domingo, 2 de fevereiro de 2020

Do 'racismo reverso' a Machado de Assis

Temos abordado – em oportunidades várias, inclusive neste espaço – dos riscos decorrentes da ideologização como instrumento de poder por estamentos sociais. Através da ideia afirma-se o poder. Tal ocorre com a existência de organismos institucionais da sociedade, que, sob tal viés, a encontram como única forma de manutenção nesta sociedade e civilização contemporâneas.

A distorção ocorre, justamente, quando se busca impor a supremacia deste ou daquele grupo. Originariamente oriundo da defesa e da sobrevivência naqueles historicamente violentados, dominado, como reação – e ocupação de espaço – diante do dominante histórico.

Mas, quando conceitos individualistas (de grupos) distanciam-se do interesse geral, do coletivo, há supremacia de uns sobre os outros e não a igualdade anunciada como pedra de toque.

Recente decisão judicial absolveu jovem denunciado pelo Ministério Público Federal da acusação de “racismo reverso”, qual seja a postura racista de negros contra brancos.

Em sua decisão o magistrado pontuou, o que em destaques fazemos a partir do GGN:

“Na sociedade brasileira, a pessoa branca nunca foi discriminada em razão da cor de sua pele. É dizer, jamais existiu, como fato histórico, a situação de uma pessoa branca ter sido impedida de ingressar em restaurantes, clubes, igrejas, ônibus, elevadores etc”, [...] “nenhuma religião de matriz europeia sofreu discriminação no Brasil, a ponto de seus praticantes serem perseguidos e presos pela Polícia, ou terem seus locais de culto depredados e destruídos por pessoas de crenças compartilhadas pela maioria da população, tal como se deu com as religiões de matriz africanas”.

E mais disse: a desnecessidade de aplicação de políticas afirmativas em relação às pessoas brancas “por não existir quadro de discriminação histórica reversa deste grupo social nem necessidade de superação de desigualdades históricas sofridas por pessoas brancas.” 

Tanto que “Não existe racismo reverso, dentre outras razões, pelo fato de que nunca houve escravidão reversa, nem imposição de valores culturais e religiosos dos povos africanos e indígenas ao homem branco, tampouco o genocídio da população branca, como ocorre até hoje o genocídio do jovem negro brasileiro. O dominado nada pode impor ao dominante”,

Causou-nos espécie uma singularidade: a necessidade de uma expressão como “racismo reverso” para diferenciar (postura que não deixa de ser racista) o racismo praticado por pessoas brancas do racismo praticado por pessoas negras.

Afinal, ficamos nós olhando para o teto de pucumãs a indagar: tudo não seria racismo?

E nos veio à mente um outro instante daquela parcela meritocrática do MPF, dentre outros quejandos: uma ação movida por um representante do órgão contra o Dicionário de Antônio Houaisss. Vamos ao caso concreto.

Ainda hoje não mais disponível o verbete ‘cigano’ no Dicionário Houaiss. O respeitado objeto de consulta foi acionado pelo MPF para retirar um dos muitos significados do termo cigano, dentre eles aquele(s) que o traduz(em) como treiteiro, finório, sabidório, enganador, mau pagador. 

Na realidade, cuidara o dicionário – e não poderia ser de outra forma – de reunir “significados” e não de conceituar a etnia zíngara.

Muito triste saber-se de iniciativas como a tal do MPF contra o Dicionário Houaiss. Certamente parte daqueles que se valem da meritocracia como sinônimo de ‘deus’ na terra por haverem passado em concurso público e tornam-se mais enciclopedistas que Diderot... A "Enciclopédia" configurou a grande representação do que consiste no pensamento Iluminista, de ruptura com a tradição acomodada destituída de dialetização, da utilização racional das ciências, circunstância não percebida ou dimensionada por nossos 'enciclopedistas'. 

Diderot dispôs de Voltaire, Rousseau e Montesquieu como colaboradores. Pretendia “Mudar a maneira como as pessoas pensam”. A obra data do século XVIII, último volume publicado em 1772. 

Vivemos o contraponto: o retrocesso do pensamento, o retorno à Idade Média.

Para o titular do MPF que avançou sobre o Houaiss não aprendeu, nos bancos que lhe outorgaram o ‘mérito’, que dicionário não conceitua, apenas expõe significados em torno de expressões e falares. Aprendemos no primeiro, por exemplo, que a palavra manga possui muitos significados: de sinônimo de pastagem, de fruta, de peça de vestuário, objeto de proteção a castiçais, filtro, chaminé de candeeiro etc. inclusive tempo do verbo mangar, sinônimo de crítica.

E estamos nós a transitar por entre entendimentos e interpretações ao sabor de meritocratas, os que se sentem diferentes da plebe ignara (obrigado Stanislaw Ponte Preta) porque – muitas vezes saindo dos cueiros de bancos escolares – ultrapassaram uma seleção em concurso (este, o mérito) sem haver tempo de lerem dicionários, vocabulários, e – não exijamos tanto – em torno de signos e significados, para não serem escorraçados por sintáticas, semânticas e pragmáticas. E não pretendemos, daqui, que enveredem por compreender outra vertente semiótica: a que estabelece a distinção entre código apriorístico e a imprevisibilidade da percepção da mensagem, entre a redundância e a informação.

Recomendamos ao paciente leitor deste escriba de província – dentre as releituras a que nos impusemos recentemente – “O Alienista” como premonição machadiana para o quanto praticado por alguns membros do Ministério Público Federal.

Huummmm! E bem Bacamarte, porque vemos ideologia em muito do que está a acontecer.
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Post. scriptum:

Ainda bem que essa gente - nestes tempos de cultura sem respeito e sem valia, não deram de interferir em peça de Elomar Figueira, versos postos em "Arrumação":


Os cigano já subiro bêra ri
É só danos, todo ano nunca vi
Paciênca, já num guento a pirsiguição
Já sô caco véi nesse meu sertão
Tudo que juntei foi só pra ladrão


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