domingo, 5 de dezembro de 2021

De leitores e personagens a realidade se faz

 

Há em romance nosso, prestes a ser levado ao prelo, personagem enlouquecida que recita Navio Negreiro (Castro Alves) e tem a escravidão como a tragédia maior da humanidade sem o devido reconhecimento, “por faltar interesse” do sistema em fazê-lo. Aprendeu a entalhar com Hansen Bahia quando de sua passagem pelo Recôncavo e exercitava o mister para leva-lo ao fogo assim que concluído o trabalho. Como tema “crianças esquálidas, bocas escancaradas, acorrentadas umas às outras clamando aos céus”. Certamente as chamas expressavam a sua catarse de toda uma humanidade. Alfonsino, o seu nome.

Leitor deste blog nos enviou e-mail pedindo apoio para sua luta contra a ocupação de espaços públicos por bares e restaurantes, em especial calçadas. Questiona ele a omissiva atuação de órgãos públicos destacando Prefeitura e Ministério Público.

A catarse de Alfonsino e a denúncia do leitor vemo-las como expressão da triste realidade de um país que perdeu o respeito pelas instituições e valores que constroem e dignificam uma sociedade civilizada. Daí nada faltou para perde-lo em relação ao cidadão.

O Estado – o brasileiro em particular – como expressão da classe dominante mais e mais se consolida em tão lamentável dimensão, consideradas as proporções: do comerciante provinciano ao banqueiro, latifundiário etc.

Os feudos edificados em todas as dimensões do poder público (Judiciário, Ministério Público, Forças Armadas, Poder Legislativo e Poder Executivo) e do privado (imprensa, igrejas e sociedade civil organizada) passeiam ao largo e, quando muito, são afetados pontuadamente, em instantes raros, por quem faz a diferença e de logo marcados estes autores como ‘terroristas’, ‘comunistas’, ‘petralhas’ e quejandos outros.

Basta ver o ‘normal’ a que chegamos.

No plano judicial aplaudidas decisões sob a égide de interpretações de ‘colendas’ cortes, de repercussão geral, escondem, muitas vezes, o asseguramento de vantagens à classe dominante.

Nada a dizer diante de alguns magistrados criminosos. Inclusive os que servem a países outros que não o nosso e já elevados à condição de tentar ocupar a maior magistratura nacional.

Decisões no âmbito legislativo (em todos os níveis) albergam interesses de grupos econômicos acima de tudo, restando migalhas aos do povo. E os reproduz o judiciário, que cuida menos de corresponder ao bom senso e à Justiça e em essência ao cumprimento da lei (que nem sempre está a serviço da Justiça).

As forças militares (e as de segurança pública) são o cão de guarda do sistema e seus rosnados ameaçam os que enfrentem privilégios e absurdos, inclusive os seus (como manutenção de forças ativas em tempo de paz e indecorosas pensões às custas do erário).

O Ministério Público, em instantes cruciais, menos defende a sociedade e mais – muito mais – interesses alheios a ela. Quando nada, se omite em enfrentá-los. No geral, a burocracia.

O Executivo encastela em seu bojo os instrumentos de favorecimento aos interesses econômicos (agências e câmaras de regulação em particular). Que o digam ANEEL, Banco Central, ANVISA, ANP, ANATEL, CMEB etc., administradas por pessoas indicadas pelos interesses que com elas conflitam.

Em nível privado a imprensa serve a quem a custeia. Para tanto, mente para garantia dos privilégios daqueles que a sustentam.

Igrejas e organizações outras tornaram-se apêndice do Estado – por via direta ou indireta – a ponto de aquelas haverem ampliado sua participação político-partidária como instrumento de pressão para melhor partilha no ‘meu pirão primeiro’ e em nada para defesa de interesses do povo.

Eis a razão por que gritam sem serem ouvidos nosso leitor – contra a ocupação de espaços públicos – e Alfonsino – levando às chamas sua produção intelectual enquanto declama Navio Negreiro. A ficção(?) se confunde com a realidade.

A consciência da cidadania no limbo de órgãos e instituições aos quais cabe defendê-la vê-se mais e mais acanhada e não tardará todos os que a defendemos sermos chamados de loucos.

Já o somos por não concordarmos – os mais lúcidos – com as políticas de governo ora implantadas como solução para as desgraças causadas pelo mesmo governo.

A propósito, nos soa a Voltaire (1694-1778): “Um doido chamado La Jonchère, que não tinha do que comer, escreveu em 1720 um projeto de finanças em 4 volumes” (Dicionário Filosófico, tradução de Ciro Mioranza e Antonio Geraldo da Silva – Lafonte, 2018, p. 237).

No entanto, diferem estes tempos em relação aos do século XVIII, porque os desta terra de São Saruê que se envolvem com finanças do Estado não têm nada de “doido”: comem muito bem e guardam dinheiro em paraísos ficais e seus chefes vão a regabofes mundo a fora (Oriente Médio, recentemente) quando entregam parcela do patrimônio pátrio àqueles que nos farão ainda mais escravos.

Porque neste livro chamado Brasil, onde escrito o cotidiano teimoso, de leitores e personagens a realidade se faz. Dolorosa, impiedosa para com sua gente.

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