domingo, 31 de outubro de 2021

Outubros

 

Insistimos no tema como alerta. Porque é imperioso superar a tragédia iminente. E à luz da história recente somente a ocupação do poder permitirá uma retomada dos propósitos sadios para com a nação e seu povo.

No entanto, muito mais que superá-la é construir de forma sólida a retomada das políticas públicas que nos façam, como sociedade, enfrentar com ações concretas e efetivas a causa de tudo. Carecemos de identificar de imediato o verdadeiro adversário, razão de tudo que nos acomete, para que não caminhemos céleres para viver uma vitória de Pirro.

Não podemos apenas concentrar a esperança através de um projeto que desvia a atenção da causa. Impõe-se reconhecê-la de logo. Para que o saiba a maioria do povo e se integre ao projeto como agente ativo, para que compreenda e não apenas aventure. E fazê-lo sob a égide da radicalidade se preciso. Não do enfrentamento físico, mas do chamamento a compreender a realidade que tudo ‘causa’.

“Fora” atinge um indivíduo (no caso concreto, pau mandado dos interesses espúrios em relação ao país); não vemos empenho e consciência em torno do ‘fora a causa de tudo’.

“A causa de tudo” estampa através do fantoche o descaso que levou o Brasil à insignificância no concerto das nações. Enquanto entrega o que resta do patrimônio público aprofunda a fome e a miséria, eleva aos píncaros (para garantia de lucros) o preço de combustíveis e do gás de cozinha; cria um ‘teto de gastos’ para que mais assegurada esteja a remuneração do capital especulativo que sustenta a poupança nacional, ápice da teoria da dependência.

E a passividade se torna lugar comum. Porque “fora” se concentra naquele fantoche e dilui/desvia a energia que deveria ser destinada à “causa”.

A dura realidade da fome volta a se materializar depois de um período em que políticas efetivas de distribuição de renda e geração de empregos fizeram o país ser reconhecido como fora do triste mapa. No imediato deste genocídio invisibilizado (pela morte lenta de quem a vivencia e pela omissão em reconhecê-la a grande imprensa) um programa de sucesso absoluto e reconhecido internacionalmente como exemplo acaba de ser levado ao túmulo.

As informações dão conta de que cerca de 22 milhões deixarão de participar do novo sistema trazido pelo governo.

Finou-se o Bolsa Família em plenitude e o novo programa não absorve os que por ele eram assistidos com o mínimo possível. Anuncia-se um outro com valor que não alcança o Bolsa Família corrigido pela inflação que nos assola e que existirá tão somente até o final de 2022. Ou seja, mata-se o jovem Bolsa Família antes dos vinte anos, que tornava a vida mais segura, e arrebanha-se parte dos sobreviventes até o final da eleição presidencial. Depois disso, nem Bolsa Família afirme-se que haverá.

A cada doze meses um outubro, a cada século cem; a cada milênio, mil. Teimoso como calendário.

A sub-raça do Nordeste de antanho antevista por Josué de Castro (1908-1974) vivenciando ali a geopolítica e a geografia da fome, poemada por João Cabral de Melo Neto (1920-1999) na compreensão de “um pouco por dia”, tende a ocupar o território brasileiro em dimensão apocalíptica.

O retardamento mental oriundo da ausência proteica parecia página virada. Não mais é.

Ainda que não mais seja a desnutrição o instrumento da apatia, mas a alienação pela informação, vivemos um singular outubro em 2021 prenunciando o de 2022. Hoje, as pesquisas o afirmam, um candidato estaria vitorioso – em primeiro ou segundo turno.

Neste outubro ‘véspera de Finados’ há esperança no outubro ‘véspera de Natal’.

Que o compreendam os desassistidos e o percebam quão distintos podem ser os outubros. E como podemos refazer a leitura de Duke.


domingo, 24 de outubro de 2021

A arma do crime

 

O então Procurador-Geral da República de José Sarney, Sepúlveda Pertence, entusiasta dos avanços que inovaram em nível de competências, novas atribuições, liberdade de ação e poder do Ministério Público na elaboração da Constituição de 1988 (dos quais participou concretamente), confessou, no imediato: “Criei um monstro”.

Da ideia inicial de desatrelar a instituição do Poder Executivo surgiu o que aí está.

Cremos que o atrelamento puro e simples do MP ao Poder Executivo não se configura como exemplo de dignificação da instituição, mas daí ao precedente de exercício arbitrário dos poderes a distância é de anos-luz. E vemos como 'exercício arbitrário' uma infinidade de práticas denunciadas não tão à sorrelfa.

As mudanças trazidas no bojo da Constituição tornaram o MP brasileiro uma instituição sem paralelo no mundo (BBC News). O que aí está alcançou status que não possuía antes: de ser não mais órgão, mas parte do sistema de poder (com autonomia administrativa, independência, equiparação aos membros do Poder Judiciário).

Daí nada faltou  assim o vemos para posteriormente aliar-se ao raciocínio que se sustenta no ‘eu posso’, ‘eu acho’, ‘eu faço’.

A vocação do “eu detenho o poder” marca este país de São Saruê. Do vetusto inspetor de quarteirão ao delegado calça-curta em tempos pretéritos. Hoje, do guarda de trânsito (que passou a guardião da multa!) ao chefe deste ou daquele, disto ou daquilo.

Sapiente conquista da Civilização: o poder sem controle é um câncer para a sociedade, caminho para a tirania. Incompatível com o conceito de Democracia. Razão por que o controle social sobre os Poderes se impõe como conquista civilizatória. O controle social é um freio para que desmandos sejam evitados, inclusive que possam representar limitações à capacidade intelectual de exercício da função.

Este controle social deve pautar-se na imperiosa necessidade de evitar que o ‘espírito de corpo’ dos pares seja a tônica, como ocorre no atual sistema.

Fatos vivenciados na história recente demonstram o quão temerário se tornou o ‘monstro’.

Mas. aquele ‘monstro’ de que falava Sepúlveda Pertence está em regozijo diante da derrota congressual de projeto de Emenda Constitucional que tentou ampliar à sociedade parcela do controle do Ministério Público. Não nos importa a dimensão tentada, tampouco se efeito razoável causaria. Nos atemos ao fato de que surgira uma vertente de pensamento que se voltava para reduzir a autonomia e a independência do ‘monstro’ criado no bojo da Constituição de 1988, que sucumbiu por falta de votos no plenário. Inclusive gente à esquerda votou com o ‘monstro’ (247).

Mas, concluamos a pretensão maior deste dominical. Para tanto, de plano esqueçamos os crimes cometidos por membros do Ministério Público, de Procuradores da República a figuras menores. Até porque não são eles maioria nas instituições a que pertencem, apenas parte delas exercitando humores político-partidário-eleitorais e mesmo tentando criar ‘fundos’ para garantir sinecuras, haja vista a tentativa de ‘controlar’ alguns bilhões de dólares ou reais de recursos públicos para uma fundação inteiramente atípica, como o pretendeu a ‘república’ de Curitiba.

Fiquemos, portanto, com aquele viés mais simplista, aparentemente: o do ‘achar’ etc.

Em maio de 2020 o fato ocupou as manchetes: mulher (negra) vítima de violência policial no bairro de Parelheiros, em São Paulo. A cena que chocou a todos (no imediato um caso ocorrido nos EEUU, quando um policial exercitando idêntica prática matou um homem, também negro) encontrou reações de indignação (inclusive do Governador de São Paulo): um policial pisa no pescoço da mulher, que já se encontra imobilizada.

A vítima diz ter ‘sofrido’ uma rasteira, ‘desmaiado três vezes’ e deu entrada no hospital com ferimentos no rosto, nas costas e com a perna quebrada.

A Justiça Militar aceitou denúncia contra os policiais por reconhecer que a versão levada por eles à Delegacia estava eivada de mentiras. Tornaram-se réus incursos nas penas por lesão corporal, abuso de autoridade, falsidade ideológica e inobservância de regulamento" (247).

Mas... mas pasme o paciente e estimado leitor diante do contido na matéria acima disponibilizada.

A promotora de Justiça Flávia Lias Sgobi, do MP paulista, “achou” outras coisas e aquela que era vítima (assim reconhecida até pela Justiça Militar) tornou-se acusada dos crimes de infração de medida sanitária preventiva, desacato, resistência e lesão corporal.

O “eu acho” está configurado no fato de que a ilustríssima senhora deve ter se pautado para encontrar ‘sua’ verdade naquele inquérito que a Justiça Militar afirma ser fruto de ‘mentiras” dos policiais.

Não há informação de que policial haja recebido rasteira, tenha oferecido resistência ou sido melado de merda pela mulher pisoteada, tampouco quebrado a perna ou ferido no rosto

Nada a comentar. Apenas acrescentar: esqueceu ‘sua excelência’ (com minúscula, revisor!) de citar aquela que nos parece a principal arma do crime — o pescoço da negra. Que deve ser causa de ‘lesão corporal’ na botina do policial.


domingo, 17 de outubro de 2021

Sisyphus Brasiliensis

 

Nunca nos furtamos a observar os fatos atuais à luz de uma visão histórica. Desta forma  ainda que não pretendamos ver nos repetidos necessariamente uma ‘farsa’  temos na reflexão a condição de reconhecê-los e com eles aprender.

No breve e superficial vasculhar nestes últimos 100 anos de Brasil temos como marco inicial o governo de Artur Bernardes (1875-1955), político mineiro (vereador, deputado federal, secretário de estado em Minas Gerais, senador) que se elege presidente (assim denominada a governadoria na época) de Minas Gerais de 1918 a 1922 e que assumirá a presidência da república de 1922 a 1926.

Seu período foi marcado por fatos significantes como o movimento tenentista (desde a revolta do Forte de Copacabana, em julho de 1921  quando aguardava a posse, em novembro  à Coluna Prestes, de 1924 a 1927), uma guerra civil no Rio Grande do Sul, a Revolta Paulista (1924). Não à toa governou praticamente sob estado de sítio, decretado para controle das tensões.

Ao tempo de governo deslanchou a siderurgia em Minas Gerais e a Escola Superior de Agricultura e Veterinária de Viçosa. Defendeu o controle dos recursos minerais pelo Brasil e ideologicamente integra o torreão de nacionalistas. Na política externa marcou posição contra a Liga das Nações, dela afastando o país em 1926.

O apanhado acima pode ser encontrado na Wikipédia. O que ali não encontramos é a razão por que retirou o Brasil da Liga das Nações (a ONU de seu tempo). Cremos que tal fato esteja vinculado a não haver se curvado aos interesses da Inglaterra que, através da Comissão Inglesa (o FMI de então), exigia do governo brasileiro a privatização do Lloyd Brasileiro, Central do Brasil, Banco do Brasil e estatais outras como ‘joias da coroa’ a serem doadas ao setor privado internacional.

A ascensão de Washington Luís, Getúlio Vargas, Eurico Gaspar Dutra, Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros, João Goulart, os impostos pela ditadura militar, José Sarney, Collor de Melo, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Luís Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff e os que lhe sucedem por força do golpe de 2016 e da eleição de 2018, podem ser divididos entre compromissos históricos que materializam uma vocação nacionalista ou a ela contrária.

Basta que situemos, mesmo en passant, as legislações sociais (CLT, salário mínimo, previdência e saúde pública), a descoberta e nacionalização do petróleo, a Petrobras (sem esquecer das descobertas do pré-sal recentemente), Volta Redonda, a Refinaria Landulfo Alves, a Eletrobras, a Nuclebras, a indústria naval, a indústria metalúrgica, a automobilística e a aeronáutica (Embraer) etc.  

Estamos no limiar de uma eleição presidencial em que o centro da disputa está norteado pelos mesmo conflitos ideológicos de um século atrás. Mais acentuadamente porque não mais em disputa o Lloyd Brasileiro, a Central do Brasil, as estatais e o Banco do Brasil. Mais, muito mais... além do que já foi transferido para a iniciativa privada a troco de tostões.

A leitura histórica demonstra, caso somemos os períodos nacionalistas ou próximos dele, cerca de pouco mais de seis décadas de hercúleas batalhas em defesa e conquista de políticas públicas nacionalistas vitoriosas e em curtíssimos períodos a adulteração ou destruição destas conquistas no quesito controle brasileiro das riquezas que detém.

Temos, mesmo que não aprofundadamente em alguns casos, reiterado críticas à falta de compreensão desta realidade por parte de setores nacionalistas encastelados à esquerda. Um pecado que atinge igual pensamento mundo a fora, como observa o jurista e filósofo Alysson Mascaro (TV 247).

Apenas para não esquecer em torno de manifestações mais recentes deste escriba de província (aqui e aqui) destacamos:

Mas, eis, para este escriba de província, o busílis: FHC votando em Lula. Ele, pensador/servidor mor do mercado, arauto do neoliberalismo predador, custeado pela Fundação Ford desde que adjutorou aquela teoria da dependência, paternidade maior da entrega do patrimônio nacional, que não fala o que o ‘patrão’ não queira, sinalizando acompanhar petralhas e comunistas de plantão.

Isto o que muito preocupa este escriba: vencer eleição sem vitória para o povo. Naturalmente as políticas de governo petistas traduzem melhor as políticas de Estado. E não faltam a Lula capacidade e inteligência (como o fez no tempo em que governou) para entregar os dedos (agradar o mercado) para não perder os anéis (reduzir desigualdades, aplacar a fome, oferecer emprego etc.).

Mas, alguma certeza de reversão da criminosa entrega do patrimônio do povo? Particularmente não cremos que tal ocorra.

Quando FHC, oráculo do entreguismo, fala em votar em Lula alguma coisa sabe.

________

 “Por enxergar detalhes tais — como já escrevemos recentemente — só acreditamos na candidatura de Lula se houver por parte dele garantia para o mercado/classe dominante (que se apropriou do país recentemente) de que não haverá ‘quebra de contrato’. Ou seja, o que fizeram/compraram/espoliaram/queimaram será respeitado.”

Premonição, parece o que escrevemos, quando lemos declarações do ex-ministro Celso Amorim ao 247 em torno de um pacto com a classe dominante para assegurar a eleição e a posse de Lula, caso vencedor em 2022.

Disse o que querem ouvir. Certamente sua fala não é pessoal. Ex-chanceler, homem respeitado no Itamaraty, seu papel é de porta voz entre um e outro lado.

Não sabemos se (nos) convence, mas o ‘pacto’ está anunciado.

 

“É importante que o Lula ganhe e que ele tenha uma base ampla, como ele teve no passado. Alguns que faziam parte do governo do presidente Lula tinham fortunas e backgrounds ligados a outras classes sociais, mas ele jamais deixou de se preocupar com a integração dos pobres na sociedade, colocar os pobres no Orçamento, como ele sempre diz, e, de fato, produzir avanços notáveis, como, por exemplo, o salário mínimo e as cotas”

O novo governo petista, portanto, não deverá ser neoliberal, nem socialista. Neoliberal não, mas não acho que haverá uma revolução socialista. Inevitavelmente, alguma pactuação haverá com os empresários que estejam dispostos a investir no Brasil, com os empresários estrangeiros que estejam dispostos a se desenvolver aqui, como aconteceu no passado com a indústria naval e com a indústria automobilística”.

Reconhecemos a imperiosa necessidade de retirar do regime(!) de fome os 10% que hoje dela padecem e outros milhões a caminho do precipício.

Louvado, que o seja. Afinal, continuar no projeto(?) em andamento nada mais será que a condenação à eternização da miséria. Mas, o sonho de ver o Brasil retomar parte do que lhe foi retirado/roubado recentemente... fica para outro milênio.

Mas, cremos (quando não queríamos) que continuaremos a vivenciar a ilusão da esquerda pactuando com a burguesia como pontua Breno Altman, também no 247. Uma esquerda que peca pelo mesmos vícios que acomete a mundial (com raríssimas exceções).

Afastar a perversidade instalada como políticas de Estado será um grande e significativo passo.

Certamente a única saída que resta: Sísifo convencer com o pacto anunciado.

Ultrapassada a mítica fica a indagação: aprenderá a lição? Teremos condições de entender Mascaro? Ou somente nos bastará participar do embate (e vencê-lo para ocupar o poder por um novo curto tempo histórico), alimentando a próxima vitória da classe dominante?

Não se afirme  como ao Sísifo enviado por Zeus ao Hades e lá submetido ao castigo por toda a eternidade  que a labuta do Sisyphus brasiliensis (a versão tupiniquim do mito) esteja fadada ao fracasso. Seria exacerbação pessimista e negação à Esperança que resta ao brasileiro em geral. Mas não deixa de ser um esforço longo e repetitivo.

A História é quem o afirma!


domingo, 10 de outubro de 2021

Nem dos escândalos podemos rir!

 

Em entrevista concedida à revista Carta Capital a médica Ana Cláudia Quintana Arantes fala do descaso do ensino médico em relação ao denominado “cuidado paliativo”, instrumento de que deve se valer o profissional da área de saúde não para agir conforme a ‘cultura da doença’, mas para ver no paciente tido como terminal uma vida sendo ‘cuidada’ e reconhecida como tal.

“As pessoas no Brasil não morrem de câncer, elas morrem de dor. E elas não poderão nem gritar, pois vão enfiar um tubo na garganta delas” diz a Dra. Ana Cláudia.

A observação, cruel em si, parece-nos chamar a atenção para o fato de que a “cultura da doença” em nosso país não se limita aos nosocômios de todas as espécies, mas à unificação de sua índole como mantra que alimenta a realidade pátria em todos os segmentos da sociedade, públicos e privados.

Nesta terra brasilis uma semana que se finda sempre se assemelha ao começo da anterior. Mudam-se os números, a forma, as cores da foto, mas os fatos são constantes e assumem uma dimensão de perenidade a ponto de anestesiar a compreensão de que ocorrem tão teimosamente acostumados ficamos. E nem mesmo se indaga o porquê ocorrem.

Não há como não reconhecer um certo clima de UTI que nos norteia como se pacientes fôramos em estágio terminal.

A indagação esquecida: por que tudo assim permanece?

No geral a pauta é tipicamente alienante: tudo se esvai no ralo da disputa política. Uma disputa onde ausente a discussão da realidade, a discussão das causas, do porquê. Nenhum discurso de esperança que vá além do que “eu” posso fazer. Tampouco de um projeto de nação que eleve o homem comum aos degraus onde discutidos os temas que lhe interessam e deveria opinar.

Que não se negue à Política a sua função primordial: de sustentar o perfil das democracias, de ser a linha mestra do debate, alma da sociedade civilizada.

Mas a crítica se nos impõe diante de um fato mais grave: quem pode efetivamente fazê-lo não o está levando às bases da sociedade, aos marginalizados e despossuídos como instrumento de aprendizado e consciência do discurso de que fez e como o fez. De fazer compreender razões e causa de tudo que nos torna uma imensa UTI, onde há uma fila, não mais os 600 mil mortos (antes inimagináveis) mas dos que ainda vão morrer por Covid-19 e dos que voltam a sucumbir sob forma mais tradicional: fome.

Mais um aumento para a gasolina, diesel e gás de cozinha. Aumentos que atingem diretamente o bolso ralo de moedas do brasileiro. E o fato (aumento) é lançado sob a vertente da disputa política: para a situação, necessário para controlar a inflação; para a oposição, resultante dos desmandos da administração federal e da ausência de políticas públicas condizentes com o país e seu povo.

Em nenhum instante uma resposta às perguntas cruciais: por quê? Quem disso se beneficia?

Naturalmente a resposta a ambas se vincula ao projeto de país que se mantém na mesma rede há 500 anos.

Certo, caro e paciente leitor, não mais se explora pau brasil e cana de açúcar. Outros os objetos.

Mas os beneficiados, em sua natureza social, os mesmos: um punhado insignificante percentualmente que se apropria das políticas públicas conforme o governo que ‘implanta’ para corresponder aos seus interesses.

E tudo navega em águas calmas, ainda que em mar revolto ou pororoca.

Quem buscar outros meios de informação que não integrem a mídia controlada pela classe dominante – para a qual o país está no rumo certo, crescendo, gerando emprego etc. etc. – lerá que aquele outro Luciano (que se veste de papagaio para se dizer mais brasileiro que os demais) está na lista deste punhado que guarda dinheiro (em dólares) fora do país. À figura, em particular, acresça-se o fato de que por 17 anos nada declarava/informava à Receita Federal. (Carta Capital)

Na esteira ilustres outros pares desde ministros de Estado a donos de mídia preferem guardar dinheiro lá fora em paraísos fiscais a investir na terrinha de onde o tiraram do suor alheio.

Uns tais Pandora Papers botaram a boca no trombone. (247 aqui, aqui e aqui)

Como desgraça pouca é coisa nenhuma divulgam que uma espiã fora plantada em gabinete do STF para municiar com informações editor de feiquenios (247).

E para mostrar que tudo anda azul os que pediram ao STF que requisitasse apuração dos ‘deslizes’ de ministros abundando em paraísos fiscais enquanto elevam o câmbio que lhes garanta mais uns derréis-de-mel-coado tiveram a pretensão indeferida por Sua Excelência que preside aquela augusta Corte.

Vida teimosa e secular. Ampliando de pacientes a UTI deste hospital que inspiraria Machado de Assis a reescrever O Alienista, tantos são os ‘Simão Bacamarte’.

Sim, no Brasil morremos de dor, certamente. Sem podermos gritar, entubados e anestesiados ajudando ou a indústria da morte ou quem dela faz meio de vida. Porque não há quem cuide de nós se dependermos tão somente dos que aí se arvoram de pais da pátria.

No estágio atual deles e dos escândalos que promovem nem mesmo devemos rir para não sermos impedidos de gritar já que entubados vivemos o cotidiano. Afinal, riscoso se torna trilhar pelo rir de quê, de quem e contra quem se ri. Que se agravará caso ilustremos o por que se ri.

Diante do fato de que no mundo animal o homem é o único que ri estamos no nível da charge de Ziraldo, materializando a metáfora do estado de espírito ora vivido: melhor calados, apáticos e alienados que sorrindo; porque sorrir faz doer.

Assim, nem dos escândalos podemos rir! 

                    

domingo, 3 de outubro de 2021

Enquanto a miséria alheia clama aos céus há quem a queira permanente

 

Lembranças da infância em Itororó: a curiosidade do menino sertanejo fugado de uma terrível estiagem que assolava Monte Alegre da Bahia (hoje Mairi) e atarantado com o vigor de tanto verde e tanta água um dia conheceu a velha charqueada do Bandeira do Colônia. Toneis inteiros ou meados substrato fervendo vísceras, mulheres limpando-as. No local do abate os quartos das reses pendurados e ofertados à despostagem, ossos fazendo uma pilha deles próximo. Em torno das ossadas recém limpas um punhado de crianças com faquinhas, curtas (tipo quicé, do escritor paraibano José Américo de Almeida) ou mesmo de tiras de flandres, afiadas, raspavam o que restava ainda pregado no osso e punham, cada uma, no embornal que como soube depois seria levado para casa para ajudar na refeição.

O estranho substrato para o manjar causou espécie, porque tudo não passava de restos colados aqui e ali do que a faca do hábil açougueiro não conseguira trazer junto às postas de chã de dentro e de fora (que incluía o paulista e a picanha), alcatra, contrafilé, filé, as dianteiras etc.  

Nunca nos saiu da cabeça aquela cena. Primeira lição para entender o quão representava a desigualdade social e ausência de políticas de distribuição de renda do que viríamos a ler e compreender nos anos futuros.

A pergunta, deste aquele instante, nunca nos saiu da cabeça: por quê?

Uma capa do Jornal Extra para corresponder ao título da matéria “A dor da fome” exibiu a corrida de miseráveis em busca a restos de comida, ossos e carne rejeitados por supermercado no Rio de Janeiro. Repercutiu no exterior onde o jornal britânico The Guardian classificou as imagens como “de partir o coração”.

Aqui nesta terra onde acontece tal estágio barbárie ninguém repercute ou se incomoda. Ou enfrenta.

Sob essa vergonhosa vertente (é muito difícil para um europeu encontrar justificativa para tal situação em um país rico como o Brasil) vivenciamos no curso desta semana a singular discussão a partir dos donos do país em torno do que é melhor para o futuro. A referência se basta em imaginar o ‘novo’ como paradigma da perfeição simplesmente porque é novo.

É o que diz o maioral do Grupo Itaú em entrevista ao Jornal O Globo, repercutida no 247: "O Lula foi um bom presidente. Seu primeiro mandato manteve a política econômica bem apertada, a inflação baixa, o Brasil cresceu”.

Ou seja, foi um bom presidente, mas...

A Vale do Rio Doce caríssimo e paciente leitor distribui R$ 40 bilhões aos seus acionistas. (Perguntemos se algum deles anda ‘roendo’ osso!). Imaginamos que a responsável por desastres ambientais e centenas de mortos já correspondeu às suas obrigações para com os prejudicados. Não!

Há dados que registram pelo menos 2 milhões de famílias ingressando no nível de extrema pobreza entre 2019 e o presente instante. No curso seguinte ao golpe de 2016 o número alcançado em dezembro de 2018 chegava a 12,7 milhões de famílias; em junho de 2021 a 14,7 milhões. Os números, que representam a crueldade presente na distribuição de renda no país, nos remetem a lembrar que em 2001 o percentual de famílias em estado de extrema pobreza era para o Banco Mundial de 13,6% e fora reduzido para 4,9% em 2013.

A verdade histórica, comprovada e posta à discussão não interessa se tal não corresponde aos ‘meus’ interesses, os interesses dos ‘donos do poder’ (encômios para Raymundo Faoro).

Assim, para o banqueiro ainda que reconheça em Lula um bom presidente, que, se eleito, "vai pegar o país em frangalhos"  distribuir renda, reduzir a fome e a desigualdade social, ampliar a oferta de emprego, reduzir o desemprego a patamares civilizados, fortalecer a indústria nacional não representa nada porque ‘precisa’ do novo que só há em sua mente e representa aquele que corresponda aos ‘meus’ interesses. Afinal, ‘não preciso raspar ossos’.

Para a Vale importa a alegria de seus acionistas, que recebem o que deveria ter sido pago às famílias dos mortos e ao Estado pelos prejuízos (alguns irreparáveis) ao Meio Ambiente.

São essas, caro e paciente leitor, as pérolas que dominarão os próximos meses, até o resultado das eleições.

Conviveremos, novamente, com a ‘busca do novo’. Tudo como antes no quartel de Abrantes. Afinal, o ‘velho’ tem mania de querer olhar mais para os desfavorecidos que ainda precisam disputar o resto preso nos ossos jogados fora. O ‘novo’ ideal é alguém como o atual inquilino do Alvorada... bem envernizado. Para que não percebam que o ‘novo’ não tem nada além de um ‘velho teimoso’ que insistem em colocar para atender à banca dos interesses individuais.

Ora, vivemos mais uma fase em que os donos da verdade, que manuseiam os meios de comunicação e de informação, provarão que aspirina difere de ácido acetilsalicílico.

Porque enquanto a miséria alheia clama aos céus há quem a queira permanente.