Paixão
A Quaresma nos tempos idos da infância difere em muito da que vivemos contemporaneamente, católicos de crença religiosa, porque este escriba de província não viveu – para em torno deles se manifestar – com os Ortodoxos, os Anglicanos e os Luteranos.
Daqueles que se esbaldassem, descontando a clausura futura na terça gorda do Carnaval, muitos cedo deixavam a folia para que pudessem estar na Missa das Cinzas, recebendo a marca que testemunharia a confissão religiosa e sinalizando o compromisso com a reflexão que o período entrante exigia e lembrando-nos que 'somos pó e a ele voltaremos', razão por que de 'arrependermo-nos e crermos no Evangelho'..
Já a partir das Cinzas às quartas e sextas-feiras não se comia carne vermelha. E a branca – preferida e recomendada – não se fazia de frango mas de peixe, bacalhau da Noruega em abundância, exposto nas portas das vendas – como denominados os mercadinhos de então – em caixotes ou pendurados na altura da porta.
A partir do domingo de Ramos – ultrapassada a euforia pela liturgia da chegada do Nazareno em Jerusalém – da segunda em diante no cardápio só peixe, bacalhau reinando. A carne vermelha somente retornava a partir do sábado de Aleluia.
Se trazia a Quaresma uma receita culinária específica – regada a peixe/bacalhau – em dimensão meditativa tornava-se período de permanente reflexão, de comiseração em relação ao que havíamos cometido de censurável, do que de mal fizéramos ao semelhante, que pecados os cometidos.
A Via Sacra permanentemente observada, cada Estação em consonância com a conversão que se nos exigia o período. A penitência, como ato confessor, transformava-nos, preparando-nos para converter as mazelas temporais.
Perdia a comunidade o controle do tempo, porque os sinos emudeciam. O som só de matraca, chamando para os ofícios.
Os santos nos altares vestiam-se de roxo.
Finalizando a Quaresma e iniciado o Tríduo Pascal, ainda na Quinta Santa acompanháramos contritos a procissão do Senhor dos Passos, antecedência de sofrimento na do Senhor Morto, na Sexta seguinte, quando o canto da Verônica "O vos omnes..." ecoava fundo no penitente, aprofundando a angústia da humanidade em cada um.
Já presente a era do rádio, na Sexta-feira da Paixão somente música religiosa, de andamento gregoriano e erudito-reflexiva. Apoio para o jejum e a meditação.
Os filhos buscavam a bênção dos pais, com reverência inaudita. Sentados estes; ajoelhados aqueles. Falava-se baixo, o estritamente necessário para não ferir o silêncio obsequioso. Nada de risadas e brincadeiras.
O comércio cerrava as portas. A cidade em silêncio apenas gerava ruído no transitar dos passos para a procissão e os ofícios religiosos.
No cinema – em várias e concorridas sessões – "A Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo" (1905), de Ferdinand Zecca, com seus personagens andando ligeirinho, tantas as podas e cortes reduzindo os quadrinhos da celulose.
Os tempos idos da infância – há 40, 50 anos – fazia-nos de outro mundo. Mundo em que havia tempo de oração, penitência, purificação e conversão.
Diverso do atual, em que a 'paixão' que assola é a de dominar e explorar o semelhante. Em todas as dimensões.
Um mundo que bem pode ser visto como o vê as freiras de clausura: atrás das grades.
Convento de Santa Tereza, no Morro de Cabeçudas, em Itajaí, tem 13 freiras, a mais jovem com 28 anos e a mais idosa com 94 anosFoto: Rafaela Martins / Agencia RBS
Nenhum comentário:
Postar um comentário