domingo, 29 de março de 2020

Razão em duas convergentes


Abre-se o tema com a assustadora análise de estudo, titulado de “O impacto global da Covid-19 e as estratégias de mitigação e supressão”, do grupo de Resposta à Covid-19 do Imperial College, de Londres, particularizando o Brasil: prevê em 1.152.283 o número de mortes no país, caso medidas de contenção não sejam tomadas, que podem despencar para 44 mil brasileiros mortos com as medidas mais radicais e precoces. Aqui nos louvamos em veiculação no Conversa Afiada.

Em meio a tão catastrófica realidade – que assusta o planeta – exigindo tomada de posições drásticas mundo afora, por este país dividem-se opiniões. Havendo quem esteja virtualmente contra qualquer delas porque o ‘mito’ de seus sonhares e quereres assim o expressa. Ou seja: entre salvar vidas como sugerido pela Ciência Médica e assegurar veiculação de pessoas (que propagarão o mal, multiplicando-o quase geometricamente) sob o raciocínio de que a economia ‘não pode parar’ sacrifique-se o primeiro.

Nem entremos no vazio idiota de quem fala em economia (que é de marcado, de consumo) reduzindo consumidores. Tampouco de que, em momentos de crise, é dever do Estado custear e prover a sobrevivência porque – como costumamos dizer – ao Estado não cabe servir ‘o’ homem, mas ‘ao’ homem.

Todo o posto como introito visa buscar compreender a razão por que o comando da nação se encontrar sob as rédeas de quem demonstra, à sobeja, desconhecer o minimo minimorum (o mínimo do mínimo, o menor dos menores) do que seja administrar o cotidiano, muito menos crises.

Claro que não cobramos – até porque nunca o fizemos – por estar ocupando o posto maior do país quem nunca ofereceu qualquer exemplo de que dominasse a seara pública. Sua história e testemunho nunca enganaram ninguém. Não pode ele, o inquilino do Alvorada, ser cobrado porque – repetimos – nunca enganou ninguém.

Mas o questionamento que fazemos neste espaço passa, sempre, por entender as razões por que o inquilino atingiu o ápice. Um fato que se expressa, em suas raízes, presente e remotamente.
Sempre intrigou este escriba de província um fato concreto: por que as classes sociais menos favorecidas, beneficiadas diretamente com as políticas públicas encetadas por governos petistas, que melhoraram de vida efetivamente, não responderam em votação ao que lhes beneficiara? Ou seja: por que não reconhecidas as ações concretas de governos progressistas, com programas pautados na redução das desigualdades e distribuição de riqueza?

Aplique-se tal raciocínio às administrações do PT em nível municipal, estadual e nacional.

Ainda que alertado por observações preciosas, como a de Mujica, de que a esquerda estava cuidando de formar consumidores e não cidadãos, ainda não encontrávamos a resposta, que somente transitava pelo viés moral (presunção ou mesmo certo preconceito) do eleitor mal agradecido.

Não deixamos de cobrar do PT/governo o afastamento das bases, por acreditar piamente (assim pensávamos) de que seria compreendido em razão do reconhecimento “espontâneo” às ações que realizava. Cobramos por tal postura ‘vaidosa’. Cremos que, sob este particular aspecto, nos enganamos porque não apenas essa circunstância hoje alimenta o observador.

A resposta extraímos em texto de Bruno Reikdal Lima, no GGN. Transitando por Weber diz o articulista, com palavras irrefutáveis, que aquele “consumidor” formado pela esquerda reconhecia o seu avanço como dádiva de Deus. O emprego gerado, a distribuição de renda, o ganho real para o salário mínimo, o investimento público em obras de infraestrutura etc. não se originavam – para ele – das políticas de Estado postas em uso por um governo como nunca outro o fizera.

Ou seja, a ação humana, concretamente definida por políticas estatais através de governos progressistas, não se insere no imaginário pelo prisma externo (quem fez o que fez) mas por via de alienação eminentemente subjetiva e individual: EU, por bondade e graças de Deus, conquistei pelos meus méritos... etc. etc. etc.

Enquanto as políticas distribuíam renda e riqueza viam tais camadas na ação de Deus a sua vitória como reconhecimento de dedicação ao culto.

Assim, parcela significativa dos beneficiados por programas governamentais oriundos de governos petistas (em todos os níveis, federais, estaduais e municipais) viram sua melhora de vida atribuída ao pregador/pastor que lhe tomava parte da renda obtida para garantir mais de Deus. E assim, o governo dava e o igreja tirava a parte de ‘deus’ e o dizimista se via agradecido tão somente a Deus, não a quem – em nome d’Ele – aqui agia.

Mas, outro fenômeno há de ser observado. E vinculado ao processo de construção cívico-cultural do cadinho histórico-sociológico desta terra brasilis. Fato assemelhadamente ponderado/observado por Eduardo Galeano (As veias abertas da América latina) e Manoel Bonfim (1868-1932) (“América Latina, males de origem”, “O Brasil na América” e “O Brasil Nação”) Para tanto nos apoiamos, relendo-o recentemente, em Darcy Ribeiro:

O espantoso é que os brasileiros, orgulhosos de sua tão proclamada, como falsa, "democracia racial", raramente percebem os profundos abismos que aqui separam os estratos sociais. O mais grave é que esse abismo não conduz a conflitos tendentes a transpô‐lo, porque se cristalizam num modus vivendi que aparta os ricos dos pobres, como se fossem castas e guetos. Os privilegiados simplesmente se isolam numa barreira de indiferença para com a sina dos pobres, cuja miséria repugnante procuram ignorar ou ocultar numa espécie de miopia social, que perpetua a alternidade. [...]

E preciso, conclui assim seu raciocínio:

[...] O povo-massa, sofrido e perplexo, vê a ordem social como um sistema sagrado que privilegia uma minoria contemplada por Deus, à qual tudo é consentido e concedido. Inclusive o dom de serem, às vezes, dadivosos, mas sempre frios e perversos e, invariavelmente, imprevisíveis.” (O Povo Brasileiro – a formação e o sentido do Brasil, Companhia das Letras, 2ª edição, 2005, p. 24).


Compreendemos, caro leitor, que o tema exige um ensaio e que o espaço aqui não o permite. Mas não custa semear para tentar compreender a razão por que de tanta estupidez, de tanta divisão, de tanta indiferença para com os desassistidos.

Já nos bastamos em vislumbrar os caminhos originários e convergentes. Ontem e hoje.

domingo, 22 de março de 2020

Dante: – Presente!


Eis que este escriba de província se vê diante de uma escolinha chamada Terra onde o espaço-tempo não existe, aula em andamento. Quando da chamada um aluno há muito despercebido responde “Presente”. Todos se voltam para o ‘estranho’ tanto que não mais dele se lembravam. Mas, ao saberem quem era reverenciaram-no. Afinal, ali estava quem escrevera um dia sobre o Inferno, pondo um prólogo estarrecedor: “Deixai fora a Esperança, Ó vós, que entrais”. Redigira seus versos pelos idos de 1304 e 1321 d.C., ele que viveu entre 1261 e 1321.

Vão-se sete séculos de seu existir. A se repetir.

Sua terra natal padece de nova tragédia e não terá um outro conterrâneo, Giovanni Bocaccio (1313-1375), para reverenciá-lo, tampouco escrever sobre tema tão atual quando tomou a peste como motivo para o seu Decameron.

Também não disporá de Luchino Visconti (1906-9176) para levá-lo à tela inspirado em Thomas Mann, como o fez em “Morte em Veneza”.

Mas, eis que a terra da loba que amamentou Rômulo e Remo alcança seara inimaginável nesta contemporaneidade que denominam de Civilização: diante do estágio crítico – e da impossibilidade material de atendimento – sacrificará no altar da estupidez humana os idosos acima de 80 anos.

Estúpida humanidade, que concentrou na mão de meia dúzia a riqueza que faria melhor bem ao Homem se distribuída o fosse e parcela aplicada, ainda que mínima, muito evitaria de tragicidade cotidiana em que vive, porque se houvessem recursos públicos, ou mesmo particulares, investidos em prevenção e tratamento o quadro seria bem menos grave.

Eis caro leitor que a Itália – nação próspera, berço do Renascimento, pátria da Civilização Ocidental ensaia um novo ‘círculo’ para o Inferno, o décimo, que pode ser chamado de “o retorno à barbárie plena”. O Nono, acolhe os traidores, até que o ultrapassemos, como o fazemos neste instante, para o encontro com a barbárie plena.

Vislumbrava Dante a existência do Paraíso (o seu) – como o vê quando, ao lado de Virgílio,  ultrapassando o Nono Circulo – a partir do túnel onde refletidas as quatro estrelas do Cruzeiro do Sul, razão por que os intérpretes o têm ao Sul do Equador.  

Outro eis, caro leitor: cá estamos, ao Sul do Equador.

E não somos a Itália, não dispomos de Dante Alighieri, de Giovanni Bocaccio, de Luchino Visconti.

Na Itália programam deixar morrer os idosos acima de 80. Aqui, não necessários os octogenários, nonagenários etc., porque os pobres e desvalidos de sempre estão dispensados de qualquer programação. Apenas engrossarão as covas rasas dos cemitérios, longe das estatísticas oficiais.

Porque por aqui não há necessidade de medidas oficiais que ampliem o obituário. Não nos faltam peças (in)significantes da classe dominante para – mesmo sabendo estar portador do Covid-19 colocar seus amigos de São Paulo no mesmo jatinho e vir infectar a gente humilde de Trancoso, em Porto Seguro.

A pandemia que assusta o planeta corre por estas plagas montada no alazão chamado “perversidade”, orientado por ginete chamado “incompetente”.

E não falta quem a assista e apenas aplauda com suas atitudes, porque todos iguais, deles unha-e-carne, lé-com-cré – como diria vó Tormeza.

Enquanto isso, depois de terem negado atracação nos vários portos do Caribe, aquela ilha de comunistas e comedores de freiras e de criancinhas acolheu o transatlântico inglês com passageiros acometidos de coronavírus que nenhum outro porto aceitou.

Na ilha a solidariedade como exemplo. Por aqui – não duvide o leitor – não falta quem queira se aproveitar da tragédia para levar vantagem. Não aqueles que estocam álcool para revende-lo a preços exorbitantes; mas os que dispõem de outros tipos de estoques como do autoritarismo respaldado em figuras de caserna.

Para eles, afinal, Congresso, Judiciário, Democracia e quejandos civilizatórios tais são embaraço para quem deseja o bem da Nação e ‘deseja’ curar o povo, mas só o fará se dispuser de controle absoluto do  poder, ainda que venha a ser alcançado através de golpes. Única solução para concluir a “missão” – dirão. Que bem pode começar com inusitado ‘estado de sítio’.

Como nada mais faltasse inovam: criam enfrentamento desnecessário e estúpido com a China para agradar o “grande parceiro” do Norte, sem medir as consequências, como bem analisa Nassif.

E, em plena pandemia do coronavírus, o governo federal (com minúscula, revisor!) cancelará contratos de médicos do Programa Mais Médicos até abril vindouro, como denuncia o DCM. ‘Só acredito porque estou vendo – diria, se em vez de maracanãs da vida fora Coliseus, aquele narrador da Fox.

Como nunca leram Dante Alighieri desconhecem o que lhes aguarda no Nono Círculo.


domingo, 15 de março de 2020

E la nave va – de Shakespeare a Jarry no país revisto por Foucault


Um punhado de beneficiados – interna e externamente – sustenta o inquilino do Alvorada. Em nível interno aquela histórica classe dominante, dona do poder (para lembrar Raymundo Faoro), meritocrática e patrimonialista; em nível externo, os de sempre, destinatários das riquezas aqui existentes e produzidas, bajulados por aqueles que os têm como o espelho em que se miram Narcisos tantos desta deslumbrada terra brasilis.

E a terrinha vive os instantes de picadeiro, enquanto aguarda o 'drama' no final da função, como ansiado nos velhos circos de província. Sob o grotesco tudo se mantém sob a falácia de que há dirigente eleito democraticamente(?). 

Porque – quando interessa – a Democracia é o discurso barato, como aquele perfume meia-hora encontrado nas feiras-livres de antanho: cheira maravilhosamente por meia hora, mas – ainda que de curto existir – enquanto produz fragrância atende e impressiona. No caso tupiniquim, o meia-hora se repete indefinidamente sustentado na eleição democrática. Até opositores afirmam o respeito à sua eleição, Lula encabeçando-o.

Mas nesta terra brasilis ninguém melhor que o inquilino para atender aos interesses. Enquanto o mambembe se faz presente algumas castas (presentes em meio a militares de alto coturno, ministros, desembargadores e juízes, promotores, procuradores, políticos) vão nadando a braçadas largas sem ouvir um mísero reclamo.

Imaginar que haja algum respeito ao inquilino como presidente – além dos que são por ele vinculados com paixão inaudita – alimenta a insanidade e a total alienação, por cumprir o singular papel de antipetista, anticomunista e quejandos tais mais e mais aplaudido pelos mesmos. 

Como governante não passa de um traste a ser lançado às traças na hora oportuna. Mas, no fundo, reflete esta parcela singular (e considerável) da sociedade pátria.

Via Michel Foucault uma espécie de perversidade na governança como se racionalidade política o fosse, na intensificação do grotesco, a ponto de adjetivar como ubuesco (referência à personagem Ubu Rei, peça de Alfred Jarry) tal comportamento social norteando instituições do Estado. Neste viés, a truculência cômica mascarando absurdos leva ao riso, o riso como auto-instrumento de sujeição. 

Em “Os Anormais” (contexto de aulas no Collège de France entre 1974-1975) Foucault desenvolve a tese do ‘poder ubuesco’ como aquele amparado em três propriedades: o poder de vida e de morte, o poder de verdade e o poder de fazer rir. Na esteira, a desqualificação de quem o produz maximiza efeitos do poder. Reflete, assim, uma profunda análise das instituições e valores que as norteiam, levadas por ele ao divã.

O grotesco – assim o via Foucault – instrumentaliza a soberania arbitrária. Ubu, sintetizando o opressor bufão, está à solta encantando e fazendo rir.

Não custa ilustrar que Ubu Rei se inspira em Macbeth. Em Shakespeare, o poder em seu aspecto trágico; em Jarry, na vertente do ridículo e do grotesco.

Mas, voltando ao governante nosso de cada dia, o inquilino do Alvorada tem o mérito de ter trazido a público, de forma escancarada como nunca antes, verdade factual escondida nos armários daquela parcela de brasileiros que nunca imaginamos existir.

O país afunda. Mas rimos a não mais conter. O trágico do tombo nos faz rir e nos sentimos felizes. O palhaço mente escabrosamente, mas rimos, rimos...

Mas, caro leitor, há o grotesco e a perversidade também em quem julga ao arrepio do Direito, ao sabor de conveniências ou a elas submetido pela covardia.

Neste particular não ocorre o riso solto e desbragado oriundo do picadeiro circense, mas em outro palco, de onde fica somente o choro contido dos que não têm força para reagir, como na criança que apanha do adulto e sabe na pele a dor da impotência.

E neste outro picadeiro eis que o próprio confirma o que todos sabiam: o STF negou recursos da ex-presidente Dilma Rousseff em sua pretensão de anular o impeachment. Confirma o que já dissera Sérgio Machado no antológico diálogo com Michel Temer quando ensaiando o golpe: tirar a presidente “com Supremo, com tudo”.

Aquela singular e inaudita interpretação – à época – do ministro Barroso de que a forma prevalecia, no caso, sobre o fundo acaba de ser materializada e assim lança às calendas os mais comezinhos princípios de direito como instrumento de persecução da Verdade e de Justiça. Ou seja, para Sua Excelência à época e a maioria que o legitima neste instante ainda que não estivesse configurada a existência de crime de responsabilidade (fato confirmado, inclusive por análise do departamento jurídico do Senado e do TCU) bastava que o procedimento instaurado estivesse conforme as exigências do Regimento Interno. 

Assim, a tramitação tendo por objeto o não existente garante a punição como se existisse o fosse. Em outras palavras: condene-se porque houve processo, ainda que sem crime que justificasse sua instauração. Lindo de morrer!

Resta-nos retomar o cinema em Fellini, enquanto as reservas são torradas pelo inquilino do Alvorada em sua sanha trágica: E la nave va. Com classe dominante, com Supremo, com tudo o mais que nos acomete. 

Ou, talvez, melhor tudo vincular ao precursor do surrealismo Alfred Jarry em Ubu Rei (1796), porque nossas instituições exercitam, em plenitude, o grotesco, o absurdo, o cínico, o brutal e caricatural, reveladas como as viu Michel Foucault.

Porque não passamos de uma caricatura do nada tornado tudo. 

Isso o que verdadeiramente assusta: a legitimação do absurdo pela omissão enquanto rimos desbragadamente.

segunda-feira, 9 de março de 2020

Um flamenguista


Nesta segunda (9), sol causticando, manhã alta, o verde inspirando silêncio na azáfama urbana. As águas de março que desabaram sobre a cidade foram-se por instantes, deixando nuvens a espreitar como sobreaviso, mas compromissadas em deixar passar o Sol para acompanhar um de seus eleitos por entre as alamedas.

Um saxofone melodiando o hino do Flamengo.

Um cortejo leva à morada derradeira neste plano um ser vestido na camisa rubro-negra, a bandeira do time que amou apaixonado engalanando o caixão.

Ali um integrante da alta cúpula administrativa da equipe carioca em outros tempos, que deixava a Bahia e seus negócios para ver o “mais querido” jogar. 

Quando aqui chegava o time para algum amistoso lá estava o seu Príncipe Hotel trajado, a rigor, de vermelho e preto. No mesmo espaço onde acolhia os contemporâneos de seus dias de Jovem Guarda no Rio de Janeiro, de Renato Barros a Ed Wilson.

Poucos souberam – ou estiveram – no último adeus a Paulinho. 

Mas a inexorabilidade da Morte cobra dos que ainda não se foram lembrar dos entes que lhes são mais achegados. Uns certamente o são mais que outros. 

Ele dentre poucos. 

Fonte de alegria pura e desinteressada, perfeito exemplo de amor ao próximo, expressão mais exemplar de solidariedade humana, dos que nascem com a consciência de que servir é a melhor forma de receber. Destes que nunca negam ao semelhante o que possam dele carecer. Criança que cresceu sem perder a inocência infante.

Levou o Creador para os seus braços a pessoa mais suave e gentil que conheci.

Paulo Ricardo Caldas Queiroz, o flamenguista por excelência. Não um flamenguista qualquer, mas Sua Excelência “Paulinho Queiroz”, portador de um sorriso largo, maior que o mundo, que carregava no lado esquerdo do peito o time que a Ciência deu de chamar ‘coração’.


domingo, 8 de março de 2020

Não bastasse, o palhaçódromo


Representante do Governo Federal aplaude policiais grevistas do Ceará e os chama de heróis (detalhes aqui). O Ministro da Justiça do mesmo governo diz que a greve dos policiais cearenses é ilegal mas os grevistas merecem tratamento diferenciado.

Certamente por serem ‘os’ grevistas aqueles que descem o cassetete em grevistas desarmados. Como os antes encapuzados ao abordarem estudantes dentro de uma escola de Fortaleza, sob a alegação de que teriam sido ‘xingados’... (aqui)

O chefe da nação (com letra minúscula, revisor!) xinga e achincalha jornalista, se reúne como garoto propaganda junto a grandes empresários pedindo que façam publicidade nas empresas amigas (dele) etc. etc.

Mas, eis a terra brasilis de todos nós acovardados. E não somos nós da ralé histórica os agredidos. Tão acostumados estamos porque sempre o fomos em todas as dimensões: econômica, social etc.

Eis o pais que perdeu o respeito. E não mais se dá ao respeito. Suas instituições formais, insculpidas constitucionalmente sob a égide de um Estado Democrático de Direito arrastam-se pela rés-do-chão e mergulham neste grande penico, bispote, vaso, bacio, capitão, cabungo, urinol etc. etc. ou como o queira chamar quem não se envergonhe de fazê-lo. 

Para não perder o embalo da histórica conveniência e subserviência às classes dominantes a imprensa aceita humilhações a cada novo dia.

Chafurdar na merda não mais pode ser atribuído a uma das vertentes do prazer mórbido atribuído ao Marquês de Sade, retratado politicamente na visão (profética) de Pier Paolo Pasolini em “Saló, ou os 120 dias de Sodoma”. É que a nossa escatologia nem encontra alhures nem olhares para ser traduzida através da Arte do cinema.

Chafurdados estão Ministros das Cortes Superiores, Juízes, Desembargadores, Deputados e Senadores, Militares das Forças Armadas. Estes, em particular deveriam vir a público explicar o porquê de tanto encantamento e apoio a quem foi reformado por decisão homologada por Tribunal Militar para não ser expulso de seus quadros, depois de apuradas suas responsabilidades de natureza terrorista, que incluía a ameaça de explodir a adutora do Guandu, no Rio de Janeiro, em 1986.

Acha pouco o leitor? Certamente. 

Mas não se constranja, porque na falta de gladiadores e de um Coliseu para o panis et circenses tupiniquim criamos o palhaçódromo no Palácio do Alvorada.

De similitude àquele (o romano) apenas que os nossos pobres (como os cristãos primitivos que faziam a alegria de imperadores de então) continuam sendo vítimas dos Neros de hoje.

domingo, 1 de março de 2020

O que (não) dizer como Verdade


Fará parte do anedótico imaginar que aquele que pretende dominar o mundo, suas riquezas, escravizar o semelhante faça-o anunciando seu projeto por meio de assembleias populares. Que derrubar governos e submeter povos seja tema de discussão em ágoras modernas, ou nas que se imaginam sucedendo-as (rádio, televisão etc.).

E sempre foi assim. À sorrelfa, na calada da noite reúnem-se os sátrapas em seus covis. Trafegam em carruagens fechadas atiçando os cães pelas ruas. Sempre foi assim, inclusive vasto tema explorado na literatura. Os lobos não caçam a descoberto.

As coisas realizadas em segredo o são para que possam corresponder ao planejado e ao decidido. E ninguém planeja o controle do planeta às escâncaras.

Desde que o vento é vento, e ventou para o homo sapiens a caminho de ser o sapiens sapiens, democracia é instrumento de fazer valer o controle social por um dirigente escolhido pela maioria. Tal ocorre por afinidades de interesses (governantes e governados). Mas não se confabula com as multidões as políticas de Estado que este ou aquele governo põe em prática. 

A Democracia – não precisa aprofundar – é apenas um dos meios por que se alcança o poder. O exercício do poder, portanto, tem suas próprias regras, que nunca serão levadas ao povo para discussão, porque – para isso – há representante e gestores eleitos para o mister.

Sentimo-nos cansado – e não desistimos porque tal ação verbal não se coaduna com o pensamento idealista – em ler, ver e ouvir em torno da realidade imediata: a política e a econômica como sustentáculo do existir nesta sociedade contemporânea. Sem serem levadas em conta – com a clareza ideal – as razões por que de existirem na forma atual, fruto de um processo construído historicamente, apenas aperfeiçoado aqui e ali, mas sem perder a essência em si contida: o controle do poder não está necessariamente no exercício do poder.

Cansa pela superficialidade o lugar comum levado ao debate: ora tudo recai sobre o inquilino do Alvorada, ora o inquilino culpa a todos que estejam a sua volta desde que o alvo seja o de sempre: Lula, PT, comunistas, inimigos da Pátria etc. etc.

Cansa, porque um ano já ultrapassado em que – reconheçamos tal verdade – o inquilino do Alvorada nada fez além do que sempre representou e do que prometeu. Consciente ou não nunca enganou. O histriônico que é sempre foi. Quando muito podemos elevá-lo ao patamar patológico, mas nunca de que ‘enganou’.

Mas – isso o que muito cansa – o inquilino é centro e motivo para tudo.

Os que o criticam deixam de lado a razão por que está lá e – mais significativo – porque permanece lá.

Mas, caro e paciente leitor, esta terra brasilis tornou-se – não de agora – pródiga em manuais: de direito, de política, de economia etc. Do manual não se pode exigir aprofundamento, porque cuida ele de informar o básico para uso imediato. Nunca saber o porquê.

E quem trabalha com manuais nesta contemporaneidade foge – como o Diabo da cruz – de analisar a realidade. Mais seguro reproduzir um pensar próximo à homogeneidade, cuidar de expandir indefinidamente uma narrativa comum, convergente.

A imprensa a grande cabeça de ponte, abrigo dessa gente: os mesmos “notáveis”, os mesmos “gênios”, os mesmos “intelectuais”. Parecem ter ciência de que erram, mas errando em conjunto não lhes faltará mercado e audiência.

Eis o porquê de tudo acima escrito.

Porque já anunciadas as mobilizações – à direita e à esquerda – contra tudo e contra todos.

Cansa-nos tudo ver, tudo ouvir na certeza de que nada mudará. Porque estamos na era do manual, do superficial. E o superficial é a discussão posta como solução sem de longe tocar na razão do por que acontece.

Quem tudo aqui promoveu e quem de fora o comandou deixou o ‘manual’: discuta o superficial, nunca indague por quê.

Ainda que você diga que é Verdade o que não é, ou nunca foi, Verdade.

Querem nos convencer de que a riqueza acumulada torna o homem Humanidade feliz. Querem nos convencer de que não é a riqueza e a avareza que nos tornou no que nos tornamos. Querem nos convencer de que entregando o que possuímos nos fará mais ricos. Querem nos fazer crer que desempregar é solução, que destruir a Natureza é progresso, que empobrecer mais e mais os despossuídos é caminho para sua própria melhoria. Afinal – para não enveredar por chavões – que sermos mortos-vivos no pensar nos faz caminhar para o Conhecimento.

E por aí vai!

O não dizer como Verdade ao largo de dizê-la em plenitude. Apegados aos manuais dos ‘notáveis’, dos ‘gênios’ e dos ‘intelectuais’ que convergiram para o conveniente e nos dizem diariamente o que não é Verdade.

E ladramos enquanto a carruagem continua passando. Nela escondidos os que tudo planejam, elaboram os manuais e remuneram quem os divulga como mantra ou dogma de Fé.