“Não faço cinema convencional” – afirmava Glauber Rocha, a genialidade desaparecida precocemente naquele 22 de agosto de 1981, aos 42 anos. Seu expressar refletia a consciente e constante fuga da dramaturgia convencional.
A genialidade de Glauber reside (sempre residiu) justamente nesta circunstância de ‘revolucionar’, buscar estética e
permanentemente a revolução pela câmera.
Revolucionar em Glauber não é
simplesmente o dimensionamento da linguagem que impõe em seus filmes, mas – assim entendemos – mostrar o que existe – a realidade traumática, sem concessões – e que o sistema não se habilita a ver ou reconhecer.
A percepção de Glauber em torno dos
diversos elementos que compõem o conjunto expresso em seus filmes dota-o desta capacidade
de percepção da realidade, A “ideia na cabeça e uma câmera na mão” nele é,
antes de tudo, a fixação de um conjunto que não se expressa pela
montagem/edição, mas por existir. Percebido não pelo ordenamento técnico ou
organização/planejamento, mas, acima de tudo, pela capacidade de inspiradora
percepção instintiva do que deva registrar, não importa se contido no roteiro
elaborado.
Martin Scorcese reconhece a
importância fundamental da música em “Dragão da Maldade Contra o Santo
Guerreiro”. Ali, os elementos pretendidos em roteiro interrelacionam-se ao
canto popular, continuamente repetido, com mais força e intensidade,
isoladamente, que os próprios diálogos/monólogos. E não o é pela letra que
expresse, mas pela expressão de uma realidade natural, presente atavicamente no povo, que imprime circunstância
ao intelectual elaborado. Que Glauber percebia, sentia e registrava na celulose.
Zelito Viana – que nos revelou uma
expressão significativa para se compreender Glauber Rocha –, afirma-o um “louco
genial”.
Não se imagine que Zelito está a duvidar da sanidade mental de
Glauber. (Pensasse assim e não se revelaria aquele cabeludo descabelado de olhos marejados no sepultamento do
cineasta, escancarado em "Glauber, o Filme, Labirinto do Brasil" (2003), de Sílvio Tendler. A loucura mental dispensa o ordenamento do pensamento e da ação dele
decorrente. Revela Zelito, sim – com a expressão –, esta postura de
enfrentamento ao convencional, à ordem instituída, ao plano teórico formal,
permanentemente enfrentado e rompido por Glauber Rocha em sua poética
cinematográfica. De enfrentar e vencer.
Todos que enfrentam um sistema
pré-concebido são estereotipados de “loucos”. Glauber é um deles, coerente
sempre. Não faço cinema comercial, não
tenho preocupação ou qualquer compromisso com isso, diz mais ou menos
assim em torno do não-compromisso que assume em relação ao convencional, à
dramaturgia linear.
Glauber – ainda que pareça em busca
da propaganda pessoal, dirão alguns – foge da publicidade comercial. O que
pretende é o reconhecimento da arte reinventada, porque esteticamente se
envolveu com sua ruptura convencional. Razão por que não o preocupa o sucesso
de bilheteria, mas o não reconhecimento do trabalho como arte.
O materialismo e o consumismo do
cinema como elemento de mercado, simples mercadoria ‘temperada’ ao gosto do
freguês, ou para conquistá-lo, não encontra em Glauber um defensor. Razão por
que do muito que lhe é dirigido como crítica negativa.
Glauber pretendeu a
imortalidade/perenidade da arte, como finalística de conteúdo filosófico; nunca
a efemeridade do sucesso material por si só.
Transferia para os atores – era um
excelente diretor de ator, afirma-o Zelito Viana – a sua consciência em relação
a isso: fugir do banal, do comum, ainda que levado à perfeição. Sua ‘perfeição’
é a de expressar/revelar a intuição, esgotar a expressão artística aprofundada
na intuição exposta a partir do texto pelo viés da direção.
Somente isso leva a
entender o que disse Paula Autran de Glauber: roteiro, filmagem e edição eram
distintos. Ou seja, a ordem pré-estabelecida não se consuma. Isso encerra uma
revolucionaridade anárquica do tipo ‘hay gobierno, soy contra’ traduzido em há
ordem estabelecida promovamos a ruptura, não a aceitemos porque foi
pré-estabelecida, ordenada, ainda que a 'nossa/minha' ordem.
O problema social como abordado por
Glauber é a pura expressão da verdade. Sua linguagem cinematográfica o define
como especial, diferente porque diverso.
Rever Glauber é sempre um soco na cara. Imagine esse soco em seu tempo!
Imagine-o socando!
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