domingo, 24 de maio de 2020

Este Brasil de Gregório

De uma coisa não podemos deixar de reconhecer no atual governo: muito breve – pelo andar da carruagem – o Brasil será o epicentro do Covid-19 no planeta, já tendo alcançado o segundo lugar em número de infectados e mortes. E uma outra vitória: os militares da reserva apresentam-se para a sociedade como voz das Forças Armadas; não sabemos se quem efetivamente detém a voz de comando para atirar o fará.

Mas, caríssimo e paciente leitor, a tempestade que assola o país não é a pandemia (que passará) mas a classe dominante de um país moribundo, que ri de tragédias, ela que é a própria tragédia.

Aproveitar o instante em que a pandemia se acentua para aprofundar o butim é a tônica de seu pensamento. Está dito na fala de auspiciosos de seus representantes na reunião ministerial.

Sim, uma reunião ministerial que veio a público.

De nossa parte, não vemos  nada além do que já sabíamos se buscamos culpar o inquilino do Alvorada. Anotaram de sua boca 35 palavrões expressados (transitando entre amenidades como “porra” e “caralho”) onde se pensava estivesse sendo cumprido o rito natural a uma reunião de governo, que deve obedecer ao ‘solene’ e à ‘liturgia’ como elementos a legitimá-la.  

Mas, que escândalo há se ali está traduzida a mais perfeita manifestação de uma classe dominante ora tão bem representada, como nunca o fora? Para que mulher no ministério, idosos etc. se o boquirroto se acercou deles porque sabia-os ‘confrades’?

Não caro leitor, não há do que nos escandalizarmos. Afinal, no dia a dia a delicada e cívica postura do chefe da nação se expressa com xingamentos e gestos chulos como ‘dar banana’.

Temos, sim, e não podemos deixar de reconhecer, tão somente – na pessoa do inquilino do Alvorada – a exteriorização de um câncer que permeia a conformação da sociedade brasileira em delírio de poder. Um câncer que corrói o país desde sua origem.

Nada a reclamar. Apenas confirmar que o inquilino do Alvorada se fez cercar de iguais. Não fora isso, indaguemos: qual de seus ministros pediu exoneração diante do quadro dantesco moralmente, que fere os bons costumes e as instituições? 

Não, estão acostumados. E gostam. A isso se apegam e ao mito aplaudem. São iguais, todos. Como iguais são todos que o colocaram lá.

Caso alguém duvide, quem imagina que os que hoje o criticam ficarão contra ele se surgir uma possibilidade eleitoral de forças progressistas/nacionalistas vencerem as eleições? Estarão com ele, sim. Porque a classe dominante que retomou a galeota não se preocupa com o povo, apenas consigo mesmo.

E nosso conhecido STF está aí, acovardado, seguindo ritos (que atropelou em passado recente), malhando lâmina d’água, com decisões inócuas quando cabe enfrentar o inquilino do Alvorada. Já parte para o singular formato decisório cuja conclusão podemos denominar como inovadora natureza recomendativa, não mais constitutiva, declarativa etc.

Pelo andar da carruagem tudo será imensa pizza. Aí estão para assá-la os de sempre nesta contemporaneidade: o próprio STF, a PGR, Congresso. Em fogo aquecido pelos interesses da mídia com a lenha destes tempos: direitos. Servida com pão amassado na padaria do capital especulativo, a que todos defendem dentro de seus respectivos limites e compromissos.

E, sucumbindo, a denominada esquerda entra no jogo por um caminho que entende único (talvez até o seja para o instante e limites de sua atuação): o “fora”. E o pingue-pongue se instala: contra ou a favor. Para uns e outros o jogo eleitoral como única saída. Não se vislumbra o projeto, até porque o “fora” não o é em si. E como projeto não convence. Pode alimentar conquistas, mas não convence.

E cá nos vemos diante de absurdos como o defendido pelo inquilino do Alvorada em plena reunião ministerial, como a de que o “povo armado” é solução. 

Certamente tal expressar soa como um ângelos aos ouvidos dessa gente. Afinal, caminha-se para a construção não de um estado policial, mas de um estado miliciano porque estamos no limiar de materialização de um imaginário ‘faroeste’.

Como nos velhos faroestes os assaltos, que não mais o são a criadores de ovelhas ou agricultores, a bancos. Mas ao Banco do Brasil, ao patrimônio, florestas e riquezas pátrias, ao povo. Aproveite-se a cortina de fumaça da pandemia e ataquemos – dizem-no sem pedir segredo.

Eis um triste Brasil, o mesmo de Gregório,

ó quão dessemelhante 
Estás e estou do nosso antigo estado!
Pobre te vejo a ti...
A ti tricou-te a máquina mercante,
Que em tua larga barra tem entrado,
...
Tanto negócio e tanto negociante.

Certo que não estamos no século XVII, mas lá vivendo em pleno séc. XXI. 

Porque os criticados por Gregório de Matos Guerra (1636-1696) “que em tua larga barra tem entrado” permanecem os mesmos, hoje como ontem.

Sem Barroco. Só barroca.

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