domingo, 31 de março de 2024

Do bom dia a cavalo à rapsódia húngara

 

A sabedoria popular leciona que ‘quem fala muito acaba dando bom dia a cavalo’. Expressão clássica de uso corriqueiro pela sapiência nordestina em torno da qual deve muito conhecer o Presidente da República.

O noticiário reflete o desdobramento de uma denúncia feita ainda no ano passado, de que o ex-presidente da República não teria devolvido cerca de 161 bens móveis que integram o acervo do Palácio do Alvorada, residência oficial do Chefe da Nação. Não se descura que entre ditos ‘desviados’ estivessem alguns da Granja do Torto. Bem possível.

O alardeado pela imprensa é de que o Presidente teria falado do ‘desaparecimento’ de ditos móveis. E mais: também a primeira-dama não perdeu o mote e verbalizara em torno do tema.

A reflexão a que nos propomos gira em torno do como andam os órgãos de comunicação do Governo e, particularmente, os incumbidos de falar em nome e pelo Presidente. Isso porque não é a pessoa do Presidente, mas a instituição “Presidência da República” que utiliza dos meios técnico-institucionais para tal mister.

Não enveredemos pelo lacerdismo udenista de gastos feitos para aquisição de móveis novos; afinal, em termos de gastos o ex bate o atual disparando velocidade astronômica, basta lembrar que até gastos para limpeza do lago de entrada do Palácio do Alvorada que fizeram desaparecer as moedas ali acumuladas pela tradição turística de alimentá-lo para dar sorte.

Mas, voltando à vaca morta: ao que nos parece, nenhum deles (Presidente, primeira-dama) respeitou as normas em torno do assunto. E, não bastasse – sem qualquer ressalva de que algum órgão competente estaria a buscar localizar os móveis e até aquele instante não encontrara – aproveitaram o estado de ‘cachorro morto’ do ex-presidente e participaram da sessão de socos, chutes, pauladas e pontapés. Naturalmente tudo levado às alturas pelo noticiário; afinal, a fonte justificava o alarde em torno do ‘escândalo’.

Mas não é que descobriram os tais 161 móveis?

E a divulgação não traz notícia de apuração em torno de quem veiculou a falácia levada ao Chefe de Estado – na qual também embarcou a primeira-dama.

E eis que refém o governo de (mais) uma futrica de ‘comadres’ ainda que esteja surpreendendo em nível de economia, PIB, relações externas, soberania, investimentos, retomada do crescimento, queda de juros, redução do desemprego, criação de escolas técnicas (só a Bahia é destinatária de 10 deles) etc.

E o “cachorro morto”, envolvido em denúncias graves até o pescoço se vê (mais uma adiante analisada) – e à sua turma – na proa de ataques ao Governo e se amparando (como se isso pudesse livrá-lo dos incômodos) na “injustiça” cometida contra sua augusta figura.

E está certo nesse quesito: até que provem o contrário foi acusado indevidamente.

Cremos que – até que venha à tona quem induziu o Presidente à acusação (a qual não precisava assumir) – um mote para o palanque contra o PT e o Governo foi dado de mão beijada.

Mas – mas que se impõe – em sua atual gestão – o Presidente Lula está devendo muito no quesito comunicação. Para nós em duas latitudes singularmente negativas: assumir-se porta-voz político-eleitoral no ataque ao ex-presidente (mister que não lhe cabe e sim ao PT) e falando demais.

Sobre esse “falar demais” – muito provável, queremos crer – que esteja a amparar a primeira-dama, que fala o que bem entende onde bem entenda.  

Que saudades de D. Marisa Letícia! Que se limitava a ser mulher do Presidente da República e não dava “bom dia a cavalo”.

Mas, tudo isso ultrapassado – caro e paciente leitor deste escriba de província – há também os que falam pouco em meio aos que falam muito. E não falta quem não entenda de música, mas busque embaixadas para ouvir e aprender rapsódia húngara! Quando bastaria ouvir Liszt Ferenc, mais conhecido nos botequins da vida como Franz Liszt (1811-1886).

Mas, do alto da intemperança, fazendo ou falando demais – dizemos nós – de certa forma se aproxima da ironia de José Simão, de que há gente nesta terra brasilis que até “decreta Estado de circo!”


domingo, 24 de março de 2024

Entre Pessoa e Russell

 

“Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...”

(Adiamento, Fernando Pessoa, pelo heterônimo Álvaro de Campos)

 

Convivemos com situações que ultrapassam a fronteira do inusitado. Certo que a idade alimenta em sua fase ‘filosófica’ a observação dialética em torno do que se nos acomete.

Mas, por mais que tenhamos evitado editoriais e noticiários televisivos e quejandos tais – desde muito, quando os percebemos peças da engrenagem de um sistema alienante – e, quando muito, nos limitamos a rir das versões difundidas como verdade quando lançada às calendas a Verdade (aristotélica), a mediocridade em coortes atravessa o Rubicão e avança em tática napoleônica sobre o que resta.

Não bastasse, a maioria de ‘técnicos’ nas diferentes áreas de (des)informação é testemunho de que não se trata de expressar formação intelectual, mas de corresponder ao ‘compromisso’ com o que lhes sustenta, naturalmente o “mercado’, o grande ‘empregador’. Uns, remunerados pelo vil metal; outros, por deslumbramento pequeno burguês.

Por isso não estamos conseguindo nem refletir sobre o ontem, atropelados pelo presente – que sob um dos prismas da autoajuda se outorga solução – profundamente violentado física, histórica, ética e humanamente pela carga de mensagens/verdades “absolutas”.

Tampouco – muito, muito menos – refletir sobre o outrem. Negamos-lhe o passado para reflexão e o presente o temos como campo de batalha onde o outro é o adversário em disputa fratricida a ser aniquilado. Sem direito a clamar por solidariedade.

E quando a realidade se expressa sob a ótica do ‘mercado’ eis em plenitude a negação do Humanismo, o ápice da negação do homem como destinatário da felicidade. Até a mensagem cristã foi apropriada pelo mercantilismo.

Eis que esta terra brasilis tenta enfrentar hostes servis à negação de tudo – sem apologia – que não se debruce sobre o homem como fonte e destino do bem comum.

Mas, não enxergamos o instante de “pensar o amanhã no dia seguinte”. O imediato nos afeta como destino inexorável e concentramos energias negativas em profusão lançando ao fundo do poço a esperança realizável.

Ainda que sub-reptício (desfigurando-se do alcunhado em nível ideológico) a velada forma de negação aí está, alimentando a ‘sua verdade’ e pensar ilustradamente tornou-se alvo de estigma e nós outros aos poucos sucumbimos a quem nega o ‘dia seguinte’ ao amanhã, sufocados e amordaçados.

Mas, para os que não esquecemos o passado como lição nos escudamos em reconhecer, como o reconheceu Bertrand Russell:

“Primeiro, eles fascinam os tolos; depois, amordaçam os inteligentes”.


domingo, 10 de março de 2024

Fragrâncias

 

O Chanel Nº 5 certamente é das mais icônicas fragrâncias contemporâneas, tida mesmo como atemporal. Tem origem em um óleo essencial extraído da madeira do pau-rosa, originário da Amazônia. Faz fama desde sua criação, atribuída a Gabrielle Bonheur Chanel (1883-1971), em 1921, para a Coco Chanel.

A não menos famosa Rainha de Sabá alcançou notoriedade em seu tempo – o que a imortalizou – por sua capacidade de manusear perfumes – ‘imperatriz do aroma’, disse-o o poeta Sosígenes Costa – e o conjunto de odores por ela destilados – da mirra ao sândalo, da lavanda ao patchouli, do nardo ao cedro, do incenso ao bálsamo, da murta ao ládano, da canela ao gálbano – soube-o dominar. Por tudo dela originado envolvendo essências poetas a definem metaforicamente como lágrima sabeia, nome dado ao incenso em sua homenagem.

Mas, no curso dos tempos, e da facilidade de acesso, a apropriação das essências não mais somente se fundou em si mesma, mas na marca a ela atribuída. A ‘personalização da essência’ de certa forma despreza a origem e favorece o rótulo. A mesma essência será, assim, reconhecida por nomes diversos.

Sob tal diapasão nomes famosos ‘vendem-se’ ao mercado de perfumarias e induzem o consumidor à aquisição para “ser” ou “parecer” com quem lhe dá o nome.

Não enveredemos aqui por compreender o “fetiche” da mercadoria perfume como em torno desta filosofou Karl Marx, mas certamente seria um singular exemplo para sua interpretação...

Mas, por que todo esse arrazoado? Eis que descobrimos novas “essências” perfumísticas: Michele, ex-primeira-dama tornou-se rótulo para uma essência qualquer que será comercializada não por ela em si mas pela referência especulativa.

Como não bastasse anunciam uma essência com o nome do marido. Desconsiderando a ironia de José Simão – de que a dita cuja encontraria suas raízes no “aroma capim” – certo que a coisa já transita pela comercialização.

Lançamento com pompa e circunstância muito brevemente. Não faltará quem esgote reservas financeiras, saque da poupança, venha a se endividar – até mesmo reduzir o dízimo para as igrejas, os que o pagam – para fazer parte dos enlevados que aperfeiçoarão a sensibilidade olfativa e, para provar a utilização de tal inovação, não causará surpresa que venham a andar se cheirando como cão pelas ruas para demonstrar afeto, fidelidade e admiração idolátrica às fontes das “essências”.

E ficamos a matutar, a que ponto estamos alcançados: para uma gente que ilustra seu conhecimento universal reconhecendo Israel como país cristão (certamente por desconhecer o assassinato de Jesus a pedido da teocracia local), que ainda insiste em reconhecer a quadratura da Terra, que nega avanços da Ciência em benefício da vida etc. etc. etc. trilhar por fragrâncias impostas não lhes custará reconhecer e propagar como profecia aos quatro ventos do universo a essência do pum como dádiva divina e a mais estonteante de tudo até hoje levada a termo.

Em especial alcançará eflúvios ímpares se dita ‘essência’ se originar de algum mito ou de quem lhe esteja próximo.