Vivemos em tempos idos de província — áureos tempos!
— costumes singulares levados às ruas no formato
de celebrações: o enterro do Ano Velho, por exemplo. Alcançamos a tradição de um
grupo em desfile noturno carregando um caixão de defunto. Os que estranhavam
enterro àquela hora e levavam a curiosidade aos píncaros, afastar os chorões em
volta, meter a cara e lá encontrar o ‘defunto’ Ano Velho e abrir na gargalhada.
Acompanhantes entoavam loas regadas a cerveja servida em penicos cheios de
salsichas... o que escandalizava muita gente —
maldosa, naturalmente. Uma toada servia
de ‘incelença’: “Minha comadre, meu compadre morreu / e a senhora vai ficar
sozinha / se a senhora quiser namorar, minha comadre / a primeira preferência é
minha”.
Certo que não havia concentrações gigantescas,
espetáculos artísticos e queima de fogos. Sintetizando: não havia a exploração
comercial das tradições. Não precisava o que ‘luta pelo pão nosso de cada dia’ cingir-se
à esta ou aquela marca de cerveja, à necessidade de comprar uma mesa e
quejandos tais. Gasto, mesmo, ocorria para um punhado de sócios de um clube
social, que dançava sambas e boleros até a meia-noite (em traje social) e no
primeiro instante do ano entrante a orquestra atacava com as marchinhas
tradicionais ou as que o rádio lançara a partir de novembro para o momesmo
seguinte (quando a indumentária oportuna vinha à tona). E rompia o Carnaval até
o amanhecer. Ali o primeiro ‘grito de carnaval’. Mas, efetivamente um ano se
findava e outro começava: de esperanças, de começar com o pé direito, de
repetir erros do passado.
Ficamos nos passos de cágado que esperamos dar
no caminhar para completar três quarteis de existência (adiantamos de logo por que
de janeiro a abril o tempo é pouco e não deixa de ser um jeito de fazer soar
como esperança a incerteza). E, um pouco de personagem de Millôr Fernandes, com
o pé atrás: “’Estou de passagem. Vim só dar uma olhada’ com dizia o outro,
entre o berço e a cova”, vendo “numa laje, meu nome meio apagado”
Ultrapassados os cinquenta o existir nos levou
a aprofundar reflexões, pensar em torno das coisas, buscar razões em meio às
contradições, exercitar a dialética à procura tão somente de uma síntese.
Alcançamos a capacidade de refletir, de pensar, de maturar, de inovar e discutir
o porquê das coisas.
Em instante de passagem de ano-calendário
fica-nos a certeza de que tal abstração atende apenas à limitação humana. Afinal,
vida bilionesimamente curta no que toca à Eternidade o tempo medido é apenas um
mote para “passar o tempo” sem que isso possa ser considerado um passatempo.
Quando nada o calendário é apenas uma convenção humana. O tempo imanente não o reconhece,
observa-o com desdém.
Toda a construção humano-civilizatória está
pautada no tempo: passado, presente, futuro. Uma ciência o registra quanto ao
passado (ainda que conforme quem o registre) como lição para o presente e
reflexão para o futuro: a História.
E tudo que em torno dele se faz menos alimenta
o Homem/Humanidade, o Ser destinatário de tudo que por este planeta ocorre e
mais, muito mais, o que se beneficia de oportunas soluções que atendem apenas
uns poucos bafejados pelas oportunidades onde encastelados.
Personagem nosso em “Amendoeiras de Outono”
(Via Litterarum, 2005) reflete em torno dos avanços e criações da civilização: “O
progresso me traz comodidade, não felicidade”. Eis o mote para refletir em
torno da passagem de um ano-calendário: progredimos em busca da Felicidade?.
Arrumando o que chamamos de ‘biblioteca
particular’ nos deparamos com duas circunstâncias flagrantemente escancaradas:
encontro com velhas e sábias leituras (reservadas para imediatas releituras) e
a constatação dolorosa de que de útil para o semelhante pouco adiantou-nos
tanta leitura e tanto ler. Até porque quem deu de escrever padece de não ser
lido como gostaria ou — quando muito —
pouco lido.
Não deixa de
ser um caso perdido essa coisa de mais um ano ultrapassado na estrada da vida
(nada a ver com Federico Fellini e seu clássico “La Strada”, de 1954).
E em meio aos
alfarrábios reencontrados uma edição de “A Revista” (editada por Carlos Drummond
de Andrade e Martins de Almeida, em Belo Horizonte, nos idos de julho de 1925),
em edição especial reimpressa por José Mindlin/Metal Leve em 1978.
Registra
Mindlin que Carlos Drummond protestou porque “...não considerou válido fazer
ressurgir do passado uma produção literária a seu ver de pouco valor”.
Registre-se que
entre o de “pouco valor” para Drummond o primeiro capítulo de Mário de Andrade “(do
romance Amar, Verbo Intransitivo) – (INÉDITO)”.
Em ‘Para os
Scepticos’ os editores registram no último parágrafo:
“[...] Ao Brasil desorientado e nevrotico de até agora, oponhamos
o Brasil laborioso e prudente que a civilização está a exigir de nós”. (Redação
original).
E deixamos o
quase um século e partimos para o “Sobre o autor”, de ‘Solo de Trombone (ditos &
feitos de Alberto Roisel)’, de Antônio Lopes (Editus-Editora da UESC, 2001):
“Lopes é dono de texto econômico, meditado, não raro irônico,
traduzindo um profundo cansaço com o discurso político que o rodeia. Costuma
dizer que se ganhasse pelas vezes em que editou a salvação da Pátria (em
reportagens e entrevistas) estaria rico, e a Pátria salva. Mas,
filosoficamente, reconhece que —
apesar do
discurso politico repetido — ele e o Brasil continuam
os mesmos: um pobre, outro à beira do abismo. Ou vice-versa.”
No limiar deste
calendárico 2021 nos debruçamos em reler sobre um “Brasil desorientado e
nevrotico” de antanho ou aquele ‘vice-versa’, de “um pobre, outro a beira do
abismo”, para concluir que não há quem se oponha. E quando há quem cuide de
fazê-lo não falta quem atropele o indigitado “Com Supremo, com tudo”.
Por tal mister — e suas singularidades —
temos apenas
o tempo permanente, querendo ser imanente, provando que o novo nasce velho.
Coisa que nem Benjamin Button* em vice-versa ao cubo resolve.
E nem mesmo temos
as províncias enterrando o “Ano Velho” e cantando ‘incelenças’. Resta-nos, tão somente,
contar os dias.
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* Personagem do conto homônimo de F. Scott
Fitzgerald (1896-1940), publicado em 1921, levado ao cinema sob direção de
David Fincher, em 2008.