domingo, 23 de fevereiro de 2020

Quando o Carnaval passar

Quando os mortos falam o fazem mais alto que quando vivos. Falam sem medo porque nada têm a temer. Afinal, ninguém morre duas vezes.

O carnaval já falou de mortos. E também de vivos. 

Neste, em andamento, há vivos insatisfeitos com a lembrança. 

Em especial porque certos mortos são lembrados.

Quem também anda insatisfeita é a profissão de palhaço. 

Há quem vislumbre - considerando a insatisfação das elites - que o inquilino do Planalto comece a sucumbir a partir das cinzas do Carnaval. Tal teria apelo simbólico, diante do que representou o momesco - aqui e lá fora - para o indigitado. 

A argumentação encontraria apoio em manifestações várias oriundas do torreão que o tornou inquilino, solução única para aquele imediato: derrotar o poder não ocupado.

Motivos não faltam. O que falta é perguntar ao mentor de tudo se concorda. Afinal, o ethos que ora norteia o que chamam de 'pensamento' contemporâneo não foi aqui construído.

Muitos assistem, outros tantos se incomodam quando lhe apontam uma ponte estreita para a travessia.

Na esteira de compreensões e incompreensões o governador da Bahia falou demais e o que não devia. 

Melhor que aprofundasse a investigação em tema que lhe afeta: se tem ou não o controle das polícias da Bahia.

No mais, atentar para o que vem quando o Carnaval passar. 

Porque outubro está logo ali.

domingo, 16 de fevereiro de 2020

Cavalos de Tróia criptografados


Petroleiros em greve há duas semanas. 20 mil paralisados. Justiça do Trabalho determina retorno, sob pena de multa. STF confirma. Grevistas descumprem decisão. O melindre do instante. Petroleiros rasgam comunicado de demissão. Ameaça de suspensão no fornecimento de combustíveis ao país. Caminhoneiros anunciam apoio aos grevistas da Petrobras visando redução nos preços dos combustíveis.

A imprensa não informa a dimensão alcançada pelo movimento de paralisação: 55 plataformas (38 no Rio de Janeiro, 9 no Ceará, 4 em São Paulo, 2 no Espírito Santo e 2 no Rio Grande do Norte,), 11 refinarias, 23 terminais, unidades de transporte, termelétricas, usinas, unidade industriais e administrativas.

Parcela significativa da produção e distribuição de energia, conteúdo altamente estratégico.

Governo militarizado tende a endurecer, porque dialogar não faz parte da doutrina do porrete. Em especial quando o porrete apenas é testa de ferro de interesses de além-mar que visam, entre outras premiações, a riqueza mineral sob controle da Petrobras.

O endurecimento do Governo Federal – dada a amplitude das áreas em greve – pode estar construindo um Cavalo de Tróia e pondo-o à disposição da já combalida economia.

Pode ser festa para mais privatizar o setor energético, mas pode tornar-se uma espécie de canto do cisne para o sistema. A sociedade não suportará a entrega à iniciativa privada (onde o lucro é a razão) de espaço tão melindroso.

Na esteira das especulações o endurecimento do regime, em que a democracia de fachada (congresso e eleições) respaldará uma ditadura militar consensuada pelo maniqueísmo de tudo e todos contra Lula e o PT.

Afinal, áreas sensíveis do governo em mãos militares das duas uma: ou a sociedade civil é inteiramente incompetente e destituída de quadros ou o objetivo das Forças Armadas haverem tolerado um terrorista do qual se desfizeram – através de um processo no Tribunal Militar, quando o reformaram em 1968 – se faz materializado no alcançarem o poder sem golpes, como no passado.

O número de militares respondendo por cargos no governo dá bem a conta de que o inquilino do Alvorada seria hoje refém do estamento militar que, através dele, governaria de fato, cumprindo seu papel de fantoche bufão. E assim não tem nenhum interesse de que seja afastado. Mas, caso o seja, o reserva Mourão.

Os Estados Unidos – e seu big stick – assistem com inusitada alegria e satisfação. Leia-se o verbo ‘assistir’ em seus amplos significados e regências (com ou sem preposição). Na falta de uma outra serve aos mesmos interesses. O projeto de construção do Cavalo de Tróia tem seu aval.

E há quem insista na retórica de condenar o fascismo nosso de cada dia e esquecer das razões por que se sustenta nesta terra tanta aberração. Demonstram aqueles não perceber a lição em letras garrafais de que tudo que ocorre, adredemente programado, exigiu um outro Cavalo de Tróia: essa discussão inócua que legitima – pelo discurso sem alcance – o que aí está.

Nesta guerra entre gregos e troianos  em que uns dão e outros recebem – muitos se confundem com baianos e abrigam em seus territórios figuras de páginas policiais como singular presente.

Certamente os petroleiros estão enxergando mais e melhor. E combatem com as armas de que dispõem. Menos discurso e mais ação. Sem trazer para o seu quintal qualquer "presente de grego".

domingo, 9 de fevereiro de 2020

O meio é a mensagem no galinheiro

Quando o canadense Marshall McLuhan se propôs a explicar os fenômenos dos meios de comunicação e sua relação com a sociedade dispunha dos que lhe foram contemporâneos, não os aperfeiçoados como ocorre nesta contemporaneidade (internet e cibercultura). A afirmação de McLuhan levantava um pressuposto: o de que o meio se confundia com o conteúdo no instante em que se afirmava como mensagem.

A teoria do canadense está, naturalmente, subsumida ao resultado, não ao modo de utilização como pretensão. Assim, os meios de comunicação, conforme o objetivo, podem servir ou não à construção e à qualificação do tecido social.
De fundamental para entender McLuhan é a circunstância de dimensionar o meio como conteúdo e os efeitos disto decorrentes. 

Em seu tempo a televisão alimentou nele a concepção de uma “aldeia global”, ele que nem mesmo imaginou a internet e seus desdobramentos. Ou seja, a efetivação da interconecção das diferentes mídias apoiando uma cultural geral, globalizada. Por meio dela o acesso a diferentes culturas simultaneamente, sem a necessidade de conhecê-las em sua essência, o que tornou o homem em um ser superficial quando ao conteúdo que alcança. E mais, o caminho exige o contrário: de que possa influenciar, ainda que não domine o que está a informar. Assim, a superficialidade passa a ser a tônica e a referência.

Perto de nós podemos facilmente perceber: todo e qualquer detentor/proprietário de um aparelho que lhe permita acesso ao meio tornou-o um ‘expert’ naquilo a que se propõe. Por este viés proliferam-se “jornalistas”, “comentaristas”, “analistas” em tudo que seja possível meter o bedelho.

Por sua vez, a manipulação das massas para corresponder ao consumo, como o idealizou Edward Bernays, há muito avançou sobre o comportamento da sociedade em dimensão política e os meios de comunicação sustentam permanente processo de manipulação da informação. Tal informação, a manipulada, vai formando ‘consciências’.

Sob essa realidade a informação apurada em conhecimento está nivelada por baixo. “Informado” é aquele que alcança um percentual de leitores que se habituam à sua “informação”. Comumente expondo o que o outro quer ler ou ouvir – ainda que não dimensione de forma alguma os elementos que norteiam a psicologia social para controle das massas – o mercado se abre a todos, dando uma ideia de participação democrática, quando na verdade embute uma ditadura no plano da informação.

Aquelas antigas agências de notícias (France Press, UPI etc.) estão concentradas em uma dezena de fontes primárias de informação que passam a ser universalizadas sob o crivo de um pensamento único. 

Hoje, com raríssimas exceções, a informação retransmitida por emissoras de rádio no Brasil, por exemplo, se faz a partir de portais: Terra, UOL, G1 etc. Aquele ‘analista’ e ‘comentarista’ que o ouvinte admira como “bem informado” nada mais faz que ler o que se encontra veiculado na telinha à sua frente. Como não informa a fonte o ouvinte imagina ser dele o que expressa.

E assim, acompanhamos o modo como uma estupidez é dita e horas de noticiário e comentários repercutem a insensatez e desconhecimento em torno de pacto federativo, república, direitos fundamentais, justiça tributária etc. etc.

Neste tenebroso mar navega muita gente. Inclusive o inquilino do Alvorada. Mas o que nos incomoda não são as diatribes do inquilino, por exemplo, mas a importância e o valor (técnico) que a elas dão os meios de comunicação de massa através de seus ‘analistas’ e ‘comentaristas’.

Último exemplo: cobrar dos Estados da Federação que eliminem o ICMS sobre combustíveis como contribuição à redução dos preços.

A proporção tributária que aí está sempre esteve, desde a Constituição de 1988. Caso críticas mereça serão justificadas por alimentar a absurda distorção na divisão das obrigações tributárias do brasileiro menos aquinhoado, submetido à tributação pelo consumo. Sim, o brasileiro menos aquinhoado. Porque o brasileiro aquinhoado não paga tributo algum por possuir, aviões, helicópteros, iates. 

E nem mesmo o imposto de renda ‘de todos nós’ o alcança como aos vis mortais porque os beneficiados pelo atual sistema não o recolhem por lucros e dividendos e quando o pagam em nível de pessoa física – ainda que beneficiados por milhões de reais em termos de renda – apenas 15% o alcançarão, enquanto nós outros entramos 'no pau', sem dó nem piedade, quando alcançamos míseros R$ 4.664,48 e os 27,5% abocanham parcela de nosso suor, ainda que salário. 

Para os aquinhoados lhes basta simplesmente utilizar-se de aplicações financeiras tributadas em 15% ou mesmo uma Pessoa Jurídica para abrigar os seus ganhos, onerados naquele mesmo percentual. E quejandos outros os há, mas fiquemos com os citados.

Propor  como alardeia o inquilino  que os Estados retirem os impostos fixados para eles na Constituição, nenhum nexo, nenhuma lógica tributária, nenhum sentido. Jogo de cena. Apenas transferir a terceiros a incompetência em encontrar soluções que poderiam vir com uma reforma tributária justa, onde as fortunas e os rendimentos de capital fossem alcançados pela tributação. E nem falemos na cobrança da Dívida Ativa. 

Mas o dito cujo quando fala não lhe faltam “analistas” e “comentaristas” exaltando ou minimizando a bobagem expressada.

Dentro da mesma distonia com a realidade a imprensa repercute – em nível sensacionalista de pró e contra – a sapiência do ministro da fazenda (com minúscula, redator) chamando funcionários públicos de “parasitas”.

O primeiro aspecto alimentado pelo noticiário é a ideia de marajanato no serviço público, como se todo e qualquer servidor (incluindo professores) fosse assessor parlamentar e quejandos tais, o que é sempre posto como estigma em relação ao serviço público.

Na esteira do pensamento único que os alimenta (de quem diz e de quem repercute) vai para o ralo do esquecimento o que efetivamente onera o país: uma brutal e desonesta transferência de recursos do Estado para corresponder à festa imposta pelos sistemas de especulação financeira.

Que já ensaia assumir o Banco Central – sob a pieguice da autonomia e independência. 

E fará a raposa assumir em plenitude (com o controle da política macroeconômica em nível de câmbio e da emissão de moeda) o galinheiro chamado Brasil.

Certamente não lhes faltará apoio do meio como mensagem.

domingo, 2 de fevereiro de 2020

Do 'racismo reverso' a Machado de Assis

Temos abordado – em oportunidades várias, inclusive neste espaço – dos riscos decorrentes da ideologização como instrumento de poder por estamentos sociais. Através da ideia afirma-se o poder. Tal ocorre com a existência de organismos institucionais da sociedade, que, sob tal viés, a encontram como única forma de manutenção nesta sociedade e civilização contemporâneas.

A distorção ocorre, justamente, quando se busca impor a supremacia deste ou daquele grupo. Originariamente oriundo da defesa e da sobrevivência naqueles historicamente violentados, dominado, como reação – e ocupação de espaço – diante do dominante histórico.

Mas, quando conceitos individualistas (de grupos) distanciam-se do interesse geral, do coletivo, há supremacia de uns sobre os outros e não a igualdade anunciada como pedra de toque.

Recente decisão judicial absolveu jovem denunciado pelo Ministério Público Federal da acusação de “racismo reverso”, qual seja a postura racista de negros contra brancos.

Em sua decisão o magistrado pontuou, o que em destaques fazemos a partir do GGN:

“Na sociedade brasileira, a pessoa branca nunca foi discriminada em razão da cor de sua pele. É dizer, jamais existiu, como fato histórico, a situação de uma pessoa branca ter sido impedida de ingressar em restaurantes, clubes, igrejas, ônibus, elevadores etc”, [...] “nenhuma religião de matriz europeia sofreu discriminação no Brasil, a ponto de seus praticantes serem perseguidos e presos pela Polícia, ou terem seus locais de culto depredados e destruídos por pessoas de crenças compartilhadas pela maioria da população, tal como se deu com as religiões de matriz africanas”.

E mais disse: a desnecessidade de aplicação de políticas afirmativas em relação às pessoas brancas “por não existir quadro de discriminação histórica reversa deste grupo social nem necessidade de superação de desigualdades históricas sofridas por pessoas brancas.” 

Tanto que “Não existe racismo reverso, dentre outras razões, pelo fato de que nunca houve escravidão reversa, nem imposição de valores culturais e religiosos dos povos africanos e indígenas ao homem branco, tampouco o genocídio da população branca, como ocorre até hoje o genocídio do jovem negro brasileiro. O dominado nada pode impor ao dominante”,

Causou-nos espécie uma singularidade: a necessidade de uma expressão como “racismo reverso” para diferenciar (postura que não deixa de ser racista) o racismo praticado por pessoas brancas do racismo praticado por pessoas negras.

Afinal, ficamos nós olhando para o teto de pucumãs a indagar: tudo não seria racismo?

E nos veio à mente um outro instante daquela parcela meritocrática do MPF, dentre outros quejandos: uma ação movida por um representante do órgão contra o Dicionário de Antônio Houaisss. Vamos ao caso concreto.

Ainda hoje não mais disponível o verbete ‘cigano’ no Dicionário Houaiss. O respeitado objeto de consulta foi acionado pelo MPF para retirar um dos muitos significados do termo cigano, dentre eles aquele(s) que o traduz(em) como treiteiro, finório, sabidório, enganador, mau pagador. 

Na realidade, cuidara o dicionário – e não poderia ser de outra forma – de reunir “significados” e não de conceituar a etnia zíngara.

Muito triste saber-se de iniciativas como a tal do MPF contra o Dicionário Houaiss. Certamente parte daqueles que se valem da meritocracia como sinônimo de ‘deus’ na terra por haverem passado em concurso público e tornam-se mais enciclopedistas que Diderot... A "Enciclopédia" configurou a grande representação do que consiste no pensamento Iluminista, de ruptura com a tradição acomodada destituída de dialetização, da utilização racional das ciências, circunstância não percebida ou dimensionada por nossos 'enciclopedistas'. 

Diderot dispôs de Voltaire, Rousseau e Montesquieu como colaboradores. Pretendia “Mudar a maneira como as pessoas pensam”. A obra data do século XVIII, último volume publicado em 1772. 

Vivemos o contraponto: o retrocesso do pensamento, o retorno à Idade Média.

Para o titular do MPF que avançou sobre o Houaiss não aprendeu, nos bancos que lhe outorgaram o ‘mérito’, que dicionário não conceitua, apenas expõe significados em torno de expressões e falares. Aprendemos no primeiro, por exemplo, que a palavra manga possui muitos significados: de sinônimo de pastagem, de fruta, de peça de vestuário, objeto de proteção a castiçais, filtro, chaminé de candeeiro etc. inclusive tempo do verbo mangar, sinônimo de crítica.

E estamos nós a transitar por entre entendimentos e interpretações ao sabor de meritocratas, os que se sentem diferentes da plebe ignara (obrigado Stanislaw Ponte Preta) porque – muitas vezes saindo dos cueiros de bancos escolares – ultrapassaram uma seleção em concurso (este, o mérito) sem haver tempo de lerem dicionários, vocabulários, e – não exijamos tanto – em torno de signos e significados, para não serem escorraçados por sintáticas, semânticas e pragmáticas. E não pretendemos, daqui, que enveredem por compreender outra vertente semiótica: a que estabelece a distinção entre código apriorístico e a imprevisibilidade da percepção da mensagem, entre a redundância e a informação.

Recomendamos ao paciente leitor deste escriba de província – dentre as releituras a que nos impusemos recentemente – “O Alienista” como premonição machadiana para o quanto praticado por alguns membros do Ministério Público Federal.

Huummmm! E bem Bacamarte, porque vemos ideologia em muito do que está a acontecer.
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Post. scriptum:

Ainda bem que essa gente - nestes tempos de cultura sem respeito e sem valia, não deram de interferir em peça de Elomar Figueira, versos postos em "Arrumação":


Os cigano já subiro bêra ri
É só danos, todo ano nunca vi
Paciênca, já num guento a pirsiguição
Já sô caco véi nesse meu sertão
Tudo que juntei foi só pra ladrão