domingo, 29 de outubro de 2023

As guerras e seus fronts

Valemo-nos de “O jornalismo e as guerras”, de João Lírio, redator-chefe da Carta Capital, que circulou em nosso e-mail, um texto preciso para instruir esta postagem:

 

"Se há uma verdade em um conflito, é esta: em algum momento, em alguma parte do planeta, um jornalismo inspirado, um analista arguto ou um político espirituoso vai repetir a frase “na guerra, a primeira vítima é a verdade”. É tão líquido e certo quanto o apoio dos Estados Unidos a qualquer decisão de Israel, justa ou injusta.

Não se sabe quem é o autor da frase. Há quem atribua ao grego Ésquilo, pai da tragédia. Outros apontam o político inglês Philip Snowden, famoso no século XVIII, ou o seu compatriota Samuel Johnson, ensaísta prestigiado que viveu cerca de cem anos depois. Seja quem for, o dito remete a um certo romantismo, quando aparentemente havia o genuíno interesse de perseguir a verdade, essa utopia.

No século XXI, quando uma guerra eclode, nem tempo há de matar a verdade. Ela é natimorta, enterrada em uma cova rasa, sem túmulo, epitáfio e flores. Há tempos, o poder entendeu: a propaganda é uma arma mais letal do que os mísseis.

A batalha entre Israel e o Hamas não foge à regra. O oligopólio midiático faz parte da engrenagem da guerra, imbuído da missão de vencer o Mal, à custa de sua independência. Não é permitido duvidar, contextualizar, relembrar, como fez o açoitado António Guterres, secretário-geral da ONU, ao dizer que o ódio não nasceu do vácuo, mas de uma história de ao menos 56 anos de ocupação.

Pensar de maneira autônoma tornou-se crime. É a prova de “apoio ao terrorismo” ou “perseguição aos judeus”. Uma heresia a ser punida com o ostracismo, o silêncio.

O terror do Hamas só pode ser combatido, então, com um terror ainda maior de Israel. Existe um sistema de câmbio para medir quando o “legítimo direito de autodefesa” estará saciado? Quantas crianças palestinas precisam morrer para compensar a perda de um bebê israelense?

A mesma lógica guia a “guerra urbana” no Brasil. A chacina no Guarujá, as operações policiais nos morros e favelas do Rio de Janeiro, a brutalidade na Bahia... Tudo vai além do olho por olho. Quantos civis, culpados ou inocentes, devem perder a vida para aplacar a morte de um policial? Quantas balas perdidas justificam o suposto combate ao crime?"

Pouco a acrescentar. O jornalismo constrói seus fronts. As guerras, os seus. 

Qual deles o pior: a morte humana nos ‘campos de batalha’ ou a da Verdade através do jornalismo que as alimenta?

O jornalismo escolhe seus culpados. Padroniza-os no imaginário de quem os lê, ouve ou vê.

A ênfase oferecida o define: massacre ‘terrorista’ cabe ao Hamas; massacre a civis em hospitais, escolas, comboios de ambulâncias e campos de refugiados apenas não passam de ataques justificados contra terroristas. 

Afinal, Josué à frente para conquistar Canaã. Para tanto:

"Vai, pois, agora e fere a Amaleque; e destrói totalmente a tudo o que tiver, e não lhe perdoes; porém matarás desde o homem até à mulher, desde os meninos até aos de peito, desde os bois até às ovelhas, e desde os camelos até aos jumentos".



domingo, 22 de outubro de 2023

Inverdades flertam com a informação

 

Alguns que houvessem acessado a postagem anterior antes de publicada teriam recomendado a este escriba de província que o evitasse. Entenderiam como inconveniente a uma parte poderosa.

Não deixavam de ter razão: universidade famosa perdeu apoio de financiadores judeus por ter sido palco de protestos em favor do povo palestino!. Que dirá pobres mortais que dependem dos outros em quase tudo!

Desde que o homem tornou-se sedentário, fixando sua realização material não mais na busca do alimento sob o nomadismo, resultou o que seria natural: excesso no que produziu. Encontrou como saída a experiência da troca – época que fez surgir o mais típico escambo, um produto por outro. Mas não tardou alguém produzir em excesso, o que tornava sua produção, excedente para troca, menos aceita por força da competição e passou oferecer mais e receber menos em razão da escassez do que produzia o que precisava.

O comerciar, levando a outros espaços carentes ou impossibilitados de produzir idênticos produtos, foi a descoberta milagrosa. Estocar tornava-se possível e garantia oportunidade de escoamento com menos prejuízo.

Precipitando a análise, no curso das eras que se sucederam o aperfeiçoamento do processo desenvolveu uma parcela que passou a controlar e beneficiar-se dos excessos da produção alheia. E mais se tornou quando a força de trabalho passou a ser mercadoria.

Lição elementar do surgimento do domínio da terra e de uma legislação que a protegesse na forma de ‘propriedade’ o que permitiu o controle de poucos sobre a riqueza que deveria servir a muitos.

E desde tempos muito pretéritos isso se firmou. E um bem de necessidade comum passou a ser disputado: água. Porque sem água (além do consumo humano) o solo nada produz.

Desde sempre TER passou a representar mais que SER. E contemporaneamente até mesmo se confundem na forma de submissão a ordenamentos e princípios elaborados para corresponder a tal jaez. Assim, ter passou a mais do que nunca a significar poder, controle sobre quem não possui.

Não de hoje o clamor:

“... Ninguém antes de Jove as terras desmembrava:

A lei que as fere agora, e marcos lhes encrava

que dor faria então. Se tudo era de todos,

a paz era comum a toda a humanidade;

a terra, abrindo a flor dos sonhos soterrados,

punha frutos nas mãos dos homens sossegados”.

                    Virgílio (70 a.C.-19 a.C.), no Livro I, das Geórgicas

Em tempos hodiernos duas riquezas se sobressaem: terra e água. A terra e seu subsolo e as riquezas nele abrigadas. Inclusive petróleo em nível mais profundo; e água, de que depende o homem para sobreviver...

O decantado agronegócio brasileiro, por exemplo, é exaltado como celeiro do Brasil e do mundo. Ainda que represente em torno de 3% do consumo mundial. Porque o que falta ao brasileiro de dieta de soja a Europa consome para seus animais.

Os poços d’água da Palestina são o celeiro ambicionado por Israel... os que restam. Que sejam expurgados os palestinos que ainda os detêm... afinal simplesmente terroristas por tentar protege-la!

Uma ocupação aqui e ali onde haja um poço explica o porquê da redução do território palestino e das ambições israelenses.

A guerra não passa de motivo. Motivada pela propaganda de quem detém o controle da informação.

O que inclui esquecer Públio Virgílio Maro.


domingo, 15 de outubro de 2023

Lá estavam os Cananeus

 

Um amigo, que viajou para Israel há alguns meses, nos indagava em torno do como compreender por que da guerra que ora ocupa os noticiários. Ele que viu, com os próprios olhos, palestinos e judeus convivendo pacificamente em Israel. Inclusive muitos deles trabalhando no hotel em que se hospedou.

Natural que, quem por lá andou, assim reaja diante do expresso pelo noticiário pátrio – tradicional em todos os níveis, inclusive em atender compromissos vários – que estabelece uma verdade absoluta e peremptória quando tratando do conflito Israel e Palestinos da Faixa de Gaza: terroristas (sempre os terroristas!) que atacaram o povo eleito.

O filme Exodus (1961), de Otto Preminger, conta uma ação (hoje denominada terrorista) da ocupação de um navio por judeus visando retornar à Palestina. Sim, caro leitor – Palestina, sim – a terra ansiada pelos judeus. Ali a sua pátria, as suas origens. Uma parte dela, onde viveram os descendentes de Abraão (vindo de Ur, na Caldeia).

E naquela Palestina lá fixados já estavam judeus, palestinos, mulçumanos, cristãos em convívio harmonioso sob o pálio do Império Otomano, desfeito depois da Primeira Guerra do séc. XX, dividido entre os vencedores franceses e ingleses.

Depois da II Grande Guerra daquele século a busca por um espaço que fosse seu. A recém-criada ONU encontrou uma solução: a criação do Estado de Israel, para abrigar territorialmente os judeus, e o Estado Palestino, em parte do que fora o Império Otomano onde já fixados e residentes há mais de um milhar de anos árabes, mulçumanos e cristãos modernos.

O primeiro foi de logo reconhecido sob o pálio da autodeterminação depois da autoproclamação, como registra a Enciclopédia Britânica; o segundo, até hoje espera a ‘boa vontade’ das nações poderosas, sempre apoiando Israel que afirma que não reconhecerá.

Que de lá para cá, com guerras ou simples ocupação de espaço, reduziu a área destinada ao Estado Palestino a um punhado indistinto de áreas separadas de Gaza, onde hoje se aloja o Hamas, grupo de resistência que se diz voltado para eliminar Israel.

Quando os orientados por Moisés partiram do Egito tinham por prometido por Javé alcançar a terra de Canaã, descrita na Bíblia. Que situada estava na costa oriental do Mar Mediterrâneo, “como se estendendo do Líbano até o riacho do Egito, no sul, e ao vale do Jordão, no leste”.  Uma terra que teria sido “prometida” por Javé (aquele estranho “deus” que gosta de sangue) aos descendentes de Abraão (veja-se, para começo, Gênesis 12:7).  

Quando ascendeu Roboão ao trono de Judá, por volta dos anos 900 a.C., as 12 tribos originárias se desfizeram da centralização e houve certa diáspora.

E aqui estamos, como antes de Cristo, aquele que defendeu o Amor e recomendou perdoar os inimigos e agirmos em relação ao semelhante como a nós mesmos.

A Nova Aliança de Jesus não foi aceita por quem segue Javé. Amor como mensagem não convém a quem pede sangue.

Digladiando-se ontem como hoje. Cabe saber, apenas, quem tem razão. Caso haja razão para tanto.

Lá estavam os antigos cananeus: uns e outros

Para os que têm a Bíblia como referência e o Velho Testamento como paradigma de Fé, para entender a postura atual de negar terra e vida ao próximo, não custa refletir em torno de:

Deuteronômio 20

16 Contudo, nas cidades das nações que o Senhor, o seu Deus, lhes dá por herança, não deixem vivo nenhuma alma.

17 Conforme a ordem do Senhor, o seu Deus, destruam totalmente os hititas, os amorreus, os cananeus, os ferezeus, os heveus e os jebuseus.

18 Se não, eles os ensinarão a praticar todas as coisas repugnantes que eles fazem quando adoram os seus deuses, e vocês pecarão contra o Senhor, contra o seu Deus

.

1 Samuel 15

Vai, pois, agora e fere a Amaleque; e destrói totalmente a tudo o que tiver, e não lhe perdoes; porém matarás desde o homem até à mulher, desde os meninos até aos de peito, desde os bois até às ovelhas, e desde os camelos até aos jumentos.

 

A Paz é possível e viável. Mas Javé não deixa. 

Dezenas de propostas de Paz oriundas do Conselho de Segurança da ONU foram rejeitadas por veto dos Estados Unidos. aliado incontestável de Israel.

Ainda que a maioria absoluta dos membros do Conselho concordem com a busca de uma solução para a Paz (que passa necessariamente pelo reconhecimento do Estado Palestino) um veto, com certeza, a inviabilizará: Estados Unidos.

Na briga estúpida sobra para os inocentes, em especial mulheres, crianças e idosos. De um lado e outro vítimas da intolerância.

Uns chamados de terroristas; outros, de povo eleito pelo deus Javé.

 

domingo, 8 de outubro de 2023

"Acorda, Brasil!"

 

Crianças de então – os que adorávamos as chanchadas nas matinês de domingo – ríamos a não mais ver. Afinal, humor circense de cacos e chistes, tropeções e empurrões valiam mais que o enredo. Quem de nós entendeu aquele “Trabalhadores de Gaza”” proferido pelo Sansão/Oscarito no “Nem Sansão, nem Dalila” (1955), de Carlos Manga?

A sátira de costumes e as paródias (“Matar ou Correr”, de Manga, 1954, entre elas) superavam os limites financeiros nativos para enfrentar Hollywood (confundida por muitos com a marca de cigarros) ocupando em plenitude as poltronas dos cinemas Brasil a fora. Nada entendíamos. Importava-nos rir!

Cabe destacar como rimos a valer com “O homem do Sputinik” (1959), do mesmo Carlos Manga.

Rever, por meio dele, este espaço do Cinema Brasileiro nos remete a reviver no presente aquilo que à época não compreendíamos: de que tudo não passa(va) de metáfora. E que de lá para cá nada difere; permanece a conviver com a realidade, travestida ao sabor das pretensões/interpretações oferecidas.

União Soviética,  França e Estados Unidos ali estereotipados vigaristas. A Guerra Fria levada na galhofa tendo como palco a terra brasilis. Deixando a lição de que os interesses de sempre, mais que tudo, faziam/fazem girar a disputa entre países. 

Chanchada de ontem, vigarice que a Geopolítica contemporânea faz permanecer sob idênticos paradigmas em outros palcos, sem dispensar o nosso.

Detalhe: os brasileiros – crianças de ontem, como as de hoje – deixaram de rir, mas continuam a viver ‘mensagens’ por meio das Agências United Press, France Press, BBC (contrapontuando com as rádios de Pequim, Havana e Moscou de então) capitaneadas pelos mesmos detentores do controle dos meios de comunicação/informação e quejandos tais permanentemente alimentando a “teoria do subdesenvolvimento” (obrigado Celso Furtado!).

E a sabujice e a imbecilidade – dos que desconhecem a leitura como fonte de informação – aí estão discutindo 'convicções' nos bares, nas esquinas e praças a ‘realidade’ que lhe é imposta formando ‘juízos de valor’ lançados aos quatro ventos no mesmo patamar que nos levou ao suicídio de Getúlio, ao Parlamentarismo de ocasião e ao coroamento de propósitos: golpe militar de 1964 carreando uma ditadura que nos corroeu no curso de 21 anos e destruiu valores pátrios ao alvitre dos ‘libertadores’. Trazendo, para coroamento de significativa parcela desta 'intelectualidade', a revolucionária teoria de que a Terra é plana.

Ainda permanecemos em igual patamar. Talvez em pior estágio – este nosso pessimismo(?) não nos permite expressar diferentemente – porque tão somente diante do fruto de todo o programado pelos ‘vitoriosos’. Que o digam as “reformas” tupiniquins no curso destes agros anos.

Mas não deixa de ser tempo, certamente – eis-nos prenhe de otimismo, novo Cândido à espera de um Voltaire (1694-1778) – de lembrarmos daquele instante de “O homem do Sputinik” em que a reportagem do jornal sai para o ‘furo’ e o fotógrafo – com o simbólico nome e sentido de tudo projetado em tela – é desperto para a obrigação: “Acorda, Brasil!”

Triste que não mais sejamos aquelas crianças que riam!


domingo, 1 de outubro de 2023

"Mande embrulhar"

 

Arautos contra o preconceito há muitos. Auto declinados de consciência avançada e revolucionária.

FHC comprava religiosamente o jornal “O Lampião da Esquina” em banca localizada na Avenida Paulista. Tempos difíceis, ditadura estourando bancas etc. Disse o jornaleiro que o Sociólogo adquiria o alternativo mas “mandava embrulhar”. Ou seja, negava que lia.

A lição nada recomendável permanece. Eis que é tempo de negar

No plano da compreensão da existência humana situar a espécie como paradigma em razão da exclusiva existência em nível de sapiens sapiens para nós pouco representa no plano de sua evolução social. Isso porque desde então – por volta de 30.000 anos da atualidade – saímos de Eras várias e alcançamos a presente de forma realmente incrível sob o prisma das ciências. 

Dos últimos sete mil anos (com o advento da escrita) até o instante em que vivemos a nanotecnologia, expectativa de revolução na Física e busca de conquistas interplanetárias assustam por não serem palpáveis para parcela considerável das gentes, impacta-nos tudo como certamente o homem primitivo diante da primeira chama.

Mas de nossa parte, de quem escreve e interpreta a província (e o planeta não está longe dela, já o disse Tolstói), avanços científicos avançaram a anos-luz de quando imaginávamos e parece que deixamos de aperfeiçoar e compreender o que representa a convivência, que trilha a passos de cágado.

Cada dia mais escravizados ao consumo em sua dimensão consumista alimentamos o ter e o elevamos à divindade tornando-nos pura e simplesmente peças indistinguíveis de uma realidade mais e mais cruel para com o Homem/Ser.

De modo concreto estamos regredindo no quesito evolução de valores que deveriam nortear a Humanidade no presente estágio civilizatório

E quando em torno disso cabia-nos refletir - e dispomos de todas as ferramentas alcançadas - fazemos de conta que não existe. 

Fugimos de assumir a realidade. Porque mais cômoda a fuga.

Assim, para esconder nossa pequenez vivemos como FHC, leitor de Lampião da Esquina: “Mande embrulhar”.