DE RODAPÉS E DE ACHADOS *
Quando um tema se esgota em si mesmo, um rodapé pode dizer tudo e ir um pouco além
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Cecília Meireles
“Aprendi com a primavera a deixar-me cortar e voltar sempre inteira”
“Primavera”
Ficaram conhecidos como “primavera árabe” os movimentos que enfrentaram e/ou derrubaram regimes e governos no início de 2011. Na África e no Oriente Médio.
Por aqui a linha editorial dos noticiários televisivos, no curso das mobilizações, em sua maioria, sinaliza(va) para uma indignação popular como estopim de uma “revolta”. Uma “primavera brasileira”.
Naturalmente para derrubar o governo. É a leitura mais imediata.
Tiro pela culatra
Inegavelmente há escancarada intenção de manipulação do movimento que ocupou as ruas para discutir preço de passagens de transporte urbano. A desfaçatez com que o PPS, por exemplo, se expôs em inserções partidárias não deixa dúvida.
A postura da cobertura da maioria das redes de televisão – quando não a explícita convocação do povo para as ruas – mais estava para um golpe no molde como ocorreu na Venezuela e derrubou Chaves durante três dias.
O pronunciamento da presidente Dilma Rousseff demonstrou estar dominando os fatos e seus desdobramentos.
O tiro pela culatra se consumará se houver uma união de propostas progressistas (gente mais desunida do que a própria palavra desunião) e o estabelecimento de uma agenda comum e que venha a ser levada ao Governo. (Se não entendermos que o Governo pode a ela se antecipar e a Presidente já o sinalizou no âmbito da mobilidade urbana).
Obviamente propostas progressistas estão mais próximas do povo. Propostas conservadoras, não.
Proposta definida
Negar importância a partidos políticos mais se aproxima de vocação para ditadura. Afinal, não conhecemos nenhum estado democrático sem eleições. E somente há eleições com a presença de partidos políticos. A concepção de democracia direta presume intervenção da sociedade em temas que lhe dão respeito e como forma de pressão sobre a política organizada. Sua supressão, não.
O Movimento Passe Livre, por exemplo, apartidário, não nega os partidos políticos. Quem o faz o faz inspirado em que ou em quem? Ou para que?
Sebastianismo
30% dos ouvidos pelo Datafolha dentre os manifestantes que se diziam apartidários a opção para presidente da república é Joaquim Barbosa.
A campanha tipo caçador de marajás está em andamento. Não custa lembrar as lições da História não tão distante.
Decifrando o enigma
O pronunciamento da Presidente Dilma Rousseff parece ter chamado às falas o editorialismo de redes de televisão convocando o povo para as ruas. Ao afirmar que está ouvindo as ruas a Presidente não deixa dúvidas de que está disposta a atender reclamos. Para tal precisa de canais – dentro do próprio povo – ouvintes e agentes para a ação.
Encontrando no povo o interlocutor direto será este o natural grupo de pressão sobre a classe política para corresponder ao deslanche de iniciativas sobre apreciação do Poder Legislativo. (Apenas para ilustrar, o Senado corre para aprovar projeto que pode reduzir tarifa. Detalhe: o projeto por lá tramita há doze anos).
A Presidente já sinalizou para desenvolver uma lei geral de mobilidade urbana. Uma relação imediata ao objeto dos protestos levados às ruas: discutir o transporte urbano (custo da passagem, corredores de tráfego, acessibilidade etc.).
A reação de manifestantes à rede Globo, por exemplo (citamo-la mais incisivamente por aquilo que representa no imaginário da população) pode justificar a iniciativa da ampla discussão pela sociedade em torno de iniciativa de uma Lei de Meios para regulamentar disposições constitucionais, inclusive aquela que limita a participação/concentração de veículos de comunicação em poder de uma pessoa ou grupo.
A Presidente da República pode já ter decifrado o enigma.
Fugou
Deu errado
Sei não, sei não – diria vó Tormeza – aquele editorial do Jornal Nacional falando que as manifestações ultrapassaram os limites cheira à percepção do que teme: uma discussão pela sociedade em relação aos meios de comunicação (programação, controle social etc.).
Por tal razão melhor reconhecer que os “limites” do movimento foram ultrapassados.
Gente nas ruas falando em “reforma urbana”, “reforma agrária”, “transparência” e coisas tais pode querer discutir os controle dos meios de comunicação. Aí é golpe: contra “nós”.
Sobre tais “limites” – dirá quando entender necessário – que estão sendo manipulados pelos “inimigos da democracia”.
Temos como significativa – sob o prisma do que pode estar efetivamente ocorrendo em relação aos meios de comunicação em geral (rádio, televisão, revistas e jornais) – a singular atitude do jornalismo televisivo da Globo de retirar de seus profissionais o logotipo que os destaca e os faz reconhecidos em serviço.
Muito singular mesmo uma foto de um brasileiro de Ilhéus que circulou nas redes regionais, onde expôs a plena antítese ao famoso “mãe, tô na Globo” para o “mãe, NÃO tô na Globo”.
Não podemos nem de longe concordar com depredações e agressões ao patrimônio público ou particular. No entanto, fica-nos um quê do porquê tal começa a atingir emissoras de televisão no exercício de sua atividade.
Queimaram veículos da Record e do SBT. Cremos que a Globo não foi alcançada não por mérito mas por fuga. Como a dos logotipos de suas blusas e camisas.
Paradoxo I
Há, sempre que oportunidades surgem para discutir problemas por que passa o Brasil (e não são poucos, tampouco recentes – porque históricos e enraizados no sistema construído pelas elites dominantes desde os tempos de Colônia) a classe política é o bode expiatório mais imediato. Natural que o seja, pela expressão do que é em si: a representação popular.
No entanto – e aí reside o paradoxo inconciliável mais afeto a oráculos tipo “decifra-me ou devoro-te” – a aversão generalizada a políticos e partidos políticos se mostra frágil e poderoso, sustentável e insustentável à luz justamente do que representam aqueles: o povo.
Ora, se aqui chegasse um marciano e ouvisse tal diatribe apenas indagaria: não é o povo que elege os políticos como seus representantes? Não lhes dá uma típica procuração para agir em seu nome?
E todos teríamos que responder que sim. Então o marciano afirmaria que não temos do que falar porque somos nós que os elegemos.
E - mais diria - gostam tanto deles que muitos lá estão há 10, 15, 20, 30 anos eleitos a cada quatro. Reeleitos para fazerem tudo o que neles condenamos.
Paradoxo II
Afirmar-se que os políticos não entendem o clamor das ruas – a tônica da reação da classe nesse momento – razão por que “precisa ouvir o povo” é exigir demais de quem se elege por caminhos que não são os do anseio do povo.
Mas sendo este povo quem os elege, sem com eles discutir sua pauta e fiscalizá-los minimamente, acompanhando seus passos, não tem como exigir deles se foi justamente ele quem os elegeu com a pauta que se presume amplamente discutida.
Mudança
Como? É a indagação imediata. Mudar por mudar, ou querer mudar tudo de vez, é como nada pretender. Pedidos de mais investimentos em educação e saúde, por exemplo, repercutiriam imediatamente na segurança pública, principalmente se aquela estiver em consonância com a cultura.
No entanto o Estado não é empresário em sua essência (ainda quando aja como tal). Seus recursos têm origem nos tributos que arrecada. As discussões e cobranças postas na rua, por exemplo, parecem desconhecer algumas propostas concretas e dirigidas especificamente para esses dois nós górdios:
1. uma, que seria a manutenção da CPMF vinculada exclusivamente à saúde e com percentual reduzido, foi rechaçada sob o argumento de que penalizava o povo.
O aplicador financeiro, o especulador, os que concentram a riqueza do país em papeis agradeceram comovidos. Afinal, eles é que pagavam a CPMF e como não gostam de pagar gritavam em “nome do povo”.
Apenas à guisa de exemplo, para mostrar que a CPMF não feria o povão, tome-se o atual salário mínimo, integral, sem descontos, e se lhe aplique 0,39% (percentual que seria reduzido na proposta rechaçada) e teremos, ao mês, R$ 2,64, custo menor que uma cerveja e pouco mais que um refrigerante, não fora a transferência “compulsória” em casos onde 10% são repassados por vontade própria.
2. em relação à educação a proposta do Governo era nela aplicar 100% dos recursos obtidos do pré-sal. Os representantes do povo andam rechaçando a ideia assim como uma divisão mais igualitária dos recursos para beneficiar regiões antes desassistidas com o fito de reduzir as desigualdades regionais.
Mas não é essa a discussão que estamos encontrando nas ruas. A mudança pura e simples, caro leitor, tem um nome: apropriação político-partidária de quem não tem meios para vencer a eleição de 2014. Porque se os tivesse não estava nem aí!
Cuidaria apenas de reelaborar a agenda para a entrega do país. Sem ouvir o clamor das ruas. Ou comprar reeleição para mais um mandato.
Desvios
Inseriram na agenda dos protestos as obras da Copa do Mundo e das Olimpíadas. De uma forma como se as mazelas estivessem concentradas em suas existências.
O bom senso se esvai para o ralo. Dezenas de países, inclusive os europeus em crise, gostariam de sediar as duas competições. Não podemos dizer que a oportunidade de o Brasil poder fazê-lo seja ruim para nós. E não é. Os desmandos não podem ser tributados ao custo da da Copa ou das Olimpíadas.
Desalojados milhares de pessoas para que nos espaços onde moram ocorram obras que correspondam as exigências da FIFA.
Num primeiro passo, as exigência da entidade não são para desalojar quem quer que seja visto que o protocolo tão somente exige mobilidade para o acesso aos estádios e locais onde se instalem as delegações etc.
Não vimos nos protestos nenhuma referência ao desalojamento de cerca de 7.000 adultos, idosos, mulheres e crianças das 2.500 famílias do Pinheirinho para assegurar “direitos” do especulador Nagi Nahas.
Há desvios e desvios. Que não podemos tributar ao fato de sediarmos Copa do Mundo e Olimpíadas.
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* Coluna publicada aos domingos em www.otrombone.com.br
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