No 16 de dezembro faria
103 anos; faleceu sem alcançar os 64. Da mais nobre estirpe sertaneja. Não por
honrarias de família, títulos ou brasões. Mas pela intrepitude em decorrência
da vivência naqueles confins de mundo, à época muito menos assistido que hoje.
Por ali e além aprendeu a traduzir os
lajedos como natural à crueza do ambiente. E quem não o fizer sucumbe.
Nascer por ali exige marca
na testa em ferro em brasa como mensagem a ser lembrada diante de um espelho:
sobreviver é tudo. Sem faltar o “Se Deus quiser”! – porque Ele se tornou dos púlpitos único caminho para tudo ‘desculpar’
do que o semelhante por aqui causa ao semelhante.
Multípara, com sete
sobreviventes: dos nove, um levado aos dois meses; outro nasceu na terra quando
já no Paraíso.
Fazia milagres com o quase
nada. De invejar economistas, que só sabem teorizar em torno da acumulação da
riqueza, porque em seus vocabulários nenhuma palavra há sobre a escassez como
sinônimo de fome, onde a vítima participa tão somente como unidade estatística.
Desenvolveu singular
técnica para atender as necessidades familiares em nível de Vitamina C: uma
laranja espremida, tornada laranjada, e o bagaço levado ao próprio estômago. A
laranjada desdobrava-se em tantos copos ou meio copos até o limite de atender
os filhos.
Quando terminava o cozer,
a lavagem dos pratos de esmalte, de carrear água da cisterna para o encher de potes
e moringas, hora de cuidar da banca dos que estudassem e logo o pedalar na
velha máquina Singer para costurar os retalhos e torna-los em colchas, cobertas
ou cerzir as roupinhas dos filhos. De vez em quando um vestidinho, um
calçãozinho.
Nunca se viu nela uma
lamúria, um desassossego.
Tampouco alimentou ‘papai
noel’ algum. Tanto que aprendemos a assistir os visitados escolhidos pela lenda
debruçados no batente das janelas quando amanhecido o dia. Até que
esquecêssemos que não fôramos visitados pelo velhinho porque, muito provável,
desobedientes quando insistimos em ficar acordados a sua espera para agradecer
por tudo.
No rádio da vizinha, “seja
rico ou seja pobre, o velhinho sempre vem” abafava o alarido da alegria infante
exibindo bonecas, carrinhos, bicicletas, bolas, brinquedos vários.
Mas havia algo mais.
Sabido e consabido que carne
seca – quando dispõe –, rapadura e farinha de mandioca são o milagre dos peixes
que faz sobreviver no sertão caatingado e resseguido.
Para ela, outro milagre:
quando tudo faltava – do dinheiro ao que comprar – café e farinha. Reunidos
naquele manjar dos deuses chamado mingau de café.
O mingau de café de
Adelaide.
A “mãe e heroína” que nos
levou “à compreensão mais extrema do significado de saudade”.*
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*Extraído da dedicatória
levada ao romance Amendoeiras de Outono (Via Litterarum, 2ª edição, 2013).
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