domingo, 27 de março de 2022

Onde vale tudo, um verdadeiro vale-tudo

 

Houve tempo em que o processo eleitoral alimentava-se de proposições. Vem sendo construído, no entanto, um distanciamento distinto de seu mister primordial. Ora nos parece ter se tornado um instante de oportunismos. Não mais a emissora de rádio ou de televisão ao lado dele como mecanismos de entendimentos e confluência na formação de juízos de valor em torno deste ou daquele candidato, deste ou daquele partido político. Atropelada pelo sistema de comunicação possível a qualquer um que porte um mísero celular  a proposição perde-se diante da realidade: vencer o pleito. Uma contradição então se impõe: não mais a proposição como instrumento para vencer o pleito, mas a vitória para implantar a proposição.

Um jogo no escuro  muito mais briga de foice e de facão no escuro  que perdeu a logicidade que manteve durante tanto tempo, e as circunstâncias exigiam, para tornar-se aventura pura e simplesmente.

A história político-eleitoral, à luz de certos resultados, comprova a afirmação acima, basta ver o nível de certos eleitos, alguns sem história alguma além do reduto que controlam (mesmo por meios espúrios e indecorosos) e que passaram a ocupar o panteão nacional. E nem falemos de outros métodos nada edificantes por trás de alguns resultados vitoriosos.

A ideia como eixo da proposição perdeu sentido. Em meio ao ácido diluidor do lugar nenhum a ideia tornou-se contrapeso insignificante. Que dizer do idealismo?

À falta de proposta vale tudo.

Qualquer pronunciamento sem pé e sem cabeça circula como se fora originada de gênios, de estadistas que ajudaram a construir a Ciência Política durante séculos. Dispensa o discurso equilibrado, teórico, em torno da realidade à qual submetida a sociedade como expressão do avanço civilizatório. Um “Deus nos acuda!”

O anedótico em Millôr Fernandes tornou-se lugar comum para uma parcela considerável da inteligentzia que ocupa a rede: “Às vezes você está discutindo com um imbecil... e ele também”. Páreo duro.

Não mais há ideologia elaborada, experimentada, conceituada, defendida em razão do que contém de aprimoramento para inspirar e corresponder aos destinatários a materialização de um sonho. Não há como imaginar-se, hoje, utopias, sonhos e quimeras a serem experimentados.

Qualquer sílaba elaborada torna-se de imediato ideia a ser reconhecida/imposta. E a rede leva adiante e a conveniência massifica, torna em gênio um idiota.

O país perdeu o bonde das inspirações. Não mais o tríduo básico desenvolvido há, pelo menos, dois séculos: esquerda, centro, direita. Basta ver o balaio de partidos políticos no Brasil. Destituídos de compromissos ideológicos, indefinidos enquanto meios de ações propositivo-administrativas, muitos dos que alcançaram registro nas últimas décadas nada mais são que feudos deste ou daquele grupo que conseguiu atender às exigências da Lei dos Partidos Políticos e obteve registro e direito ao um el dorado chamado Fundo Eleitoral. Para muitos um meio de renda, de sobrevivência financeiro-particular.

E nem falemos dos que se fundem, ou dos políticos que mudam de lado conforme o soar da cornucópia.

Em meio à ausência de talentos, a tanto desperdício subsiste como mote de campanha a agressão, o apoio ou desapoio sob o prisma do que eu gosto.

Sob esse particular aspecto, a qualidade de apoios começa a não ser considerada sob o peso do que representam as ideias, mas por ser simplesmente apoio. Recentemente o estágio de decadência chegou ao ponto de aplaudir quem utiliza o corpo (em todas as vertentes) para minimizar a representação feminina no concerto da sociedade. Para nós  que nos perdoem os que aplaudem, se nos leem  um estereótipo da banalização da mulher como objeto de consumo. 

Sim, caro e paciente leitor, presumindo o exercício da política sob patamares ideológicos entender ditos apoios sob a vertente aritmética (mais um) nega os mais comezinhos princípios exigidos para a conformação de nomes que efetivamente possam representar a sociedade no quesito administração pública. Não esquecer que hoje vivemos o resultado de tão lamentável experiência.

Estamos naquela de pouco nos importar para a negação científica, a necessidade de entender e discutir as lutas de classe, muito menos tentar compreender (para superar) a alienação adredemente elaborada para garantir ao sistema a perenidade que nega o processo político, do qual o eleitoral é pedra angular.

Mas, a irracionalidade não fica escondida. Avança, avança, avança...

O que dizer de analistas de plantão avaliando pesquisas? Na Bahia uma singular expressão (perdoada pelo aforismo de Otávio Mangabeira), diante do crescimento apresentado em determinada pesquisa para um quase desconhecido tornado candidato ao governo quando vinculado ao candidato Lula saiu-se com a pérola de que sem a ‘vinculação’ quase não pontuava. Esqueceu-se (e a conveniência o ampara) de explicar a razão por que de seu candidato perder tantos votos quando algum dele adversário vinculado está a Lula.

Detalhe que esta turma esbaldou-se citando FHC como seu apoiador quando se tornou imbatível no imediato do sucesso do Plano Real, hoje restado apenas pela moeda que originou, porque nada mais além disso, não fora algumas configurações de fraude no uso de seu sucesso, tanto que (por falta da imperativa e gradativa desvalorização do câmbio, que a realidade exigia) mantido o foi para assegurar a reeleição de FHC e no imediato despencou levando o Brasil a viver das migalhas oferecidas pelo FMI propostas em troca das ‘reformas’ neoliberais traduzíveis em privatizações, privatizações e mais privatizações.

E estamos diante de um processo eleitoral vivenciado sob a égide de muita mentira, pouca verdade... E, para não perder o mote de indecorosa tradição, bundas balançando.

Não estão na mesa dos debates a discussão de proposições, mas as arrumações. E aplausos para qualquer medíocre por haver apoiado este ou aquele nome.

Como registramos anteriormente à falta de proposta vale tudo. Que nos alcança com cara de um verdadeiro vale-tudo.


domingo, 20 de março de 2022

Há quem não esqueça e o que não pode ser esquecido

 

Uma realidade dura, muito mais do que aparenta. Uma realidade imperceptível, elevada no dia a dia como pilar do edifício social contemporâneo. Repetição do ocorrido, ocorrendo e por ocorrer massificado como se nada houvesse ou nada representasse, muito menos significado algum.

É que neste país de São Saruê estamos nos acostumando ao absurdo como coisa banal, comum e o mais preocupante  necessária. O anormal tornado banal.

Em meio às turbulências com o tanto convivido tudo se torna(u) normal: gasolina acelerando o passo para 10,00 reais, tomate, cebola, carne, tempero verde, botijão, leite, verduras e legumes, óleo de soja etc. etc. Tudo nas alturas por nós nunca imaginadas.

E as vítimas não têm a quem apelar. E nem apoio da imprensa encontram. Afinal, esta  a imprensa  faz parte do torreão que defende o sistema. Como a ela chegar o apelo dramático e desesperado dos descalços e descamisados?

A clássica acomodação da classe dominante do país aos interesses individuais  através dos quais exercita centenário patrimonialismo  nos deixa pasmo quando aqueles que dizem representar a base antagônica da sociedade se arrumam político-eleitoralmente para assegurar cargos e vantagens outras sem qualquer discussão de convergência em torno das necessárias políticas públicas imprescindíveis como objeto de discussão.

E eis que diante de nós um ano temerário, no qual percebemos nuances sombrias para as instituições ditas republicanas. Os vícios seculares em busca de perpetuação mais acentuados. Algumas certezas eleitorais  ainda que mais próximas de anseios populares  não estão definidas, justamente porque carecem de pleno funcionamento das instituições.

Para que o perceba o caro leitor por quão tenebroso inverno podemos passar, e quão caudaloso o rio que precisamos atravessar a nado (porque até mesmo o bote furado corre risco de não ser alcançado) afastemo-nos do Brasil verde-e-amarelo pátria de todos pintado em cores de arco-íris.

O jornal O Estado de São Paulo denunciou a existência de um gabinete paralelo no Ministério da Educação controlando em torno de 40 bilhões do Orçamento Federal e destinando às arrumações coordenadas por lideranças evangélico-pentecostais com acesso ao gabinete presidencial.

Sabido e consabido o montante de militares cumulando remuneração e cargos no Governo Federal.

Parcela da classe dominante, de significativa participação no PIB nacional  alheia em si aos interesses comuns, preocupada apenas com o “meu pirão”  tudo fará para manter as conquistas obtidas nos últimos anos e vê-las ampliadas.

Em meio a isso a maior das crises mundiais no plano do reconhecimento das forças institucionais despenca para o encontro de soluções paralelas.

Soa o desfalecimento das regras, dos limites, do respeito aos mais comezinhos princípios que asseguram todo o ordenamento internacional.  

Assim, o não alcançado dentro da normalidade institucional (respeitos à autodeterminação, convivência pacífica entre povos, à democracia e ao Estado de Direito) passa a sê-lo por meios abjetos (golpes e intervenções em seu formato contemporâneo) que chega no presente instante ao absurdo de sanções à iniciativa privada como forma de atingir estados nacionais.

E nos imaginamos partícipes de um concerto em que de nenhum instrumento dispomos.

No particular desta terra brasilis não será demais duvidar dos instrumentos que  em princípio  garantiriam o funcionamento das instituições.

Podemos confiar nas forças armadas? Podemos confiar no Supremo Tribunal Federal (STF) e seus quejandos subordinados, onde deve ser destacado o TSE? Estamos imunes a um golpe que instaure um “Estado Novo”? De que meios dispomos para enfrentar uma rebelião contrária ao resultado das urnas caso venha a se confirmar uma derrota eleitoral dos ora encastelados no poder? Confiar na comunidade internacional que hoje quebra o ritmo e a harmonia do respeito aos direitos de indivíduos e estados nacionais?

O jogo é bruto, tenhamos consciência disso.

E as ponderações e desconfianças deste escriba de província (não de agora) acomodam-se aos lances da partida de ‘xadrez’ da qual tomamos emprestado do tabuleiro de Luis Nassif:

 

Esse é o drama nacional: um país cujas principais instituições não consolidaram princípios democráticos. E, por trás de tudo, as ondas que vêm dos centros políticos internacionais, de que todo arbítrio será tolerado, e nenhuma negociação será aceita”.

Parece-nos  que Deus se apiede de nós!  perceber no inquilino do Alvorada, destemperado em tantos outros instantes menos desagradáveis, muita tranquilidade em relação ao futuro. Cremos que pautado está no exemplo de Trump diante do infortúnio eleitoral e percebe que hoje dispõe internamente de muito mais apoio do que possa imaginar a vã filosofia para golpear as instituições. Não fora um filho seu que ameaçou fechar o STF com um cabo e um jipe? Quantos cabos e jipes hoje? Ou alguém imagina que o ‘pirão gostoso’ que hoje muitos comem não alimenta sonhos dantescos contra a fome de liberdade?

O clima de ódio e desapreço a tudo se faz presente e mais se aprofunda neste país de ‘triste figura’, sem Quixote. Tudo está minado. Até o futebol, que não tem mais torcida, mas agressores com espaço na mídia sem que nada lhes aconteça.

E que moral, perante o lugar comum pátrio, tem o STF ou TSE, por exemplo, se tudo que aí está encontrou o apoio e a legitimidade por eles assegurados? Para quem apelar se as augustas figuras forem defenestradas e substituídas por escolhas “terrivelmente” favoráveis. 

Impossível? Não caro leitor; temos exemplos à sobeja. Basta não esquecer.

No cenário internacional uma torcida resolveu ‘não esquecer’ e denunciou esquecimentos que afetaram o mundo e andam esquecidos por conveniência e conivência. (Perdoe-nos, o leitor, a repetição vocabular)

Sim, há quem não esqueça em meio ao que de muito não pode ser esquecido.

Alhures e aqui.



terça-feira, 15 de março de 2022

Novela mexicana enquanto os sinos dobram

 

Dentre os muitos instrumentos de que se vale a política externa dos Estados Unidos em defesa dos seus interesses o de levar ao mundo a ideia de que os adversários no tabuleiro geopolítico são os vilões. Os povos árabes que não lhe são afetos não passam de terroristas, ainda que do terrorismo tenha se valido para alcançar objetivos no Oriente Médio quando financiou Bin Laden.

Outros que não leiam em sua cartilha são tachados de comunistas, comunismo aí sinonimizado como stalinismo adjetivado de anticlerical, comedor de criancinhas, estuprador e desonrador de lares cristãos e quejandos outros que deixem o interlocutor em pânico.

O resultado leva à paranoia como a de hoje tentarem banir até centro de estudos que envolvam escritores russos, assim como filmes e cineastas dos festivais de cinema.

A maravilha em que se tornou a Ucrânia pró-Ocidente, desde 2014, controlada inteiramente pelos Estados Unidos a ponto de tornar-se palco de uma guerra desnecessária  comandada internamente por grupos nazistas não vem ao caso. Afinal, a sede de um sindicato de trabalhadores cercado em Odessa e incendiado com todos lá dentro, matando-os asfixiados ou a pauladas os que conseguiram sair não passa de ‘limpeza’.

Nossa mídia, não de hoje, assumiu o compromisso não de informar o que efetivamente ocorre, mas de moldar a opinião dita pública conforme os interesses da classe dominante, que se expressa como poder corporativo. Com postura ideologizada cega o intelecto. Afinal, controlar com mão de ferro a informação é das mais importantes armas da guerra.

Não bastasse mais desinformar que informar (se possível tal contradição), a gloriosa e ‘comprometida’ mídia pátria pede para que choremos. Cada rede ao seu modo e estilo levanta a voz clamando para que o façamos pela Ucrânia e pelos ucranianos.

Não neguemos o direito de chorar. O que não cabe é chorar por esta guerra em si, objeto do pedido lamurioso. Mas chorar por existir guerras. E clamar contra quem as promove porque delas se beneficia. O que inclui as provocações.

Cabe-nos chorar por todos os mortos, vítimas inocentes de guerras estúpidas.

Por quem os sinos dobram. Ontem, hoje, amanhã.

Os sinos que dobram não por Robert Jordan, alistado nas Brigadas Internacionais do romance de Hemingway. Porque dentre os que morrem hoje não há alistados, mas assassinados. Não há idealismo  como no personagem desenvolvido pelo escritor, ele mesmo um voluntário na Guerra Civil Espanhola ao lado dos republicanos contra o nazifascismo franquista.

Em meio um clima de novela. De novela mexicana, que atende a um público que precisa deixar ao largo a realidade e trilhar por clichês e dramas merencórios para sublimar o cotidiano. Sendo novela dá o tom de que não se faz de realidade. E assim, tão somente para assistir e sentir, chorar, ficar indignado etc. Chorar preferencialmente.

No afã de atender ao sistema deram de fazer novela mexicana com coisa séria. Enquanto os sinos dobram pelas vítimas levadas à tragédia tão só para corresponder aos interesses de classe dominantes.

Não vimos, ao tempo de cada tragédia, pedidos para chorarmos pelos 500 mil mortos da Síria, os 30 mil assassinados pelo nazifascismo ucraniano nas províncias de Donetsk e Lugansk desde 2014, onde crianças sucumbiram aos bombardeios seletivos pelos drones encaminhados por Zelenski, o marionette de plantão.

Muito menos pelos mais de 6 milhões de refugiados da Síria ou mais de 2,7 milhões iugoslavos. Pelos vestidos com napalm no Vietnã ou ardendo sob o calor causado pelas bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki nem lembrança

Não se brinca com a tragédia alheia. Tampouco cabe utilizá-la como propaganda em defesa de posturas espúrias. Muito menos fazer dela novela mexicana.

E por entre lágrimas clamadas muitas há por aqui, esquecidas sob o pálio da oportunidade, da conveniência e da hipocrisia.

Os mortos tantos na pandemia mal administrada arrastam algumas centenas diariamente. Lágrimas dos filhos órfãos, de pais e mães, irmãos e irmãs, alguns amigos.

E daquela Marielle Franco, assassinada sob o manto da impunidade conveniente, ninguém mais lembra. Ainda que certezas haja de quem os envolvidos, como o noticiou o GGN.

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 Por razões alheias à editoria do blog somente hoje publicamos nosso “dominical”.

domingo, 6 de março de 2022

Hipocrisia acima de tudo e de todos

 

Afirmado desde tempos de antanho: na guerra quem primeiro morre é a verdade. Essa verdade, tão antiga, atribuem a Ésquilo (525/524 a.C-456/455 a.C.) o primeiro a expressá-la. Não por casualidade o dramaturgo grego tido como o ‘pai da tragédia’. E guerras são sempre tragédias.

Ao ingênuo parece verdade absoluta o revelado pelas informações que nos chegaram no início da semana de que a Ucrânia ‘resistia’ à invasão russa. Ingenuidade presumir que o ataque que em poucas horas já deixara sitiada a capital do país esteja preocupado com a ‘resistência’ de civis convocados para o serviço militar no curso do conflito.

Em meio à guerra midiática, de informação e contrainformação, também a mensagem de que Vladimir Putin responderá no Tribunal de Haia por genocídio e crimes de guerra na Ucrânia.

Ainda que não sejamos defensor de guerras, intervenções e quejandos outros pausamos em torno do divulgado diante desta ‘verdade’ levada aos quatro cantos: Putin respondendo por crimes de guerra e genocídio em razão da intervenção na Ucrânia.

Sob tal viés considerando o que significa genocídio e crimes de guerra  cabe lembrar ao caro e paciente leitor que tais ‘elementos do tipo’ (linguagem jurídico-penal) correspondem a algo mais além que simplesmente guerrear, mas à planejada destruição de populações ou povos. É caracterizado o genocídio como a deliberada intenção de exterminar “todos” os indivíduos de determinado grupo humano específico. Por tal razão não está afeto tão somente a tempos de guerra, também de paz. Assim, não é a guerra em si que define o espaço onde praticado o genocídio, mas a consciente intenção de extinguir, de eliminar, determinado grupo étnico, racial ou religioso.

Por outro lado, lamentável dizer que há genocídios em outra dimensão, lentos e paulatinos (como os dos indígenas), que de tão permanentes passaram a integrar a realidade ‘normal’.

E não seria exagero ver na fome endêmica uma forma de genocídio por omissão dos povos.

O termo criado por volta de 1943 pelo jurista judeu polonês Raphael Lemkin, que defendia a compreensão do fenômeno como imprescindível à configuração de um ordenamento penal próprio. Ciganos e judeus tornaram-se os exemplos clássicos de vítimas do nazismo. São um capítulo à parte dentro das tragédias humanitárias que alimentam a definição para “crimes contra a humanidade” capitulados no Art. 7º do Estatuto de Roma, tais como homicídio, extermínio, escravidão, deportação ou transferência forçada de uma população, tortura.

Mas, não sós: genocídio armênio, em Ruanda, cambojano, indígena, japonês, palestino etc. etc.

Os que falam hoje em prática genocida dos outros não desejam que sejam reconhecidos como praticantes de tão nefanda e inumana arma.

Deixemos a Noite de São Bartolomeu (1572) quando assassinados entre os dias 23 e 24 de agosto de 1572 entre 5 a 30.000 huguenotes (protestantes) a mando de Carlos IX da França, ou  mais recentemente  a matança que durante todo o século XIX atingiu os povos indígenas dos Estados Unidos ou, ainda, o que promoveram holandeses na África, em particular o apoio da Inglaterra na África do Sul sob a batuta do apartheid.

Mas, somos propensos a admitir não a leitura dos fatos históricos, mas aquela posta diante de nós como se o fato em si não existisse, tão somente aquele que desejamos ver. Cabe entender que o que “desejamos ver”, em tempos de comunicação controlada, é o que nos chega pelo sistema (jornais e revistas, radiodifusão, internet etc.).

Sob esse viés vivemos  sem sombra de dúvida  uma singular Era da Hipocrisia. A mentira, a falsidade, a dissimulação distorcendo a realidade/verdade.

Num primeiro instante não temos hoje praticado pela Rússia de Putin na Ucrânia nada diverso do que o praticado pelos Estados Unidos e aliados mais de uma vez nas últimas décadas mundo a fora. No fundo, a reação russa consumada na invasão da Ucrânia representa simplesmente o aprendizado  militares e/ou informativos  praticados/capitaneados pelos Estados Unidos na Líbia, Iraque, Iugoslávia, para citar os mais recentes.

No quesito mortandade de civis longe está do que fizeram os EUA em Hiroshima e Nagasaki (Japão), em Mai Lai (no Vietnã). A propósito de Mai Lai, em 16 de março de 1968, 504 civis desarmados  incluindo idosos, mulheres e crianças (17 delas grávidas dentre as 170), assassinados a sangue frio. “Em apenas quatro horas, mataram os animais, queimaram as choupanas, violaram, mutilaram e fuzilaram as mulheres e trucidaram homens e crianças”. E mais não morreram graças à corajosa e humanista intervenção do piloto Hugo Thompson Jr. (Wikipédia)

No âmbito do respeito aos direitos humanos o que dizer da reação dos Estados Unidos em relação a Abu Dabi, ao massacre de Mai Lai, ao uso de agente laranja sobre populações civis do Vietnã, ao centro de tortura instalado por eles em Guantânamo?

Quem anda apoiando bombardeios a territórios da Síria, da Somália e do Iêmen?

Invasões e massacres têm sido a tônica nas últimas décadas, se não quisermos percebê-los desde o final do século XIX, apenas para situá-los a partir da Era Moderna. Oriente Médio, África, Cuba, Nicarágua, Honduras. Genocídios e bombardeios são lugar comum.

Restando o Japão para a vitória final, as forças já recuando em todos os fronts e tome-lhe bomba atômica. E mais outra. Não sobre as forças militares, mas sobre a população civil (homens, mulheres e crianças).

Nada que justifique uma invasão em desrespeito ao princípio da autodeterminação dos povos. O fato sob o contexto do por que ocorrendo, já analisamos em torno do presente (geopolítica e hegemonicamente) (aqui aqui aqui) e a defesa da não-violência (em todas as dimensões) pode ser compreendida no recente “Eles não leem Tolstoi”, publicado no Diário Bahia.

Mas, o bom senso e a isenção  afirmamos peremptoriamente  não nos permitem enveredar pela mesmo trilhar que ‘discute’ a realidade a partir de ‘lados’, pautados nos bons (nós) e nos maus (os outros) quando as ações de uns e outros em muito idênticas.

Estádios europeus enchem-se de faixas contrárias à invasão da Ucrânia. Louvável atitude! Mas, não vimos igual verve em relação ao Iraque, Síria, assim como desconhecemos qualquer delas cobrando respeito aos territórios e ao povo da Palestina ocupados por Israel. Muito menos contrárias à guerra mais cruel: a fome que campeia e atinge mais de 800 milhões em dados referentes a 2001 mundo a fora (praticamente a população reunida das Américas, do Norte, Central, do Sul e Caribe, estimada em pouco mais de 900 milhões). Tragédia que mata 11 pessoas a cada minuto.  

Em tempos de guerra (qualquer guerra) a verdade é a versão dita por cada lado.

A informação que nos chega, se a acatamos literalmente sem a mínima reflexão à luz da contraposição e da verificação da realidade, nos tornará “pobres de espírito”, assim o cremos. Não aqueles ‘pequeninos’ de que falou o Mestre, mas dos citados por Millôr Fernandes, no verbete ‘Paraíso’, na Bíblia do Caos: “Se o Reino dos Céus é dos pobres de espírito, então, meu Deus, já estamos no Paraíso”.

Genocidas posando de santos e querubins. “Hipócritas e fariseus”... “sepulcros caiados”, verberaria Cristo hoje, como o fez ao seu tempo (Mateus, 23;27).

Até porque, aqui e alhures, hipocrisia acima de tudo e de todos é inconcebível.


 


terça-feira, 1 de março de 2022

Os interesses em jogo ou o xadrez do esconde-esconde

 

De Vladimir Putin, em 2006, sobre o que entende como cerco do Ocidente à Rússia: "Para os Estados Unidos e os seus aliados, é uma política de contenção da Rússia, com óbvios dividendos geopolíticos. Para o nosso país, é uma questão de vida ou de morte, uma questão do nosso futuro histórico como nação. Isto não é um exagero; isto é um fato. Não é apenas uma ameaça muito real aos nossos interesses, mas à própria existência do nosso Estado e à sua soberania. É a linha vermelha de que temos falado em numerosas ocasiões. Eles a atravessaram. Claro que esta situação suscita uma pergunta: o que virá a seguir, o que devemos esperar”?

De lá para cá, desrespeitados os Tratados de Minsk, a anexação da Criméia, a derrubada do governo ucraniano pró Rússia e a tentativa Ocidental de inserir a Ucrânia no Pacto da OTAN.

Imaginemos o que diria o presidente John Kennedy diante da instalação de mísseis em Cuba pela então URSS, em 1962. Nada diferente: ameaça aos EEUU, aos interesses e à própria existência do Estado e à sua soberania.

O que deixou claro Vladimir Putin ao se referir às políticas dos Estados Unidos e Europa Ocidental em relação à Rússia: “uma política de contenção da Rússia, com óbvios dividendos geopolíticos”; para a Rússia uma questão de vida ou morte para o futuro histórico como nação.

O que diria JFK à época? A mesma coisa: ameaça à paz e à segurança do continente; uma questão de vida e morte para o futuro do povo estadunidense.

Na época, mediado pela ONU, um acordo celebrado: a Rússia retiraria os mísseis de Cuba e os EEUU não mais tentariam invadir a ilha e também retirariam seus mísseis tipo Júpiter da Turquia.

Parênteses: a Rússia não admitia mísseis na Turquia (sul do Mar Negro) em 1962; os Estados Unidos (via OTAN) pretende(ia) instalá-los na Ucrânia (norte do Mar Negro e fronteira com a Rússia) desde 2014.

Nikita Khruchov ao instalar mísseis em Cuba (a 100 quilômetros do território dos EEUU) forçou a reação estadunidense. Recuou levando os EEUU a desistirem de duas pretensões: a de atacar Cuba (aliada da URSS) como tentara no ano anterior na Baía dos Porcos  e retirar os mísseis que havia implantado na Turquia.

... 

Mas, como compreender o caro e paciente leitor o tabuleiro planetário recheado de reis, rainhas, bispos, torres, cavalos e peões?

No primeiro instante compreender que há pedras brancas e pedras pretas. Ou seja, um grupo de brancas enfrenta um grupo de pretas e vice-versa. Avancemos: para jogo da manipulação política da informação, uns são os bons e os outros, maus.

Também compreender que ambos têm ambições e detêm poder.

No plano da hegemonia e da geopolítica cada um dispõe as peças no tabuleiro para vencer batalhas. E vencer batalhas significa, nada mais nada menos, que ocupar espaços. Espaços onde estejam as fontes de riqueza primárias, secundárias, terciárias, ou de onde possam vigiar de perto o adversário. Assim, disputam a preponderância sobre áreas ricas em minerais (inclusive estratégicos), em insumos e capazes de produzir alimentos, com população para produzir e consumir (o que produzam e comercializam).

Neste toar às calendas o princípio da autodeterminação dos povos (de respeitar o que internamente este ou aquele decidiu: democracia, absolutismo, ditadura, autocracia etc.).

O instante no tabuleiro geopolítico do xadrez mundial

Queremos crer que o estágio nas relações envolvendo a Ucrânia, aprofundado a partir da ‘revolução’ de 2014, aliado ao descumprimento dos acordos fixados nos Tratados de Minsk, em muito se assemelha  em nível da reação de Vladimir Putin  à de Kennedy em 1962 diante da instalação de mísseis russos em Cuba.

A solução que teria evitado o conflito com a invasão da Ucrânia estaria resolvida simplesmente com um fato elementar (e estopim): não ingresso da Ucrânia na OTAN (caminho para instalação de bases ocidentais no costado da Rússia).

Mas, se tal não ocorreu (ainda)  outras frentes de batalha estão sendo exercitadas pelo Ocidente (bloqueios etc.)  tudo deságua naquilo que registramos anteriormente: a resistência não visa ‘os lindos olhos’ ucranianos e sim o que possui o país no âmbito de interesses dos Estados Unidos e Europa Ocidental à Rússia.

Vejamos por que Biden e seus falcões estão ‘tão preocupados’ com a Ucrânia. Uma amostra, a ser conferida pelo leitor, veiculada na rede:

“A Ucrânia é:

1º na Europa em reservas comprovadas recuperáveis ​​de minério de urânio; 2º lugar na Europa e 10º no mundo em reservas de minério de titânio; 2º lugar no mundo em reservas exploradas de minério de manganês (2,3 bilhões de toneladas, ou 12% das reservas mundiais); 2ª maior reserva de minério de ferro do mundo (30 bilhões de toneladas); 2º lugar na Europa em reservas de minério de mercúrio; 3º lugar na Europa (13º lugar no mundo) para reservas de gás de xisto (22 trilhões de metros cúbicos); 4º no mundo em valor total de recursos naturais; 7º lugar no mundo em reservas de carvão (33,9 bilhões de toneladas).

País agrícola, capaz de atender às necessidades alimentares de 600 milhões de pessoas (7,7% da população mundial), quase toda a da Europa Ocidental, estimada em 738,8 milhões em 2021:

1º na Europa em terras aráveis; 1º lugar no mundo nas exportações de girassol e óleo de girassol; 2º lugar mundial em produção e 4º lugar em exportação de cevada; 3º produtor e 4º exportador de milho do mundo; 4º produtor mundial de batata; 5º produtor de centeio do mundo; 5º lugar no mundo em produção de mel de abelhas (75.000 toneladas); 8º lugar no mundo em exportações de trigo; 9º lugar no mundo na produção de ovos de galinha; 16º lugar no mundo em exportações de queijo.

Como país industrializado:

1º na Europa na produção de amônia; 4º maior sistema de gasodutos da Europa no mundo (142,5 mil milhões de metros cúbicos de capacidade de escoamento de gás na UE); 3º na Europa e 8º no mundo em capacidade instalada de usinas nucleares; 3º lugar na Europa e 11º no mundo em extensão da rede ferroviária (21.700 km); 3º lugar no mundo (depois dos Estados Unidos e França) na produção de localizadores e equipamentos de localização; 3º exportador de ferro do mundo; 4º exportador mundial de turbinas para usinas nucleares; 4º produtor mundial de lançadores de foguetes; 4º lugar no mundo em exportações de argila; 4º lugar no mundo em exportações de titânio; 8º lugar no mundo em exportações de minerais e concentrados; 9º lugar no mundo em exportações de produtos da indústria de defesa; 10º produtor de aço do mundo (32,4 milhões de toneladas).”

Como registramos neste espaço tudo gira em torno da geopolítica e da hegemonia. Não há como fugir de que esses são os interesses em jogo no xadrez do esconde-esconde.

Sobre uma outra vertente, a HIPOCRISIA, nos debruçaremos na próxima oportunidade.