domingo, 7 de junho de 2020

A fábula e o fabuloso. O que nos assusta

A significação das palavras representa um capítulo de singular importância no estudo da gramática, tendo por objeto o sentido ofertado por elas dentro de determinado contexto, definido como Semântica. Trazendo-a à compreensão no plano da antropologia social não temos como não perceber que os fatos que ‘edificaram’ esta terra brasilis nos últimos quatro anos estão a configurar significações que se expressam bastante distintas do que antes imaginávamos.

Ora vivemos a singularidade semântica decorrente da anedota do marido traído, que flagrou o incidente acontecendo no sofá da sala, e que determina, como solução, a retirada do sofá. Ou seja, a desculpa se torna mais importante que o fato em si. Ou da montagem do argumento da fábula “O lobo e o cordeiro” – seja-o pela lição de moral de La Fontaine ou de Monteiro Lobato – para reformular a realidade. E como um tal de Covid-19 deu de crescer em número de contaminados e mortos cuide-se de suprimir a informação por parte do governo e as ovelhas que balem nas avenidas se vejam diante do lobo.

O inquilino do Alvorada mantém-se no trilhar proposto e ameaça os movimentos que o criticam com armas para confrontá-los; afinal estão córrego abaixo turvando a água que bebe acima.

O quadro clínico é de paranoia. Que tem causa nas incertezas, nos erros cometidos, na insegurança, na absoluta incompetência para gerir. Não há como dominar a realidade, muito menos como compreendê-la. E vai aproveitando a fábula, ameaçando quem bebe córrego abaixo, dele lobo afirmando que turvamos a água que está acima enquanto tira o sofá (dados do Covid-19) da sala.

Busca o inquilino – e o tem demonstrado à sorrelfa – confirmar que o poder o tornou forte. E o faz como lobo da fábula: a razão do mais forte é sempre a melhor razão. Nele a inexistência de qualquer resquício de ética, fazendo prevalecer a razão de que contra a força não há argumentos.

As instituições estão brincando com o fogo que queima a democracia. Os discursos enfrentam somente o inquilino do Alvorada sem demonstrar qualquer avaliação concreta em torno do que tudo isso sustenta.

Ele não está só. Pouca gente, há de se dizer. Também dizem que tem perdido aliados. Mas não nos esqueçamos que outros aí estão. Que o diga o pentecostalismo católico, tão dinheirista como os criticados evangélicos que vendem água do rio Jordão e mesmo feijões milagrosos. 

Mas, caro leitor, parecem não perceber (e dimensionar o que isso representa) que com 550 cartuchos mensais e a liberação da venda de metralhadoras antes privativas das forças armadas liberadas está sendo construída a força como argumento.

O ministro do STF, Gilmar Mendes (ambos – Mendes e STF – artífices do que aí está) argumenta que pela Constituição não há admissibilidade de autogolpe. Ninguém perguntou a ele, Gilmar, se 2 bilhões de cartuchos (possibilidade a partir dos 550 mensais liberados) entendem de Constituição, considerando apenas as armas autorizadas atualmente para uso pessoal e caça (350 mil cada uma), como alerta a BBC Brasil.
      
A inquilino do Alvorada tornou-se o fabuloso narrador conforme sua imaginação, seguido por um punhado que saliva quando fala. Mas este punhado pode ser o detentor da força que o inquilino detém através do poder que lhe outorgaram as urnas. Se fraudulentas ou não que o diga a Justiça Eleitoral quando o desejar porque quando deveria fazê-lo não o fez.

É tempo de imaginar se há espaço para confronto, radicalização de pretensões ou de conciliar, ainda que perdendo algo de si por pouco tempo para não perder tudo por muito mais tempo.

É muito mais necessário tentar pelo menos compreender a razão por que do catolicismo pentecostal está pedindo apoio ao inquilino quando este retira dinheiro do Bolsa Família destinado ao Nordeste para garantir custear comunicação (porque as verbas orçamentárias já se esgotam), distribuídas entre amigos vários, entre os quais busca estar o catolicismo pentecostal, louco para participar do universo de fake news.

Afinal aí está: a fábula nos ensina, o fabuloso a semantiza. Não lhe faltam leitores aguardando a oportunidade de aplaudi-lo euforicamente. Como no velho oeste do cinema: com tiros.

No caso desta terra brasilis, tiros contra as instituições para assegurar eternidade ao fabuloso.

Instituições ajoelhadas no pelourinho, diante do feitor que as chibata. As mesmas instituições que por nada (porque nada provado) tiraram do poder uma presidente.

Mas, caríssimo leitor, não é o inquilino do Alvorada (que sempre foi de intimidações, desde quando ameaçou explodir a adutora do Guandu em 1986), o que nos preocupa são a inércia e a covardia de se fazerem impor as instituições diante de ano e meio de descalabro.

Porque, pelo andar da carruagem, o negro terá nova significação muito brevemente: será a cor da luz do dia. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário