacional, assim como manipulação de 30,6 bilhões de reais nos cálculos do endividamento líquido da estatal, passando por mecanismos de intervenção no pagamento de dividendos devidos pela Eletronuclear à Eletrobras.

Todo e qualquer brasileiro não ‘alienado’ aos conceitos do mercado  na contemporaneidade, o Estado mínimo submetido à ditadura do sistema financeiro  sabe que o problema não reside na inconveniência das empresas públicas e sim na gestão patrimonialista a que submetido o Estado desde priscas eras. Para que tal se consuma (o patrimonialismo) a classe dominante elege o congresso e governos que deseja e derruba os que não lhe soem satisfatoriamente.

O discurso contra a “corrupção” o mantra histórico (aqui e acolá), desde Aristófanes (séc. IV a.C.), passando por Cícero (séc. I a.C.) macula a Política (como ciência) a partir do comportamento de parcela dos políticos elevando ao altar a classe dominante que a todos controla como paradigma do ‘bem’ quando, na verdade, todo o ‘mal’ existente daquela deriva, porque lhe é conveniente.

A privatização de empresas estatais é o caminho mais fácil e conveniente para que o mercado adquira (a preço de banana) o que é rentável. Não fora assim, pergunta este escriba de província: alguém já viu algum adquirente de empresas públicas comprar o que dê prejuízo?

Por outro lado, Suas Excelências, detentores das sinecuras do TCU, são indicações político-partidárias. Em meio a elas Ana Arraes, filha do falecido Miguel Arraes, mãe do também falecido Eduardo Campos, lá chegada por arrumações político-partidárias, assim como o baiano Aroldo Cedraz. Uma de propagada escola progressista, outro do carlismo nosso de cada dia. Ambos votaram pela privatização.

A mídia alardeia através dos arautos do mercado (os “cabeças de planilha” de que fala Luiz Nassif) o mundo melhor que se nos afigura no horizonte assim que consumada mais outra privatização. Não fora a propaganda que as sustenta sabe o povo que o horizonte se veste de plúmbeo.

Como noite de pesadelo sufocando nosso sonho!


domingo, 15 de maio de 2022

Tarefa ingrata

 

“É vital o historiador lutar contra a mentira. O historiador não pode inventar nada, e sim revelar o passado que controla o presente às ocultas”. Eric Hobsbawn (1917-2012).

Não precisamos viajar no tempo no viés do corte de Stanley Kubrick (1928-1999) em “2001: uma odisseia no espaço”. Projetemos nosso instante para daqui a um ou dois séculos. Brasil em particular.

Nas tabuinhas de argila chegaram os fatos registrados que traduzem a história dos Sumérios. Não dispomos de meios para afirmar em torno da ‘verdade’ das fontes que vicejaram no Crescente Fértil, mas muito do escrito tem sido confirmado através da Arqueologia. Mas, o que deles sabemos decorre do escrito há 5.000 anos.

Muito diferente daqueles idos, a história que será escrita em futuro não tão distante, pautada o será em estudos acadêmicos, cinema, áudio, vídeo e publicações veiculadas na imprensa contemporânea, materializada a partir do quanto efetivado nesta segunda década do século XXI.

Observando esse fato (o veiculado no presente) poderá o leitor dimensionar a ‘verdade’ levada à História.

Neste quesito o veiculado na imprensa, o que inclui tudo que dela tenha se originado  teremos no Brasil a “verdade” com muito pouco de Verdade. Como a “verdade” que se nos apresenta como história desta terra. A ‘verdade’ que esconde a Verdade. Porque nunca revela o passado que controlou o presente de antanho e o que vivemos. Isso porque muito (ou quase tudo) do veiculado corresponde a uma concentração textual que defende os interesses de uma diminuta parcela da sociedade, que disso se beneficia e para isso a remunera.

Por acaso há quem escreva a Verdade de que o povo deste país continua servido como prato de valia menor na bandeja que chega à mesa da classe dominante expressa em suas distintas castas?

Ao contrário, os crimes cometidos sob a chancela do teorismo econômico a serviço de alguns grupos (prevalente o financeiro) são elevados ao altar do mercado como dogma de fé sabujado pelos meios de comunicação, o povo como cordeiro permanentemente imolado, massificando no desgraçado e vilipendiado com tais políticas como se tudo fosse não só necessário, mas imperativo para que surjam ‘dias melhores’. Que o sacrifício permaneça porque a esperança está logo ali, no próximo programa econômico quando o último não deu certo, não correspondeu ao prometido.

Caro e paciente leitor, como traduzir o atual estágio econômico para este povo sofrido que disputa moedas aqui e ali para ir ao açougue comprar osso (em Itabuna) a 5,00 reais o quilo? Não mais a carne de pescoço, mas osso pura e simplesmente.

Caro e paciente leitor, como justificar que um país autossuficiente em petróleo, extraindo-o do fundo do mar com tecnologia desenvolvida por nós (Petrobras) a custos primários que variam entre 8 e 14 dólares fixe sua política de preços como se importado o fora do Oriente Médio sob preço cartelizado e vinculado aos interesses das petroleiras privadas? Como entender que a imprensa tudo justifique como natural quando a política de preços está sob controle do governo brasileiro, que se põe a serviço do acionista privado como se fora ele o investidor da tecnologia que desenvolvemos?

Caro e paciente leitor, como entender normal a entrega a preço de banana do patrimônio brasileiro, como a privatização da TAG S.A. (R$ 36 bi), construído ao custo do labor e suor do brasileiro comum e venha o governo que dele se desfez a alugar do comprador a utilização do que era seu passando a pagar anualmente 3 bilhões?

Eis a Verdade omitida. Um país aos frangalhos, com poderes se engalfinhando em defesa de si mesmos e muito pouco do que representam como instituições de Estado. Instituições que não se respeitam quando negam valia ao processo histórico-democrático.

Por presunção não temos como perceber razões de alegria, de esperança, de expectativa qualquer que seja quando o país é administrado não em favor de sua gente, de sua população, mas para servir aos que o exploram historicamente.

A fragilidade deste triste país é tal que não se vislumbra qualquer esperança de senti-lo como nação. País que mais e mais se amesquinha acreditando nas ‘verdades’ escritas, com seu povo aprendendo com a mentira diuturna.

E mais fraco se torna quando nem mesmo a decantada democracia que o norteia, mais e mais fragilizada, assiste o noticiário de cada dia insinuando a necessidade de reconhecimento de um poder moderador. Nos moldes daquele imposto pelo Pedro português ao Brasil, em 1824, através do qual ele mesmo, imperador, se tornava a última palavra. A mais pura expressão de absolutismo monárquico que a França lançara às calendas trinta e cinco anos antes.

Na ausência de uma linhagem real autêntica, não bastasse o ensaio de ‘nobres’ que sonham em sê-lo de plantão, eis que as forças armadas (através de parcela de seus arautos do caos) anunciadas como o legítimo poder moderador.

Para exercê-lo  à mingua de um reino ou império  até mesmo ditadura serve.

E tudo se apresenta sob o acovardado dos que registram o instante, omissos como o são diante do esgarçamento social e da desigualdade mais e mais aprofundada nestes últimos tempos...

Certamente será  com olhar que lhes chegue da atualidade  muito ingrata a tarefa dos historiadores de escreverem o país no futuro a partir do que dizem dele no presente!

Gostaríamos que a escrita de hoje, que registrará a história amanhã, fosse compreendida sob o viés da Verdade, porque quem a escreve está fazendo história.

Para tanto, nada mais compreender que é vital também o jornalismo lutar contra a mentira

 

domingo, 8 de maio de 2022

Síndrome de elefantes em busca do horizonte

 

Trazemos ao terreiro da pessoalidade tanto do que por aí há de gente, de sonhos, de pesadelos. Quando visitamos contemporâneos na idade percebemos que, de certa forma, há em nós uma unidade de conclusões em torno da vida, de vocação a destinos muitos não ansiados e impostos como missão definitiva e inexorável.

Estivemos com um destes anjos lançados à Terra, também escritor, caráter singular. Acolheu-nos com carinho e gentileza como se diante de membro da realeza britânica. E nos disse que partia para Minas, passar uns tempos. – "Minas não há mais", caríssimo  já o dizia Carlos Drummond de Andrade. Mas, pelo menos  para ele, confessou  longe estaria durante o tempo em que lá permanecer daquilo que o leva a fugar desta Bahia de todos nós.

Tergiversamos em torno de muita coisa, como aproveitando o tempo que nos restava ali ou  a bem da verdade  o que efetivamente nos reste, enquanto permitido. 

Deixei-o tardezinha, com saudade de um papo de corpo presente enquanto pelas Gerais estiver, até porque não desenvolvemos virtudes como a telepatia ou a telecinesia para levar o prosear sob a égide da cevada ou do malte.

Chegando em casa folheei alguns textos de variadas obras suas buscando razões para deixar o centro de sua razão de escrever. Nada que nos convencesse, tanto o orgulho e a vaidade registrada.

Olhando em volta deixamos de lado as nuvens e pisando no chão rochoso da existência sentimos um vazio tipo não-sei-de-quê a nos chamar com um psiu quase inaudível. Atendemos ao chamado, fundamos cabeça no travesseiro e lançamos os pensares rumo ao horizonte. Em algum lugar-nenhum nos foi mostrado um cemitério de elefantes. Contestamos o exibido, afirmando tratar-se de mito africano, nada mais. Por lá dizem que os elefantes quando pressentem o fim da existência se deslocam para se finarem solitários, como a não pretender dar trabalho a quem quer que seja, como costumamos cobrando ladainhas e quejandos naturais à espécie, como sói ocorrer com a humana.

Sim, bem poderia ser isso! O dileto amigo muito provável que estivesse vivendo um instante de elefante em fim de vida. Mas, muito diversamente, não a buscar um cemitério alheio para nele lhe lançarem o corpo inerte, mas  invertendo a mítica  para escapar de um cemitério mais aprisionador que aquele aonde alguns palmos de fundura, largura e altura acolhe em definitivo o que aqui fomos, precedido do direito de substituir o registro de nascimento pelo de óbito.

Sim, afinal nós, sapien sapiens, certamente aprendemos com o que vemos e ouvimos, dispondo da capacidade de refletir em torno e de reformular conceitos e fundamentos. Talvez, sem o perceber que versamos, concluímos por ensaiar o mito dos elefantes não ao perceber a morte, mas a ausência de sentido para continuar existindo naquele lugar do qual nunca imaginamos um dia deixar, o que durante anos anteriores buscaríamos para viver últimos dias, como afirmávamos em rodas e tertúlias, um tanto casimirianos sem Abreu, mas muito de retomar folguedos e piculas da infância.

Natural, assim, que de visibilizarmos as evidencias de um conjunto de sinais passíveis de despertar insegurança e incerteza em relação ao imediato escapar nos soa como melhor saída.

Mas algo está a nos espantar. Muito certamente a certeza de que não nos falta só quem nos compreenda ou nos interprete, mas o horizonte.

Tanto que, quando vivenciando esta síndrome de elefantes em busca do horizonte corremos para Minas, ainda que a dos versos de Drummond.


domingo, 1 de maio de 2022

O Creador desmoralizado pela criatura

 

Apegamo-nos neste instante textual em não reconhecer o que a contemporânea tradução dicionária entende como sinonímia plena e leva a constituir como única fonte verbal ‘criar’ para corresponder ao ‘creare’ do Latim, expressão de manifestação da essência absoluta, origem de tudo (Deus) e aquela que representa o originado da existência para outra existência. Compreender que, ainda que haja homens geniais, capazes de ‘crear’ pela abstração das ideias e conclusões não detêm eles a ‘essência’ de se constituírem origem de tudo.

Assim, Deus  origem e essência primordial é o ‘Creador’ do universo e de tudo o que nele há e o homem Sua mais expressiva criatura que, enquanto tal, “cria” no plano da existência que dela se origina: cria (cuida de) animais, cria (inventa) mecanismos e utilidades, cria (cozinha) pratos etc.

A quem atente tratar de uma relação entre o Ser do qual tudo se origina e aqueloutro dele originado melhor fará nominando o primeiro de creador e o segundo de criatura (capaz de criar nos limites de sua existência derivada).

No entanto, a ideia de fonte primeva, fonte de algo que dela se origina encontra no contemporâneo entendimento léxico o verbo criar para a tudo corresponder. Mas, há de ser entendido, sob o que aqui pretendemos, a dimensão deífica posta adiante como razão de existência.

Dito isso o que estimula a digressão para justificar o título reside no fato de  ainda que no plano da existência para a existência  existirem típicas figuras ou elementos que derivam da iniciativa ou postura de outro e que configuram a ideia do ‘crear’ em contraposição à criatura. Ainda que possa, de forma simplista, ser entendida a criatura como um objeto resultante da ‘criação’ no plano da existência, como nesta contemporaneidade de típica ‘creação’, que se dá por força do convencimento amparado na comunicação exaurida na repetição em torno de um determinado tema levando o homem comum a consumir, acreditar na ‘verdade’ transmitida, reconhecer valores que não o são etc. etc.

Ocupou parte do recente noticiário o fato de efetivação de um enfrentamento envolvendo instituições do Estado brasileiro, representadas no Poder Judiciário e do representante do Poder Executivo, em que uma decisão oriunda daquela foi questionada, com foros de impugnação, pelo titular da segunda. Como sabido, o atual inquilino do Alvorada, insatisfeito com uma sentença condenatória em relação a alguém próximo, utilizou-se de poder da graça ou indulto para fazer desaparecer a decisão (e seus efeitos), prolatada pelo STF.

Sobre o tema já tratamos dele sob outro ângulo (aqui). Mas ora nos atemos ao fato singular sob o prisma que abre este texto (“creador” e “criatura”; “crear” e “criar”), razão por que vemos no fato ou novela uma singularidade: quem hoje enfrenta o STF nada mais é aquele que foi (ainda que não diretamente) posto no alto cargo da nação por quem inviabilizou uma candidatura que fatal e irreversivelmente o derrotaria. Que, não fora a atuação consciente da Corte, muito provavelmente não teria alcançado o sucesso que veio a obter.

Nesse torreão uma sequência de atos concretos, elaborados e postos em prática através de seus membros (individual ou colegiadamente) o STF inviabilizou a candidatura imbatível do ex-presidente Lula em 2018, mesmo chegando ao absurdo de impedir sua manifestação de opinião em entrevistas ou de apoio ao candidato do partido, com decisão da lavra do ministro Luiz Fux (aquele do escândalo do título de Capitalização de Sílvio Santos, quando então relator da matéria no STJ) que cuidou de aplicar uma típica ‘lei do silêncio’ inexistente no ordenamento jurídico pátrio.

Tudo começa, ainda antes do impeachment (sem crime) contra a presidente Dilma Rousseff, quando o ministro Gilmar Mendes interferiu na nomeação do ex-presidente Lula para a Casa Civil e ‘desnomeou-o’. Em andamento um processo que se voltava para apurar atos de corrupção (histórica) na Petrobrás e das investidas do juiz Sérgio Moro contra o ex-presidente Lula (tudo hoje desfeito e demonstrado que não passava de uso judiciário para obter resultados político-eleitorais envolvendo o ex-presidente, hoje até mesmo declarado perseguido pelo magistrado como o diz decisão da Comissão de Direitos Humanos da ONU). Em apoio ao pretendido  e como não havia tempo para que uma sentença transitasse em julgado para produzir efeitos para 2018  o ‘creador’ STF de logo entendeu que a condenação em 2ª instância (julgamento por um tribunal regional) justificaria a prisão, ainda que tal decisão violasse frontalmente a Constituição da República.

Na ameaça de instauração do processo de impeachment ‘acreditou’ a então presidente Dilma Rousseff que vivia dentro de um Estado Democrático de Direito, aonde o respeito à lei é sustentação primacial, impetrou Mandado de Segurança junto ao STF denunciando a inexistência de crime de responsabilidade e, portanto, de justa causa para o processo legislativo de impeachment. A ministra Rosa Weber, do STF, simplesmente se negou a se manifestar no prazo que a lei lhe determinava (de 48 horas), fazendo-o cerca de quatro anos depois quando o Mandado de Segurança perdera o objeto, uma vez que o impeachment se consumara, como preconizado no diálogo de Sérgio Machado e Romero Jucá: “...com Supremo, com tudo”.

No curso da Lava jato, no particular de Lula os atos arbitrários determinados por Moro (incluindo uma condução coercitiva, busca e apreensão no imóvel particular do ex-presidente, inclusive de um celular do neto (criança de tenra idade) tudo foi legitimado pelo STF.

Quando questionado o STF sobre a incompetência da justiça de Curitiba para julgar o ex-presidente (fato comprovado interna e externamente) o ministro Edson Fachin cuidou também de ‘sentar no processo’ somente reconhecendo-a quatro anos depois.

Cuidando o Poder Judiciário, capitaneado pelo STF, de pedregulhar e esburacar a estrada por onde pretendia passar o ex-presidente nada mais fez que pavimentar o caminho largo e cada vez mais alargado para eleger o atual inquilino do Alvorada, sua mais perfeita criatura.

A reação do presidente contra a decisão do STF tecnicamente é estapafúrdia diante das razões fáticas, materializando vontade própria de enfrentar a decisão do STF. Uma postura que não fica no plano do enfrentamento em si, mas da plena desmoralização do STF (poder judicante) como Poder da República ao ser enfrentado por outro Poder, o Executivo (não judicante).

Considerando o fato concreto de que a não participação de Lula como candidato nas eleições de 2018 viabilizou a eleição do atual inquilino do Alvorada àquela circunstância há de ser atribuída a sua vitória e não o que teria levado de propostas para o país durante a campanha, até mesmo porque se negou a participar de todo e qualquer debate em torno de projetos e propostas.

Por mais singular que possa parecer a atuação do Poder Judiciário, capitaneado por ações e omissões deliberadas a partir do STF, afastou do processo e do debate eleitoral o então imbatível candidato e escancarou a corrida para a eleição do atual mandatário, levado pela mão de Suas Excelências. Para tanto cumpriu até ‘ordem unida’ de general para que não julgasse habeas corpus em favor de Lula.

Exagero que possa parecer, a verdade crua e nua é esta: quem garantiu o resultado eleitoral em favor do atual inquilino do Alvorada foi o Supremo Tribunal Federal e a desmoralização impingida a ele (expressão máxima do Poder Judiciário) pelo presidente da república nada mais é do que a criatura se voltando contra o creador.