Verberava
Cícero (103-43 a.C.) em suas ‘catilinárias’ contra a perversidade e os maus costumes
de seu tempo. O tribuno romano espelhava-se no pai de todos os vícios e depravações
da política de sua época clamando contra a omissão do Senado em relação à “lamentável”
condição da República Romana por tolerar quem conspirava (Catilina) contra ela
sem que nada lhe acontecesse. Da abertura em sua Primeira Oração contra
Catilina o mais conhecido dele: “O tempora, o mores” (Ó, os tempos; ó, os costumes).
Roma
não é mais a mesma, tampouco a política de sua época. Mas ainda sabemos do que
acontecia na terra da loba que alimentou Rômulo e Remo lá se vão mais de dois mil anos. Os registros da época perduram relatando o seu tempo.
Os
tempos que vivemos não são os de Cícero. E não o são por serem estes tempos
apenas modernos. Os nossos tempos não são os de Cícero porque são tempos de esquecimento
quando esquecer corresponde a interesses os mais diversos. Ainda que recentes
os fatos.
Nos
tempos de Cícero não havia recursos como os modernos para registrar e levar
adiante os fatos ocorridos. Não havia imprensa. Que dizer de rádio, televisão e
quejandos outros.
Não
sabemos se a velocidade com que se materializam os fatos (e se repetem) tornam
o ‘esquecimento’ no lugar comum a ser levado em conta.
Fixamo-nos particularmente na imprensa em razão de alguns acontecidos (repetidos) no curso desta semana
sem que a memória de suas ocorrências no imediato histórico os fizesse revelados
pela importância. Até porque a distinção ao serem tratados pela imprensa deixa antever
que não é o fato em si o que motiva a publicidade ideal mas o interesse em
fazê-lo.
Eis
que uma decisão em caráter liminar da Ministra Rosa Weber, do STF, suspende a
execução de emendas de Relator do Orçamento da União, uma artimanha denominada
de ‘orçamento secreto’, voltada para beneficiar o governo federal na barganha
com parlamentares para assegurar resultados favoráveis aos seus interesses.
Sua
Excelência considerou a existência de um “caráter obscuro” através das tais ‘emendas
de relator’ por ocultar a identidade real dos beneficiários dos repasses.
Dizemos
nós, da planície da província, que ‘esconder’ algo que é do povo (recursos
orçamentários) para liberá-los por conveniência política a este ou aquele que
comungue com este ou aquele projeto não cheira somente a mais uma excrescência
tupiniquim, mas à corrupção das grossas, escancarada de forma desrespeitosa.
Nada
de novo no front; apenas as variantes. Não esqueçamos dos denominados ‘anões do
orçamento’, alcançados por uma CPI no alvorecer da década dos 90 que
identificou um sistema de corrupção através de emendas parlamentares.
Em
torno do tema trazemos um testemunho pessoal do que ouvimos de um assessor de
deputado estadual que fizera inserir em sua chapa para representação de um
determinado município baiano o então deputado federal João Alves de Almeida — relator da
lei orçamentária há anos — capaz de
fazer milagres, como o que vamos citar:
Na
eleição de 1990 o ilustre ‘anão’ fez dobradinha com o deputado estadual baiano em
determinado município, que conseguiu, de logo, usufruir da liberação de
recursos do Orçamento Federal para o ano de 1991 na ordem de 800 mil dólares.
No final de 1991 João Alves chamou a seu gabinete em Brasília o prefeito — que
andava com os dentes no quarador com a dinheirama que aportava — para
ouvir do relator que este fizera inserir emendas, a serem liberadas no ano
seguinte (1992), na ordem de 2 milhões de dólares. Antes que o prefeito
desmaiasse de alegria, no entanto, adiantou que dos recursos 30% seriam
destinados ao ‘esquema de PC Farias’. O prefeito quis chiar, mas diante de
tanto dinheiro extra aquiesceu. Então complementou o ‘anão’: — Mas tem outro
detalhe: as obras serão realizadas pelas empresas de fulano (também deputado
federal baiano).
Adiante-se
que o prefeito não viu a cor do dinheiro, justamente em razão da CPI que
escandalizou o esquema.
Pois
é caro e paciente leitor, aquilo que foi escândalo porque o relator inseria
emendas AVANÇOU para que as emendas por ele (relator) levadas a efeito no
orçamento sejam liberadas pelo governo sob o ‘transparente’ critério de que são
‘emendas de relator’ conforme este as escolha.
Anteriormente
a festa residia em liberar emendas e delas participarem ‘ilustres’ deputados;
hoje, para que os ‘ilustres’ deputados possam participar (não afirmemos que
todos!) precisam se identificar com o relator, o que significa dizer: “com os
interesses do relator”.
No
imediato o ‘relator’ tem interesse que o deputado vote na PEC dos Precatórios e
abra uma janela de cerca de 80 a 90 bilhões de reais para favorecer o Governo
Federal no ano eleitoral.
Ou
seja, para tudo ficar mais claro: dinheiro público para gasto político.
Patranha
maior não há. E desde os tempos de Cícero a isso se denomina corrupção.
Na
época de Joaquim Barbosa, que precisava encontrar dinheiro público para
justificar o crime de corrupção no denominado ‘mensalão’ — o ‘petista’,
porque o do PSDB mineiro, de Aécio Neves e o mesmo Marcos Valério, ninguém mais
lembra além de um boi de piranha chamado Anastasia — requisitou
apuração da origem dos valores através do procedimento instaurado a pedido dele
(Inquérito da Polícia Federal n. 2474), que nada encontrou que justificasse
corrupção (e sim caixa 2, dinheiro privado para financiar campanhas políticas),
tanto que para farrear com as condenações tipo a de José Dirceu (“Não tenho
provas contra José Dirceu, mas a literatura jurídica me autoriza a condená-lo” — do
antológico voto da ministra Rosa Weber) o dinheiro que alimentava a corrupção
viria do Banco do Brasil (fato não encontrado na investigação da PF, escondida
dos pares por Joaquim Barbosa).
Tudo
que aqui escrevemos se volta para o fato de que tudo isso que estamos
vivenciando vai passando ao largo da imprensa. A corrupção não o é. A não ser
que praticada contra quem enfrenta ‘meus’ interesses (dos que me bancam).
A
corrupção escancarada — a ponto
de motivar intervenção de Ministra do STF — nem mesmo sob tal jargão é abordada
pela imprensa, muito menos escandalizada, como aquele caixa 2 o foi. O que os
distingue: os interesses defendidos pela grande imprensa em um e outro
instante.
Assim
como no necrológio da cantora morta no acidente aéreo ninguém lembrou de sua
posição política aos 23 anos de idade. “A gente não precisa desse retrocesso” — afirmara em
2018 referindo-se ao candidato que veio a ser eleito (vídeo disponibilizado por
Hildegard Angel, no 247). A maturidade política refletida na frase não mereceu
entrar no rol dos valores a serem revelados e lembrados no instante de sua
passagem; apenas a musical (para nós sofrível, como quase tudo do que anda
fazendo sucesso por aí).
Diante
da existência de fatos repetidos — e omitidos quando interessa — a
conveniência torna a imprensa em simplesmente conivente.
Os
tempos que vivemos não são os de Cícero. Os vícios sim, que se apresentam
maquiados para assegurar a mãe de todos eles, a corrupção. E muitos piorados,
quando o Estado se faz imperador. Os tempos de Cícero não foram esquecidos.
Aqui os aperfeiçoaram no que à época havia de mais desastrado.
Os
tempos que vivemos não são os de Cícero. E não o são por serem estes tempos
apenas modernos. Longe dos de Cícero, porque são tempos de esquecimento conivente
ou conveniente.
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Neste link o vídeo registrando uma ação policial em Itabira-MG contra uma perigosa
meliante acompanhada de um filho pequeno e outro de braço.
Se
causar náusea, que nos perdoe o leitor. A cena é um retrato assemelhado do que
é o Estado/Poder no Brasil. Os agentes do Estado brasileiro estão ‘educados’
para agredir mais os que os assistem do que a quem o fazem.
Por
fim, não será surpresa surgir em Minas Gerais um titular do Ministério Público
para denunciá-la por desacato à autoridade, o “pescoço” como a arma do crime e
as crianças (inclusive a de colo) como co-autores. Seguindo o magistério daquela promotora paulista (aqui).