domingo, 5 de julho de 2020

‘Confesso que vivi’ e vi

Do chileno Pablo Neruda (1904-1973) – morto no imediato da tragédia que se abateu sobre o Chile (doze dias depois do 11 de setembro de 1973)  – a publicação póstuma “Confesso que vivi”. Nela relata em seu último capítulo (morreu enquanto ainda o escrevia) a amargura das esperanças destruídas pela violência do golpe militar que derrubou Salvador Allende. A dor de quem via sua pátria aviltada, sacrificada na pira das ambições e interesses. 

Vivemos nós – escriba de província – a cada dia que passa, a cada acontecimento, a cada absurdo, em profundo estágio de desencanto. Não porque nos falhe a esperança, a capacidade de lutar. Mas por percebermos que não cabe, à realidade nesta terra brasilis da atualidade, a moral expressa na fábula do passarinho que sozinho carreia no bico água para apagar o fogo que devora sua floresta. Não, não vemos o fazer sua parte sem que haja uma consciência em que se sustentar. E essa consciência residiria na confiança nas instituições, onde permeadas de homens. Afastadas algumas honrosas exceções nos defrontamos com o que há de mais iníquo e sórdido. Um país de surrealismo tal que até a morte criminosa se torna coisa comum e banal, tão natural a tornaram.

Eis que, ultrapassados os 74 anos de vida podemos ‘confessar que vivemos’. No curso destes anos acompanhando avanços e retrocessos. E por tal vivência comparar com o que ora vemos. 

Aos nove anos despertamos naquela manhã de agosto com a zoada de feira-livre, a cidade sob o clamor do choro uníssono “Getúlio Vargas morreu!”. Não compreendíamos, como hoje, o que ocorrera em sua dimensão política. Como também não compreenderíamos à época as razões por que tantas substituições no Catete até que assegurada a posse de Juscelino Kubitschek, período de singular alegria no país (incluindo o primeiro Mundial da Seleção), mas atribulado com duas revoltas da Aeronáutica (Aragarças e Jacareacanga). Vivemos as crises que levaram ao Parlamentarismo, ao Plebiscito, ao golpe civil-militar, a implantação da ditadura e sua queda formal (quando pudemos votar pela primeira vez para presidente da República já aos 43 anos de idade), a Constituinte arrumada, a denominada redemocratização, governos entreguistas e nacionalistas etc. Vivemos instantes de bonança, instantes de fastio.

Aprendemos em torno da tentativa de potentados de ocuparem plenamente esta terra abençoada, a busca incessante por tomar suas riquezas, controlar o seu povo. Desde os idos dos 20 no século passado, quando a Inglaterra, no período Bernardes, tentou tomar o Banco do Brasil e o Lóide Brasileiro. 

Um século ultrapassado de idas e vindas, mas, pelo menos, não sabíamos da ação nefanda de agentes públicos custeados pelo dinheiro nosso de cada dia em dimensão tão grave.

O estágio a que chegamos – em nível da atuação de instituições do Estado – demonstram à sorrelfa que não mais dispomos de um país, mas de um empório sem gerência, onde qualquer um encontra meios de ser servido.

Não mais a intervenção ocorre de fora para dentro mas no âmago de instituições que deveriam – por delimitação constitucional – defender o país como Estado independente. E, o mais grave, o que ocorre intencionalmente por parte de alguns decorre da não menos criminosa omissão de outros.

A mais recente não pode alimentar esperanças: instituições brasileiras em conluio com agências governamentais dos Estados Unidos minando nossa soberania e destruindo o que dispúnhamos. Agentes brasileiros da Procuradoria da República (sem descurar de seus superiores), Polícia Federal, Magistrados federais formando uma quadrilha para assaltar o país em benefício alheio.

Assim, já não confirmado apenas o uso de parcela do Ministério Público Federal, Judiciário federal e Polícia federal para atuação político-eleitoral. Também em crimes de traição à pátria. Por muito menos (por tentar) a Coroa Portuguesa enforcou Tiradentes.

Vida que vai...

Cada um vive também o seu Vietnã. Com 64 mil mortos em quatro meses de ‘harmoniosa’ convivência com o Covid-19 cá estamos a ultrapassar os 58 mil estadunidenses na guerra do Vietnã em nove anos. Aqui sem bombas de napalm.

                      

O napalm tupiniquim é outro. Aquele que Jessé Souza denomina de “A Elite do Atraso”.

Afinal, como dizem senhoras de sua ilustre representação em troca de amenidades (uma delas mulher de um governador de estado) nossos miseráveis que dormem ao relento o fazem porque gostam.

Por tão ilustrado raciocínio a mulher estuprada o é porque gosta, os negros assassinados nas periferias o são porque gostam, a fome existe porque o faminto gosta, índios, sem-terra e sem-teto assassinados o são porque gostam.

Por tal forma de pensar dispensamos repetir Catão – “Delenda est Cartago – porque a Roma está no seio de nossa classe dominante.

Por isso confessamos: vivemos e vimos. 

Inclusive o que nunca imaginamos ver: a amargura das esperanças destruídas pela violência de golpes. 


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