Temos abordado – em oportunidades várias, inclusive neste espaço – dos riscos
decorrentes da ideologização como instrumento de poder por estamentos sociais.
Através da ideia afirma-se o poder. Tal ocorre com a existência de organismos institucionais da sociedade, que, sob tal viés, a encontram como única forma de
manutenção nesta sociedade e civilização contemporâneas.
A distorção ocorre, justamente, quando se busca impor a supremacia
deste ou daquele grupo. Originariamente oriundo da defesa e da sobrevivência
naqueles historicamente violentados, dominado, como reação – e ocupação de espaço
– diante do dominante histórico.
Mas, quando conceitos individualistas (de grupos) distanciam-se do interesse
geral, do coletivo, há supremacia de uns sobre os outros e não a igualdade
anunciada como pedra de toque.
Recente decisão judicial absolveu jovem denunciado pelo Ministério
Público Federal da acusação de “racismo reverso”, qual seja a postura racista
de negros contra brancos.
Em sua decisão o magistrado pontuou, o que em destaques fazemos a partir do GGN:
“Na
sociedade brasileira, a pessoa branca nunca foi discriminada em razão da cor de
sua pele. É dizer, jamais existiu, como fato histórico, a situação de uma
pessoa branca ter sido impedida de ingressar em restaurantes, clubes, igrejas,
ônibus, elevadores etc”, [...] “nenhuma religião de matriz europeia sofreu
discriminação no Brasil, a ponto de seus praticantes serem perseguidos e presos
pela Polícia, ou terem seus locais de culto depredados e destruídos por pessoas
de crenças compartilhadas pela maioria da população, tal como se deu com as
religiões de matriz africanas”.
E mais disse:
a desnecessidade de aplicação de políticas afirmativas em relação às pessoas
brancas “por não existir quadro de discriminação histórica reversa deste grupo
social nem necessidade de superação de desigualdades históricas sofridas por pessoas
brancas.”
Tanto que “Não existe racismo reverso, dentre outras razões, pelo
fato de que nunca houve escravidão reversa, nem imposição de valores culturais
e religiosos dos povos africanos e indígenas ao homem branco, tampouco o
genocídio da população branca, como ocorre até hoje o genocídio do jovem negro
brasileiro. O dominado nada pode impor ao dominante”,
Causou-nos espécie uma singularidade: a necessidade de uma expressão
como “racismo reverso” para diferenciar (postura que não deixa de ser racista)
o racismo praticado por pessoas brancas do racismo praticado por pessoas
negras.
Afinal, ficamos nós olhando para o teto de pucumãs a indagar: tudo não
seria racismo?
E nos veio à mente um outro instante daquela parcela meritocrática do
MPF, dentre outros quejandos: uma ação movida por um representante do órgão
contra o Dicionário de Antônio Houaisss. Vamos ao caso concreto.
Ainda hoje não mais disponível o verbete ‘cigano’ no Dicionário Houaiss.
O respeitado objeto de consulta foi acionado pelo MPF para retirar um dos
muitos significados do termo cigano, dentre eles aquele(s) que o traduz(em) como
treiteiro, finório, sabidório, enganador, mau pagador.
Na realidade, cuidara o dicionário – e não
poderia ser de outra forma – de reunir “significados” e não de conceituar a etnia
zíngara.
Muito triste saber-se de iniciativas como a tal do MPF contra o Dicionário
Houaiss. Certamente parte daqueles que se valem da meritocracia como sinônimo
de ‘deus’ na terra por haverem passado em concurso público e tornam-se mais enciclopedistas
que Diderot... A "Enciclopédia" configurou a grande representação do que consiste
no pensamento Iluminista, de ruptura com a tradição acomodada destituída de
dialetização, da utilização racional das ciências, circunstância não percebida ou dimensionada por nossos 'enciclopedistas'.
Diderot dispôs de Voltaire,
Rousseau e Montesquieu como colaboradores. Pretendia “Mudar a maneira como as
pessoas pensam”. A obra data do século XVIII, último volume publicado em 1772.
Vivemos
o contraponto: o retrocesso do pensamento, o retorno à Idade Média.
Para o titular do MPF que avançou sobre o Houaiss não aprendeu, nos
bancos que lhe outorgaram o ‘mérito’, que dicionário não conceitua,
apenas expõe significados em torno de expressões e falares. Aprendemos no primeiro,
por exemplo, que a palavra manga possui muitos significados: de sinônimo de
pastagem, de fruta, de peça de vestuário, objeto de proteção a castiçais,
filtro, chaminé de candeeiro etc. inclusive tempo do verbo mangar, sinônimo de
crítica.
E estamos nós a transitar por entre entendimentos e interpretações ao
sabor de meritocratas, os que se sentem diferentes da plebe ignara (obrigado
Stanislaw Ponte Preta) porque – muitas vezes saindo dos cueiros de bancos
escolares – ultrapassaram uma seleção em concurso (este, o mérito) sem haver
tempo de lerem dicionários, vocabulários, e – não exijamos tanto – em torno de signos e
significados, para não serem escorraçados por sintáticas, semânticas e
pragmáticas. E não pretendemos, daqui, que enveredem por compreender outra
vertente semiótica: a que estabelece a distinção entre código apriorístico e
a imprevisibilidade da percepção da mensagem, entre a redundância e a informação.
Huummmm! E bem Bacamarte, porque vemos ideologia em muito do que está a acontecer.
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Post. scriptum:
Ainda bem que essa gente - nestes tempos de cultura sem respeito e sem valia, não deram de interferir em peça de Elomar Figueira, versos postos em "Arrumação":
Os cigano já subiro bêra ri
É só danos, todo ano nunca vi
Paciênca, já num guento a pirsiguição
Já sô caco véi nesse meu sertão
Tudo que juntei foi só pra ladrão
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