domingo, 7 de novembro de 2021

Tempos de esquecimento conivente / conveniente

 

Verberava Cícero (103-43 a.C.) em suas ‘catilinárias’ contra a perversidade e os maus costumes de seu tempo. O tribuno romano espelhava-se no pai de todos os vícios e depravações da política de sua época clamando contra a omissão do Senado em relação à “lamentável” condição da República Romana por tolerar quem conspirava (Catilina) contra ela sem que nada lhe acontecesse. Da abertura em sua Primeira Oração contra Catilina o mais conhecido dele: “O tempora, o mores” (Ó, os tempos; ó, os costumes).

Roma não é mais a mesma, tampouco a política de sua época. Mas ainda sabemos do que acontecia na terra da loba que alimentou Rômulo e Remo lá se vão mais de dois mil anos. Os registros da época perduram relatando o seu tempo.

Os tempos que vivemos não são os de Cícero. E não o são por serem estes tempos apenas modernos. Os nossos tempos não são os de Cícero porque são tempos de esquecimento quando esquecer corresponde a interesses os mais diversos. Ainda que recentes os fatos.

Nos tempos de Cícero não havia recursos como os modernos para registrar e levar adiante os fatos ocorridos. Não havia imprensa. Que dizer de rádio, televisão e quejandos outros.

Não sabemos se a velocidade com que se materializam os fatos (e se repetem) tornam o ‘esquecimento’ no lugar comum a ser levado em conta.

Fixamo-nos particularmente na imprensa em razão de alguns acontecidos (repetidos) no curso desta semana sem que a memória de suas ocorrências no imediato histórico os fizesse revelados pela importância. Até porque a distinção ao serem tratados pela imprensa deixa antever que não é o fato em si o que motiva a publicidade ideal mas o interesse em fazê-lo.

Eis que uma decisão em caráter liminar da Ministra Rosa Weber, do STF, suspende a execução de emendas de Relator do Orçamento da União, uma artimanha denominada de ‘orçamento secreto’, voltada para beneficiar o governo federal na barganha com parlamentares para assegurar resultados favoráveis aos seus interesses.

Sua Excelência considerou a existência de um “caráter obscuro” através das tais ‘emendas de relator’ por ocultar a identidade real dos beneficiários dos repasses.

Dizemos nós, da planície da província, que ‘esconder’ algo que é do povo (recursos orçamentários) para liberá-los por conveniência política a este ou aquele que comungue com este ou aquele projeto não cheira somente a mais uma excrescência tupiniquim, mas à corrupção das grossas, escancarada de forma desrespeitosa.

Nada de novo no front; apenas as variantes. Não esqueçamos dos denominados ‘anões do orçamento’, alcançados por uma CPI no alvorecer da década dos 90 que identificou um sistema de corrupção através de emendas parlamentares.

Em torno do tema trazemos um testemunho pessoal do que ouvimos de um assessor de deputado estadual que fizera inserir em sua chapa para representação de um determinado município baiano o então deputado federal João Alves de Almeida relator da lei orçamentária há anos capaz de fazer milagres, como o que vamos citar:

Na eleição de 1990 o ilustre ‘anão’ fez dobradinha com o deputado estadual baiano em determinado município, que conseguiu, de logo, usufruir da liberação de recursos do Orçamento Federal para o ano de 1991 na ordem de 800 mil dólares. No final de 1991 João Alves chamou a seu gabinete em Brasília o prefeito que andava com os dentes no quarador com a dinheirama que aportava para ouvir do relator que este fizera inserir emendas, a serem liberadas no ano seguinte (1992), na ordem de 2 milhões de dólares. Antes que o prefeito desmaiasse de alegria, no entanto, adiantou que dos recursos 30% seriam destinados ao ‘esquema de PC Farias’. O prefeito quis chiar, mas diante de tanto dinheiro extra aquiesceu. Então complementou o ‘anão’: Mas tem outro detalhe: as obras serão realizadas pelas empresas de fulano (também deputado federal baiano).

Adiante-se que o prefeito não viu a cor do dinheiro, justamente em razão da CPI que escandalizou o esquema.

Pois é caro e paciente leitor, aquilo que foi escândalo porque o relator inseria emendas AVANÇOU para que as emendas por ele (relator) levadas a efeito no orçamento sejam liberadas pelo governo sob o ‘transparente’ critério de que são ‘emendas de relator’ conforme este as escolha.

Anteriormente a festa residia em liberar emendas e delas participarem ‘ilustres’ deputados; hoje, para que os ‘ilustres’ deputados possam participar (não afirmemos que todos!) precisam se identificar com o relator, o que significa dizer: “com os interesses do relator”.

No imediato o ‘relator’ tem interesse que o deputado vote na PEC dos Precatórios e abra uma janela de cerca de 80 a 90 bilhões de reais para favorecer o Governo Federal no ano eleitoral.

Ou seja, para tudo ficar mais claro: dinheiro público para gasto político.

Patranha maior não há. E desde os tempos de Cícero a isso se denomina corrupção.

Na época de Joaquim Barbosa, que precisava encontrar dinheiro público para justificar o crime de corrupção no denominado ‘mensalão’  o ‘petista’, porque o do PSDB mineiro, de Aécio Neves e o mesmo Marcos Valério, ninguém mais lembra além de um boi de piranha chamado Anastasia requisitou apuração da origem dos valores através do procedimento instaurado a pedido dele (Inquérito da Polícia Federal n. 2474), que nada encontrou que justificasse corrupção (e sim caixa 2, dinheiro privado para financiar campanhas políticas), tanto que para farrear com as condenações tipo a de José Dirceu (“Não tenho provas contra José Dirceu, mas a literatura jurídica me autoriza a condená-lo” do antológico voto da ministra Rosa Weber) o dinheiro que alimentava a corrupção viria do Banco do Brasil (fato não encontrado na investigação da PF, escondida dos pares por Joaquim Barbosa).

Tudo que aqui escrevemos se volta para o fato de que tudo isso que estamos vivenciando vai passando ao largo da imprensa. A corrupção não o é. A não ser que praticada contra quem enfrenta ‘meus’ interesses (dos que me bancam).

A corrupção escancarada a ponto de motivar intervenção de Ministra do STF nem mesmo sob tal jargão é abordada pela imprensa, muito menos escandalizada, como aquele caixa 2 o foi. O que os distingue: os interesses defendidos pela grande imprensa em um e outro instante.

Assim como no necrológio da cantora morta no acidente aéreo ninguém lembrou de sua posição política aos 23 anos de idade. “A gente não precisa desse retrocesso” afirmara em 2018 referindo-se ao candidato que veio a ser eleito (vídeo disponibilizado por Hildegard Angel, no 247). A maturidade política refletida na frase não mereceu entrar no rol dos valores a serem revelados e lembrados no instante de sua passagem; apenas a musical (para nós sofrível, como quase tudo do que anda fazendo sucesso por aí).

Diante da existência de fatos repetidos e omitidos quando interessa a conveniência torna a imprensa em simplesmente conivente.

Os tempos que vivemos não são os de Cícero. Os vícios sim, que se apresentam maquiados para assegurar a mãe de todos eles, a corrupção. E muitos piorados, quando o Estado se faz imperador. Os tempos de Cícero não foram esquecidos. Aqui os aperfeiçoaram no que à época havia de mais desastrado.

Os tempos que vivemos não são os de Cícero. E não o são por serem estes tempos apenas modernos. Longe dos de Cícero, porque são tempos de esquecimento conivente ou conveniente.

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Neste link o vídeo registrando uma ação policial em Itabira-MG contra uma perigosa meliante acompanhada de um filho pequeno e outro de braço.

Se causar náusea, que nos perdoe o leitor. A cena é um retrato assemelhado do que é o Estado/Poder no Brasil. Os agentes do Estado brasileiro estão ‘educados’ para agredir mais os que os assistem do que a quem o fazem.

Por fim, não será surpresa surgir em Minas Gerais um titular do Ministério Público para denunciá-la por desacato à autoridade, o “pescoço” como a arma do crime e as crianças (inclusive a de colo) como co-autores. Seguindo o magistério daquela promotora paulista (aqui).

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