domingo, 5 de abril de 2020

Tragédias e ironias


Stefan Zweig (1881-1942), austríaco, famoso por escrever “Brasil País do Futuro” (1941), suicidou-se, em Petrópolis. A ironia afirma que não teria suportado o presente.

E não seria impróprio afirmar que as razões para o suicídio de Zweig, por irônico que seja, persiste no tempo e avançam, inexoráveis, pelo mundo nessa contemporaneidade.

Claro que esta Terra já foi um dia para todos. Mas alguns tomaram conta dela, se apropriaram do trabalho alheio e a riqueza produzida a concentraram em suas mãos, o que lhes assegurou poder.

Veem-nos os versos de Virgílio, no Livro I, das Geórgicas, como alento;

“... Ninguém antes de Jove as terras desmembrava:
A lei que as fere agora, e marcos lhes encrava
que dor faria então. Se tudo era de todos,
a paz era comum a toda a humanidade;
a terra, abrindo a flor dos sonhos soterrados,
punha frutos nas mãos dos homens sossegados”.

Destaque no curso da semana a atuação de governos exercitando típica pirataria tendo por butim material médico para combate ao covid-19 adquirido por países ao redor do mundo e que ficaram a ver navios ao largo.

Dentre os denunciados os Estados Unidos capitanearam as ações de apropriação de materiais, intervindo em aeroportos e retendo encomendas destinadas a outros países. Não bastasse, no jogo de quem tem pode mais estaria pagando até 4, 5 vezes o valor do material.

As posturas de quem promove a pirataria ou de empresas que descumprem contratos para beneficiar-se de vantagens pecuniares demonstra, à sobeja, que isto que denominamos de Civilização não alcançou – e tende a tardar alcançar – a compreensão de valores primários para a convivência em sociedade, dentre os quais a solidariedade.

Considerando os Estados Unidos – nunca dedicado a respeitar os outros – vem-nos a oportunidade de releitura de carta escrita pelo coronel Robert M. Bowman (1934-2013), com 122 missões de combate no Vietnã, autoridade em espaço, ambientalismo e segurança nacional, fundador da Igreja Católica Unida, dirigida ao presidente Bush sob o título Diga a verdade sobre o terrorismo, Sr. Presidente:

[...] o povo precisa saber a verdade, Sr. Presidente, e o Sr. não contou as razões pelas quais somos vítimas do terrorismo [...]

O Sr. Disse que somos alvos porque defendemos a democracia, a liberdade e os direitos humanos. Que absurdo, Sr. Presidente! Somos alvos dos terroristas porque na maior parte do mundo nosso governo defende a DITADURA, a ESCRAVIDÃO e a EXPLORAÇÃO HUMANA. Somos alvos dos terroristas porque somos odiados e somos odiados porque nosso governo faz coisas odiosas. Em quantos países os agentes de nosso governo depuseram líderes eleitos popularmente para substituí-los por marionetes desejosos de vender seu próprio povo a corporações multinacionais americanas.

[...] Destituímos continuamente líderes populares que desejavam que as riquezas de suas terras fossem repartidas pelo povo que as gerou. Substituímos líderes populares por tiranos assassinos.

[...] De país em país nosso governo obstruiu a democracia, sufocou a liberdade e pisoteou os direitos humanos. Por isso somos alvo dos terroristas. O povo do Canadá desfruta da democracia, da liberdade e dos direitos humanos, como o povo da Suécia e da Noruega. O senhor já ouviu de embaixadas canadenses, suecas ou norueguesas sendo bombardeadas? Nós não somos odiados porque defendemos a democracia, a liberdade e os direitos humanos. Somos odiados porque nosso governo nega essas coisas aos países do Terceiro Mundo, cujos recursos são cobiçados por nossas corporações multinacionais.

[...] Resumindo, deveríamos ser bons em vez de maus.” 
(Trechos extraídos do artigo Um pouco de fé no meu ceticismo!, de Fausto Wolff, em A imprensa livre de Fausto Wolff, editado por L&PM, 2004, p. 66 e 67).

Não há ironia em quem afirma que Stephen Zweig não teria suportado o presente. Como se sentiria diante de ações como a do governo dos EUA de impedir que Cuba receba ajuda humanitária ou que envie seus médicos para ajudar países outros, que seus agentes surrupiem material de combate ao covid-19 destinado a países vários, inclusive o Brasil (a Bahia em particular), enquanto em Guayaquil, no Equador, os mortos começam a ser incinerados em plena rua?

E enquanto 157 países impõe o isolamento social para prevenir a pandemia nesta terra brasilis, que abrigou Zweig, há quem defenda a liberação geral no jogo elementar para sempre levar vantagem.

Uma parcela apaixonada e deslumbrada vê em governantes o ‘deus/messias’ ansiado, que sempre encontrará uma profecia em suas falas dentro da mítica sebastianista rediviva fora dos rincões naturais, o Nordeste. Ainda que em estágio permanente de acuar as instituições, vocacionados que são para a ditadura.

Todos temos nosso deus/messias, padrão Antigo Testamento: vingador para aqueles que não leiam sob sua cartilha. Aqui e alhures.

Não podemos é perder a capacidade de ler Virgílio e de manter o olhar irônico sobre tudo.


Um comentário:

  1. Enquanto isso, os salários dos funcionários da FICC em Itabuna estão atrasados.
    Sangue ruim esse Trindade viu. Com a palavra, Fernando Gomes

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