domingo, 31 de março de 2024

Do bom dia a cavalo à rapsódia húngara

 

A sabedoria popular leciona que ‘quem fala muito acaba dando bom dia a cavalo’. Expressão clássica de uso corriqueiro pela sapiência nordestina em torno da qual deve muito conhecer o Presidente da República.

O noticiário reflete o desdobramento de uma denúncia feita ainda no ano passado, de que o ex-presidente da República não teria devolvido cerca de 161 bens móveis que integram o acervo do Palácio do Alvorada, residência oficial do Chefe da Nação. Não se descura que entre ditos ‘desviados’ estivessem alguns da Granja do Torto. Bem possível.

O alardeado pela imprensa é de que o Presidente teria falado do ‘desaparecimento’ de ditos móveis. E mais: também a primeira-dama não perdeu o mote e verbalizara em torno do tema.

A reflexão a que nos propomos gira em torno do como andam os órgãos de comunicação do Governo e, particularmente, os incumbidos de falar em nome e pelo Presidente. Isso porque não é a pessoa do Presidente, mas a instituição “Presidência da República” que utiliza dos meios técnico-institucionais para tal mister.

Não enveredemos pelo lacerdismo udenista de gastos feitos para aquisição de móveis novos; afinal, em termos de gastos o ex bate o atual disparando velocidade astronômica, basta lembrar que até gastos para limpeza do lago de entrada do Palácio do Alvorada que fizeram desaparecer as moedas ali acumuladas pela tradição turística de alimentá-lo para dar sorte.

Mas, voltando à vaca morta: ao que nos parece, nenhum deles (Presidente, primeira-dama) respeitou as normas em torno do assunto. E, não bastasse – sem qualquer ressalva de que algum órgão competente estaria a buscar localizar os móveis e até aquele instante não encontrara – aproveitaram o estado de ‘cachorro morto’ do ex-presidente e participaram da sessão de socos, chutes, pauladas e pontapés. Naturalmente tudo levado às alturas pelo noticiário; afinal, a fonte justificava o alarde em torno do ‘escândalo’.

Mas não é que descobriram os tais 161 móveis?

E a divulgação não traz notícia de apuração em torno de quem veiculou a falácia levada ao Chefe de Estado – na qual também embarcou a primeira-dama.

E eis que refém o governo de (mais) uma futrica de ‘comadres’ ainda que esteja surpreendendo em nível de economia, PIB, relações externas, soberania, investimentos, retomada do crescimento, queda de juros, redução do desemprego, criação de escolas técnicas (só a Bahia é destinatária de 10 deles) etc.

E o “cachorro morto”, envolvido em denúncias graves até o pescoço se vê (mais uma adiante analisada) – e à sua turma – na proa de ataques ao Governo e se amparando (como se isso pudesse livrá-lo dos incômodos) na “injustiça” cometida contra sua augusta figura.

E está certo nesse quesito: até que provem o contrário foi acusado indevidamente.

Cremos que – até que venha à tona quem induziu o Presidente à acusação (a qual não precisava assumir) – um mote para o palanque contra o PT e o Governo foi dado de mão beijada.

Mas – mas que se impõe – em sua atual gestão – o Presidente Lula está devendo muito no quesito comunicação. Para nós em duas latitudes singularmente negativas: assumir-se porta-voz político-eleitoral no ataque ao ex-presidente (mister que não lhe cabe e sim ao PT) e falando demais.

Sobre esse “falar demais” – muito provável, queremos crer – que esteja a amparar a primeira-dama, que fala o que bem entende onde bem entenda.  

Que saudades de D. Marisa Letícia! Que se limitava a ser mulher do Presidente da República e não dava “bom dia a cavalo”.

Mas, tudo isso ultrapassado – caro e paciente leitor deste escriba de província – há também os que falam pouco em meio aos que falam muito. E não falta quem não entenda de música, mas busque embaixadas para ouvir e aprender rapsódia húngara! Quando bastaria ouvir Liszt Ferenc, mais conhecido nos botequins da vida como Franz Liszt (1811-1886).

Mas, do alto da intemperança, fazendo ou falando demais – dizemos nós – de certa forma se aproxima da ironia de José Simão, de que há gente nesta terra brasilis que até “decreta Estado de circo!”


domingo, 24 de março de 2024

Entre Pessoa e Russell

 

“Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...”

(Adiamento, Fernando Pessoa, pelo heterônimo Álvaro de Campos)

 

Convivemos com situações que ultrapassam a fronteira do inusitado. Certo que a idade alimenta em sua fase ‘filosófica’ a observação dialética em torno do que se nos acomete.

Mas, por mais que tenhamos evitado editoriais e noticiários televisivos e quejandos tais – desde muito, quando os percebemos peças da engrenagem de um sistema alienante – e, quando muito, nos limitamos a rir das versões difundidas como verdade quando lançada às calendas a Verdade (aristotélica), a mediocridade em coortes atravessa o Rubicão e avança em tática napoleônica sobre o que resta.

Não bastasse, a maioria de ‘técnicos’ nas diferentes áreas de (des)informação é testemunho de que não se trata de expressar formação intelectual, mas de corresponder ao ‘compromisso’ com o que lhes sustenta, naturalmente o “mercado’, o grande ‘empregador’. Uns, remunerados pelo vil metal; outros, por deslumbramento pequeno burguês.

Por isso não estamos conseguindo nem refletir sobre o ontem, atropelados pelo presente – que sob um dos prismas da autoajuda se outorga solução – profundamente violentado física, histórica, ética e humanamente pela carga de mensagens/verdades “absolutas”.

Tampouco – muito, muito menos – refletir sobre o outrem. Negamos-lhe o passado para reflexão e o presente o temos como campo de batalha onde o outro é o adversário em disputa fratricida a ser aniquilado. Sem direito a clamar por solidariedade.

E quando a realidade se expressa sob a ótica do ‘mercado’ eis em plenitude a negação do Humanismo, o ápice da negação do homem como destinatário da felicidade. Até a mensagem cristã foi apropriada pelo mercantilismo.

Eis que esta terra brasilis tenta enfrentar hostes servis à negação de tudo – sem apologia – que não se debruce sobre o homem como fonte e destino do bem comum.

Mas, não enxergamos o instante de “pensar o amanhã no dia seguinte”. O imediato nos afeta como destino inexorável e concentramos energias negativas em profusão lançando ao fundo do poço a esperança realizável.

Ainda que sub-reptício (desfigurando-se do alcunhado em nível ideológico) a velada forma de negação aí está, alimentando a ‘sua verdade’ e pensar ilustradamente tornou-se alvo de estigma e nós outros aos poucos sucumbimos a quem nega o ‘dia seguinte’ ao amanhã, sufocados e amordaçados.

Mas, para os que não esquecemos o passado como lição nos escudamos em reconhecer, como o reconheceu Bertrand Russell:

“Primeiro, eles fascinam os tolos; depois, amordaçam os inteligentes”.


domingo, 10 de março de 2024

Fragrâncias

 

O Chanel Nº 5 certamente é das mais icônicas fragrâncias contemporâneas, tida mesmo como atemporal. Tem origem em um óleo essencial extraído da madeira do pau-rosa, originário da Amazônia. Faz fama desde sua criação, atribuída a Gabrielle Bonheur Chanel (1883-1971), em 1921, para a Coco Chanel.

A não menos famosa Rainha de Sabá alcançou notoriedade em seu tempo – o que a imortalizou – por sua capacidade de manusear perfumes – ‘imperatriz do aroma’, disse-o o poeta Sosígenes Costa – e o conjunto de odores por ela destilados – da mirra ao sândalo, da lavanda ao patchouli, do nardo ao cedro, do incenso ao bálsamo, da murta ao ládano, da canela ao gálbano – soube-o dominar. Por tudo dela originado envolvendo essências poetas a definem metaforicamente como lágrima sabeia, nome dado ao incenso em sua homenagem.

Mas, no curso dos tempos, e da facilidade de acesso, a apropriação das essências não mais somente se fundou em si mesma, mas na marca a ela atribuída. A ‘personalização da essência’ de certa forma despreza a origem e favorece o rótulo. A mesma essência será, assim, reconhecida por nomes diversos.

Sob tal diapasão nomes famosos ‘vendem-se’ ao mercado de perfumarias e induzem o consumidor à aquisição para “ser” ou “parecer” com quem lhe dá o nome.

Não enveredemos aqui por compreender o “fetiche” da mercadoria perfume como em torno desta filosofou Karl Marx, mas certamente seria um singular exemplo para sua interpretação...

Mas, por que todo esse arrazoado? Eis que descobrimos novas “essências” perfumísticas: Michele, ex-primeira-dama tornou-se rótulo para uma essência qualquer que será comercializada não por ela em si mas pela referência especulativa.

Como não bastasse anunciam uma essência com o nome do marido. Desconsiderando a ironia de José Simão – de que a dita cuja encontraria suas raízes no “aroma capim” – certo que a coisa já transita pela comercialização.

Lançamento com pompa e circunstância muito brevemente. Não faltará quem esgote reservas financeiras, saque da poupança, venha a se endividar – até mesmo reduzir o dízimo para as igrejas, os que o pagam – para fazer parte dos enlevados que aperfeiçoarão a sensibilidade olfativa e, para provar a utilização de tal inovação, não causará surpresa que venham a andar se cheirando como cão pelas ruas para demonstrar afeto, fidelidade e admiração idolátrica às fontes das “essências”.

E ficamos a matutar, a que ponto estamos alcançados: para uma gente que ilustra seu conhecimento universal reconhecendo Israel como país cristão (certamente por desconhecer o assassinato de Jesus a pedido da teocracia local), que ainda insiste em reconhecer a quadratura da Terra, que nega avanços da Ciência em benefício da vida etc. etc. etc. trilhar por fragrâncias impostas não lhes custará reconhecer e propagar como profecia aos quatro ventos do universo a essência do pum como dádiva divina e a mais estonteante de tudo até hoje levada a termo.

Em especial alcançará eflúvios ímpares se dita ‘essência’ se originar de algum mito ou de quem lhe esteja próximo.

 

domingo, 25 de fevereiro de 2024

O Presidente Lula andou lendo Plutarco

No último século antes da Era Cristã os romanos avançavam para consolidar sua expansão econômica e territorial dependendo em muito do produzido nas províncias conquistadas. Alcançaria foro de império em dimensões gigantescas no curso dos anos (Norte da África, Península Ibérica e Oriente Médio), mas houve tempo em que Roma dependia dos mares e não se pode dizer que detivesse controle pleno sobre eles; os riscos de navegar muito grandes, incluindo a temida pirataria no entorno da Sicília. 

Por volta de 70 a.C. ao general Pompeu (106-48 a.C.) a incumbência de transportar o trigo das províncias para a sede do Império de Roma e diante do temor esboçado por seus comandados – afirma-o o historiador Plutarco – teria proferido a famosa frase que veio a ser referência para o poema de Fernando Pessoa “Navegar é Preciso” como tema para a criação como vocação do homem, que o insigne português punha acima do próprio viver:

Naqueles tempos, os riscos de navegação eram grandes, em virtude das limitações tecnológicas e dos vários ataques piratas que aconteciam com relativa frequência. Sendo assim, os tripulantes daquela viagem viviam um grave dilema: salvar a cidade de Roma da grave crise de abastecimento causada por uma rebelião de escravos, ou fugir dos riscos da viagem mantendo-se confortáveis na cidade de Sicília. Foi então que, de acordo com o historiador Plutarco, o general Pompeu proferiu a lendária frase.

Não afirmemos que tenha Lula lido Plutarco, mas – quando nada – sabe-o pronunciada por Ulisses Guimarães, ao lançar-se anticandidato à Presidência da República em setembro de 1973 enfrentando a peito aberto a ditadura militar naquela fase das mais macabras.

Os riscos de aventurar-se por mares bravios (enaltecidos por Camões nos Lusíadas) não constitui privilégio ou primado de uma época, de um instante no curso da História, mas do reconhecimento da dignidade diante do terror, do medo, do assombro. A perseverança em marcar posição em defesa de um ideal acima da própria vida.

Afastado de qualquer ufanismo nos filiamos ao enfrentamento levado a termo pelo Presidente Lula ao questionar o genocídio posto em prática por Israel (em sua dimensão sionista) sob o crivo de Netanyahu. Não por ser Lula presidente do Brasil; mas por existir e levantar sua voz contra tamanho absurdo. Sua grandeza existe em externar sua voz contra oprimidos além fronteiras. Afinal, o povo palestino não pode ser confundido com este ou aquele grupo que ponha em prática atos condenáveis. Quem admite que a matança que ultrapassa 30 mil mortos – que não são do Hamas – entre recém nascidos, mulheres e idosos, hoje privados até de alimentação, não o faz por conhecimento histórico, tampouco por reconhecer Jesus como sionista. Afinal, por defender o que defendeu foi assassinado pela cúpula do Sinédrio que impôs a Pilatos sua condenação sob pena de ser ‘traidor’ de Roma.

Afinal, como já registramos neste espaço (Lá estavam os Cananeus)

 

DEUTERONÔMIO 20

16 Contudo, nas cidades das nações que o Senhor, o seu Deus, lhes dá por herança, não deixem vivo nenhuma alma.

17 Conforme a ordem do Senhor, o seu Deus, destruam totalmente os hititas, os amorreus, os cananeus, os ferezeus, os heveus e os jebuseus.

...

1 SAMUEL 15

Vai, pois, agora e fere a Amaleque; e destrói totalmente a tudo o que tiver, e não lhe perdoes; porém matarás desde o homem até à mulher, desde os meninos até aos de peito, desde os bois até às ovelhas, e desde os camelos até aos jumentos.

Os que enfrentaram o poder concentrado e manipulado sabem – alguns não tiveram tempo de percebê-lo no existir – que põem sua vida em risco. Os loucos e desvairados aí estão imaginando-se heróis. Que o digam Lennon, Kennedy, Gandhi, Luther King e profetas do Velho Testamento (o último deles, Jesus de Nazaré, assassinado por enfrentar o poder judaico de então).

Há quem pense em si em detrimento dos que sofrem. Mas não cabe somente aos profetas clamar contra as injustiças, contra os poderosos.

Dito isso, pode não ter Lido Plutarco ou Fernando Pessoa, mas deste certamente o Presidente Lula conhece e verberou para o mundo: “Tudo vale a pena / se a alma não é pequena” (Mar Português).

E do poema trazemos sua conclusão:

“Deus ao mar o perigo e o abismo deu,

Mas nele é que espelhou o céu”


Falta-nos, e muito, conhecer História, ler Pessoa e raciocinar com lucidez.

domingo, 18 de fevereiro de 2024

"Êta paisinho..."

 

Perdoe-nos o paciente e estimado leitor deste escriba de província o tanto retardar a postagem deste semanal. Problemas técnicos presentes, mas não somente isso.

Vivenciamos singularidades que – nessas quase oito décadas de existência – não imaginaríamos viver. Dentre muitas a forma como a denominada imprensa ‘formadora de opinião’ trata a realidade. Inelutável que o país hoje ocupa espaço no concerto das nações como há muito não ocupava. Esse nosso “há muito’ está voltado para um fato concreto: muitos são os anos para reconhecimento, mas para destruí-los pouco tempo basta. E quem mais o afirma não está restrito aos limites territoriais desta terra brasilis. Mesmo porque – no quesito ‘opinião editorial’ – nenhum destes arautos da verdade encontra reconhecimento lá fora.

Dizemos isso – e logo decidimos concluir a especulação – porque se nos basearmos naquilo que esses ‘técnicos de fancaria’, ‘comentaristas a serviço de quem os paga’, e quejandos tais, o país está definitivamente alheado do resto do mundo no plano diplomático, desfeito de perspectiva na seara da Geopolítica, sofrendo reveses na política econômica (interna e externamente) etc. etc....

Mesmo quando o seu Presidente estabelece postura em nível planetário – agradando ou não, o que é natural – a plebe ignara (obrigado Stanislaw) do pensamento único de imediato ocupa o espaço do auditório reservado à “turma do gargarejo”, dispensa a análise lúcida e cai de pau e pedra no indigitado, quando lá fora a exaltação está mais expressa e somente contra ela gritam e esperneiam os efetivamente atingidos com a verdade diplomática diante da crueza da Geopolítica pensada pelo Ocidente.

Nada a criticar diante da ‘qualificação’ crítica. Afinal, quem pouco ultrapassou as primeiras letras do alfabeto humanístico e ainda não superou conta de somar e diminuir no âmbito da distribuição da riqueza de todos concentrada em unzinhos, falar em questões de tamanha envergadura cheira a falar de “paz e amor’ para quem só conhece a guerra.

Em “O Homem Que Desafiou o Diabo (2007), dirigido por Moacyr Góes), o personagem ainda não tornado Ojuara - vivido por Marcos Palmeira - levanta-se, abre a janela, olha para a rua e destila: “Êta cidadezinha de merda!”

Adiantamos ao caro e estimado leitor que o ‘paisinho’ não é o país em sua totalidade, mas parte de sua gente que se imagina dominá-lo por deter uma caneta ou teclado. E nem se fale dos que se expressam nas ‘telinhas’ alcunhados de ‘experts’, ‘comentaristas’, ‘profetas’  e nem fale de quem disponha de um púlpito  verborragindo baboseiras.

Não é a Jardim dos Caiacós do filme. Mas, êta paisinho...  


domingo, 11 de fevereiro de 2024

Intolerável

 

A lucidez não permite tolerar o que acontece no país. Pouco mais de ano da tentativa de ruptura constitucional, de derrubada das instituições que sustentam o Estado Democrático de Direito, de tentativa de golpe para destituir um governo recém-empossado, de terrorismo explícito (bomba em carro tanque ao lado do aeroporto de Brasília), de ameaça de matar ministro, de invasão e depredação de prédios públicos em centros e sedes de Poderes da República, de conhecimento de reunião golpista no Planalto em dimensão ministerial etc. etc. e o ex-presidente(?) anuncia ato em espaço público em defesa dos interesses inconfessáveis que defende.

Dele individualmente este escriba de província nada espera, tampouco cobra. Mesmo porque tem consciência de que a chegada do ‘ilustre’ aonde chegou não foi fruto de sua (in)capacidade individual, mas de uma articulada trama (e muito bem articulada!), baseada não só em projeto alheio territorial e politicamente ao país; mas de efetiva participação de parcela da judicatura (Curitiba e TRF-4), incluindo o STF e o TSE que tanto fizeram e contribuíram para que o dito cujo vencesse as eleições.

Por tal razão toda e qualquer adjetivação hoje atribuída ao próprio e levada aos quatro cantos como crítica não convence este escriba como novidade.

Apenas avivando o fogo da lembrança – as cinzas não se fazem à custa da realidade do fogo que a origina? – alguém das cúpulas (Judiciário, Forças Armadas etc. ou da sociedade civil-empresarial) desconheceria a atuação terrorista do inominado nos idos de 1986 (explodir a adutora do Guandu, no Rio de Janeiro) que o levaram à prisão por 15 dias e se consumou com a sua reforma aos 33 anos dois anos depois?... Ou o que dele dizia o ex-presidente Ernesto Geisel  para quem o mais ameno era chamá-lo de "mau militar"?

A reforma do então tenente – solução técnico-jurídica encontrada pela Justiça Militar – mais visou burlar a opinião pública, ou maquiar a ‘justiça’ interna corporis. A inoportunidade e momento histórico não poderiam reconhece-lo expulso por ato de terrorismo diante da imagem desgastada de uma ditadura militar que acabava de ser defenestrada (a qual sempre defendeu, e para ele no período deveriam ter sido mortos/assassinados 30.000 Brasil a fora).

Não, caro e paciente leitor deste escriba de província. A atuação do STF legitimou o ilegitimável, de admitir a inconstitucional prisão em segunda instância – lançando às calendas o trânsito em julgado fixado na Constituição Federal como direito pétreo – não bastasse haver deixado correr frouxo um processo de impeachment, legitimado pela Corte sob o pálio da omissão.

Sabido e consabido que a prisão do então ex-presidente Lula inviabilizaria sua candidatura e a garantia desta ficou aguardando na gaveta do Ministro Fachin até que fosse conveniente e garantido o seu alijamento do processo eleitoral;. E preso estava epois de 1 ano e 8 meses de processado, com decisão do TRF-4 que ampliou a condenação unânime na dosagem de penas (os três julgadores concordaram até nas vírgulas com o relator!.

A ex-presidente Dilma Roussef fora defenestrada sob a anuência deste mesmo STF, a ponto de um Ministro declarar em entrevista que a questionada inconstitucionalidade do processo de impeachment não poderia ser analisado pela Corte por se tratar de tema correto sob o prisma da processualística interna do Câmara, ainda que a questão que lhe cabia dizia respeito à ausência de objeto, ou a inconstitucionalidade do objeto que amparava àquele. Tal absurdo (ou conveniente ‘frouxidão’ diante do sistema que se beneficiaria de tudo) representava o mesmo que dizer que um inquérito policial armado para perseguir alguém, sem indícios de crime, seria válido porque internamente estava regularmente constituído.

Lemos recentemente que “as redes” estão sob “controle” de admiradores do ex-inquilino do Alvorada. Residiria aí o temor das instituições diante dos absurdos em curso?

Como cobrar de quem alcançou o poder máximo do país à custa de tamanhas omissões?

Não, caro e paciente leitor deste escriba de província. Não há justificativa alguma para chorar o leite derramado. Em especial para o intolerável.

Ou será que o ‘absurdo’ tem razão para existir e mesmo ser alcançado por uma ‘anistia branca’?

Certamente isso estaria em andamento caso depois do ato anunciado (legitimador dos absurdos perpetrados e provados à exaustão) se torne confissão escancarada da covardia institucional e não esteja o ex-inquilino do Alvorada preso.

Ou  quem sabe?  conseguindo asilo como político “perseguido”, na vizinha Argentina!


domingo, 4 de fevereiro de 2024

Os donos do mundo

 

Registramos em Caminhos Existem:1,6 quatrilhões de dólares americanos, 80 PIBs desta terra brasilis; 8 décadas – quase um século – de riqueza anual produzida no Brasil a preços de hoje concentrada nas mãos de um punhado (e bota punhado nisso!) de especuladores que controlam o sistema financeiro internacional/mundial.

Eis-nos futucando a desarrumada biblioteca e reencontramos “Os Credores do Mundo”, de Anthony Sampson (Editora Record, 1981), com o singular subtítulo ‘Os Banqueiros Internacionais Que Financiam a Dívida Externa’.

Na página 29 (Capítulo 2 – Quem cuida do Mundo), uma citação de Galbraith: “O processo através do qual os bancos criam dinheiro é tão simples que a mente não o aceita”.

“Tão simples” que se nos assemelha à facilidade com que treiteiros (definidos vernacularmente como estelionatários para fins punitivos) vivem e sobrevivem à custa de enganar o semelhante para deles auferir vantagens. Vem-nos à mente Bertold Brecht (1898-1956) na “Ópera dos três vinténs” (1928): “O que é roubar um banco comparado a fundar um banco?”, desdobrada na reprodução cotidiana em ‘o que diferencia um assaltante de banco de um fundador de banco’ e, muito contemporaneamente; ”Roubar um banco é coisa de pobre; afundá-lo é coisa de nobre” (vide) por meio da também não pouco singular e valiosa contribuição tupiniquim a fazer lacrimejar o orgulho pátrio inspirado no Conselheiro Acácio.

Muito a propósito, recomenda-se a leitura de um clássico da Literatura Portuguesa ,“A Arte de Furtar”, hoje reconhecida como do jesuíta Padre Manoel da Costa (1601-1667).

Mas, lá vamos nós, observando o jogo de interesses sob controle dos ‘donos do mundo’, exploradores como ninguém deste o antanho e – naturalmente muitos cairão de pau neste escriba de província – causadores por excelência da miséria e da fome no planeta.

A ‘criminalidade mafiocrata’ – que somente admite de bilionário para cima, em torno da qual gargareja aquela parcela apenas milionária e defendida (não se espante o leitor) com unhas e dentes por quem não tem o que expelir diariamente como excremento, e que, espumante e raivosa, desanca quem critique a ‘livre iniciativa’ e o ‘capitalismo neoliberal predador’ que a miserabiliza.

‘Donos do mundo’ porque assumem o controle de Estados nacionais impondo-lhes regras elaboradas pelos organismos por eles criados para tudo justificar e levado aos quatro cantos como verdade absoluta e tachando de inimigos os que porventura levantem senões.

Pepe Escobar, em uma de suas mensagens no Pepe Café, ilustrando em torno dos destinatários da defesa das minorias alardeada pelos poderosos ilustra muito bem quem são ditas minorias as efetivamente protegidas: os bilionários.

Muito a propósito nos idos de 2008/2009 a quebra do sistema financeiro, colapsado por meio do chamado ‘subprime’ (aperfeiçoamento do dito por Galbraith), que fizera invadir o mercado imobiliário com “papeis’ sem lastro, multiplicados ao infinito, até que pelo meio do caminho alguém tentou resgatar e se viu com a porta ‘arrombada’: de imediato o tesouro estadunidense o amparou com a bagatela entre 4 a 5 trilhões de dólares.

Memória curta a nossa. Talvez por conveniência levados ao esquecimento.

Conclusão deste escriba de província diante de ‘análises’ do mercado: os “donos do mundo” não estão nada satisfeitos com os caminhos pretendidos pelo governo para a economia brasileira. Afinal, heresia pura pretender gerar emprego, distribuir renda, fortalecer a indústria nacional, investir em estradas, portos, ferrovias, refinarias etc. etc. e a maior das heresias: cobrar imposto de quem ganha mais (os muito ricos, naturalmente; não a pequeno-burguesia que os defende).

O centro das preocupações e orientações de sempre: controle da dívida, da inflação, o equilíbrio fiscal etc. etc.

(A propósito da inflação personagem nosso em algum destes mal escritos oriundos desta mente provinciana diz com todas as letras: se inflação fosse ruim para os ricos com certeza não existiria).

Mas, retomando o roteiro: tomar emprestado em suas mãos ‘banqueiras’ e entregar aos seus apaniguados o que resta do patrimônio pátrio certamente é bem melhor. Dizem-no seus porta-vozes.

Tanto que a ‘prudência do Banco Central’ mais e mais aplaudida por tal estamento, ainda que juros escorchantes permaneçam.

Mas, os “donos do mundo” não vivem de tais juros?


domingo, 28 de janeiro de 2024

Da barbárie à pós barbárie

 

Quando nos imaginávamos trilhando a Civilização eis-nos no estágio da pré-barbárie. Dizemos isso sustentado no elementar raciocínio de que se retornamos àquilo que condenamos no passado e pensávamos ultrapassado pecamos duas vezes.

Incomoda o ser humano – humana e humanisticamente – assim compreendido, toda e qualquer atrocidade cometida contra indivíduos da espécie no curso da História. E isso que chamamos de Civilização é fruto de um processo de evolução moral e ética, que transitou lenta e constantemente no curso dos milênios recentes, consubstanciando a Moral em Ética e estabelecendo, através de ordenamentos jurídicos que superaram a teocracia, a tirania, a monarquia absoluta etc.

Os desta terra de São Saruê vivemo-la nos últimos cinco séculos o que nos coube cometer. Debret legou para que não esquecêssemos tristes expressões da escravidão em sede brasileira, aquela que utilizou o semelhante não como objeto de conquista guerreira mas para o viés mais aviltante, o de vê-lo como mercadoria.

A pós barbárie vivia(veria) no plano do inconcebível em dimensão civilizatória tão somente como texto para estudo de contexto do absurdo. O processo de evolução de valores em relação aos direitos naturais – o direito à vida, à liberdade, à reprodução e à ideia de justiça – sem pretendermos reconhecer – como o via John Locke (1632-1704) – a propriedade no rol de tais direitos, o que natural, no plano histórico, porque partido de um dos próceres do liberalismo em época em que a pirataria era a mais amena das formas de conquista da riqueza alheia.

Perdoe-nos o caro e paciente leitor deste escriba de província. Em especial aqueles que têm os EEUU como destino reverenciado e sonhado.

De parte dele – todos os que convivem com ele o sabem – há um ‘testamento’ sem registro ou traslado em cartório com o único e irrenunciável ato de última vontade: caso tenha que ver salva a sua vida e dependa para tanto de passagem por sobre o espaço estadunidense, ainda que o aéreo, por favor deixem-no morrer, caso contrário não dará trégua aos que o permitiram quando em dimensão de ‘fantasma’.

Não se trata de xenofobia como muitos desavisados diriam. Mas da conscientização construída no curso estudos e leituras de fatos históricos. Desde tomada de territórios alheios (como o fizeram com o mexicano, que perdeu o Texas, o Novo México e a Califórnia, que – além da riqueza assaltada que fez elevar a riqueza do país – representam cerca de 14.9% do território atual) sob força da pólvora ou do dinheiro. Coisa que pouco mudou. Hoje premia o México com um muro de isolamento.

Ainda que não o seja em nível federal, a constituição estadunidense admite decisões sobre o Estado confederativo ser ou não assassino (assim o dizemos) ao admitir a pena de morte para certo tipo de crime. Não precisa afirmar – ainda que não disponhamos de números exatos – que hispânicos e negros em geral são os destinatários comuns aos corredores da morte.

Temos particularmente ojeriza à pena capital. Para nós, o fracasso civilizatório mais evidente. A uma, porque não consegue reduzir a prática de crimes que a exijam; a duas, porque os destinatários desconhecemo-los entre os abastados, a não ser que outras razões (políticas) intervenham, da qual não escapam nem mesmo presidentes.

Mas o suprassumo do fétido e asqueroso sumo chega com festa e pompa ao Tio Sam: não basta matar para excluir o peso da sociedade, mas fazê-lo agonizar por minutos até que se fine a vida.

Por onde tal barbárie está a ocorrer a vida animal encontra o respeito que a humana não alcança: em fase terminal é sacrificado, sim; mas anestesiam-lhe antes. Por lá a justiça não o admite.

Quem pretenda assimilar um pouco da verdadeira história daquele país – historiado pelo cinema, para não irmos longe – verá que não se faz apenas de épicos, haja vista o que nos legam exemplos como visto em “12 Homens e uma Sentença (1957), de Sidney Lumet; Crime Verdadeiro (1999), de Clint Eastwood; “À Espera de um Milagre” (1999), de Frank Darabont.  

Para nos bastar por hoje, não nos esqueçamos de como funcionam a condução de decisões judiciais e investigações preliminares, basta pesquisar o próprio cinema assistindo, entre tantos, “Sacco e Vanzetti” (1971), de Giuliano Montaldo, ou a minissérie para TV (1977); “Os Intocáveis” (1977), de Brian De Palma; “Mississipi em Chamas” (1988), de Alan Parker etc. etc.

No entanto, para não sermos lisonjeado pela adjetivação da crueldade, não custa rir um pouco vendo Carlitos, do inesquecível Chaplin, quando metaforiza o Estado na figura do policial que o persegue, basta vê-lo.


domingo, 21 de janeiro de 2024

Conto de fadas - Parte II


 No dia aprazado iniciou o projeto

–  O administrador será aquele escolhido por todos em eleições; os que legislarão também definidos em processo eleitoral; e quem dará a última palavra sobre a aplicação da lei, os escolhidos entre os que dominem a compreensão sobre ‘dar a cada um o que é seu conforme o seu merecimento’. Tenhamos o povo no poder através de representantes, porque teremos como lema o governo do povo, para o povo e pelo povo.

E lecionou:

– Mas, para que tudo possa acontecer impõe-se primeiro organizar a sociedade. Delimitar funções.

Então, nos dias que seguiram, enquanto o povo aguardavs na praça, transformou sua sala em oficina e aprofundou o trabalho:

Ouviu cada um dos anciãos. Dentre eles escolheu os sete mais idosos para administrar a Justiça.

Dentre os de mãos calejadas delegou-lhes a produção de tudo o necessário – do campo aos espaços urbanos, dos alimentos às construções – e a outros o controle desta produção, aos quais caberia fixar preços e rotas de comércio.

De um em um escutou e decidiu diante da capacidade. Alguns destinados à elaboração das leis; outros à defesa do país; outros à propagação da palavra de Deus para consolar os aflitos e perdoar-lhes os erros e pecados, sem elevar qualquer preconceito a quem pensasse diferente ou tivesse outras crenças.

Escasseavam-se os da praça. Restaram uns que formavam um punhado. Determinou que se achegassem. Perguntou-lhes o que haviam feito, o que apresentavam como referência.

– Senhor – disse-lhe o primeiro – estive preso por haver estuprado uma vizinha e amiga.

O segundo não discrepou:

– E eu, Senhor, por haver matado para roubar de um pobre velho o que guardava para cuidar dos filhos que cresciam.

Um terceiro pontuou categórico:

– De minha parte, Senhor, mentia e trapaceava, vendia o que não possuía...

Escutou-os com atenção redobrada. Disse-lhes então o enviado:

– Do que fizestes somente posso oferecer uma empreita posta em prática na terra de onde venho e que se tornou próspera. Considerai-vos doravante arrependidos e crentes, exemplos a serem seguidos, porque salvos pela vontade do Senhor Altíssimo. Proclamareis essa confissão em praça pública, estradas e rincões do país, e hão de fundar novas igrejas porque grande é o poder do arrependimento e convencerás e o demonstrarás aos que o pretendam. Nunca afirmem – muito menos insinuem aos pobres – que a pobreza é um fenômeno político, não natural, tampouco resultante da escassez adredemente elaborada para beneficiar uma parcela daquela que será classe dominante nesta terra. Afirmem, aos gritos – se necessário – que a pobreza é a falta de fé. Nada mais que isso!

– Senhor, e se houver recusa em conquistar fiéis?

 – Como por lá ocorre, digo-vos pela experiência, anunciarás – com força e determinação – o desprezo a todos os bens materiais dos que acreditam em Deus como caminho de melhoria de vida. Apelem para a fé de que quanto mais derem mais receberão. De que 90, 80, 70, 60, 50 com Deus é mais que 100, e assim por diante. Importante e imperativo que se desfaçam todos do pouco para que muito venham a ter conforme a fé se aprofunde.

– Senhor, e quando não conseguirem?

– Quando assim os buscarem digam – como dizem os de lá – que a fé ainda não foi suficiente, claudica. Mas que há de ser perseguida e, a qualquer instante, será premiado o esforço dispendido.

E prosseguiu, eufórico:

– Sereis tão fortes que, em pouco tempo, conseguireis controlar não só os fiéis, também os poderes, pois não tardarão a eleger número suficiente de dirigentes e, além de submeterem os governantes que não sejam de vossas hostes – que serão os naturais inimigos do povo de Deus e adeptos de Satanás que precisam ser enfrentados – mesmo controlarão a edição de leis em todos os níveis e estarão no lugar dos anciãos que se forem, julgando tudo que lhes chegue conforme seus próprios interesses e exclusivas convicções, inclusive conquistarão do Estado benesses várias, até em ouro. Alguns de vocês mentirão e levantarão inverdades – tudo em nome do que pregam – para mais e mais garantirem espaço. Afirmarão possuídos pelo Tinhoso os que não pensem conforme a pregação.

Concluído seu trabalho anunciou despedida para o dia seguinte.

Todos se dirigiram à praça e o reverenciaram. Curvou-se em agradecimento, solenemente levantou a mão para o adeus desejando felicidade.

Viram-no partir sereno como chegara.

Só não viram que, assim que o esfumaçamento e a distância não permitiam percebê-lo, ria... ria... ria... ria... e não tardou gargalhar profusamente, tamanha a euforia com a missão cumprida.


domingo, 14 de janeiro de 2024

Conto de fadas - Parte I

 

Havia um país muito distante. Todos felizes sob a condução de um Sultão muito bondoso ao qual tributavam respeito e recursos. País pequeno e de poucos habitantes – não chegavam a 50 mil – razão por que todas as decisões do reino proclamadas diretamente a eles na grande praça ladeada de jardins encantadores em frente ao palácio real.

Sentindo que a vida terrena chegava ao fim o vetusto soberano chamou o Grão-Vizir e passou-lhe as determinações de última vontade resumidas apenas na expressão: “Quando me for não permitam o surgimento de um novo rei”.

Impactado com aquela decisão, de logo indagou o fiel conselheiro, como o reino seria administrado: “Como outro Sultão somente seria entronizado depois do oitavo mês de minhas exéquias você cuidará deste povo. Antes que o prazo se conclua chegará de uma terra distante um ser trajando púrpura e sedas banhadas a ouro que será apresentado a todos e ditará o futuro do país. Até lá, como último ato de vontade, anulem-se todos os processos e esvaziem as cadeias de todos os tipos de criminosos para que possam ser reconhecidos iguais a todos os que ouvirão as ‘boas novas’. Editem em todas as praças estas minhas disposições”.

Duas semanas depois passou desta para a melhor o bondoso monarca. Ultrapassados os dias de luto e sepultamento iniciou-se a espera. Afinal ninguém podia prever dia, mês e hora. Apenas que tudo aconteceria no máximo de oito meses.

Enquanto aguardavam indagavam-se em torno do que viria. Intrigava-os que mesmo o primeiro ministro sabia tanto quanto eles.

Um dia ouviram-se as trombetas. Um homem solitário trajando púrpura e seda apareceu no horizonte e cresceu sob os olhares. O ministro regente recebeu-o e de imediato levou-o à escadaria do palácio de onde pudesse ser visto e em plenitude ouvida a sua mensagem.

“Saúdo este encantado povo de um país que será celeiro do mundo e pátria para a humanidade. Enviado o fui para organizar a sucessão do nosso estimado e generoso monarca dentro dos paradigmas que norteiam o bem-estar da sociedade de onde venho. Pediu-nos ele – que o Alto o tenha – quando nos visitou que – após a sua morte – trouxéssemos nossa experiência, que tanto o encantou, para tornar este povo o que ele sonhou e não conseguiu em vida. Conhecera nossos lares, nossas estradas e avanços tecnológicos. Impressionou-se com as homenagens proferidas por nossos representantes, com a pureza das ideias expressadas em palavras doces, e ouviu sobre as importantes reformas introduzidas nos últimos anos e que muito em breve dariam os frutos, porque – como diz um de nossos augustos lemas – temos que fazer o bolo crescer para partilhá-lo com o povo e, para tanto, todos hão de dar sua cota de sacrifício. Até porque é dando que se recebe. E ouviu deste humilde tradutor as razões por que tudo ocorria, pedindo-nos encarecidamente que tudo aqui fosse aplicado que se fosse.

Como de sua última e benevolente vontade, não mais uma só pessoa regerá os destinos desde povo. O próprio povo o fará.

O projeto para o país será efetivado em duas etapas; a primeira, constituindo o Estado Democrático de Direito e as instituições que o regerão, bem como a composição e forma de acesso a essas instituições; a segunda, as formas e meios de organização da sociedade civil.

O Estado Democrático de Direito – o Estado a que todos devem respeito à lei – será edificado sobre três pilares; um poder para administrar, outro para elaborar leis e aquele que dirá a última palavra sobre o cumprimento das leis

Para a sociedade civil; a imprensa – que será o quarto poder – instrumento da sociedade para fiscalizar os interesses de todos; a religião, para ensinar a temer a um ser superior e a respeitar o semelhante; o mercado, que controlará a produção e o consumo; e a educação, inclusive a científica, para consolidar as experiências e conhecimentos adquiridos que serão repassados e aperfeiçoados permanentemente.

Gostaria de conhecer todos vocês, um por um, mas como meu tempo é curto, a cada um que seja avaliado de antemão estará destinado a cumprir a honrosa missão.

Permitam-me descansar um pouco e, a partir de amanhã, o até aqui dito será melhor esmiuçado e cada um será ouvido e avaliado, quanto à capacidade e experiência, para assumir o destino predestinado.

domingo, 7 de janeiro de 2024

Caminhos existem

 

Integramos aquela parcela que amadureceu no curso da existência e perdeu o sonho de eras priscas (ou enlouqueceu!...). Nada a ver com aquele “O sonho acabou”. Apenas somos assim, dos que vivemos o entendimento das coisas a partir dos anos 50 do século passado, com dificuldade imensa de entender por que tanto progresso e avanço científicos convivem com o inverso absoluto da pretensão do Homem à Felicidade.

Reconheçamos que há contemporâneos que persistem em ‘entregar a Deus’ – com o valioso apoio da autoajuda – a solução para os problemas por nós criados e indefinidamente esperam por dias melhores e, no último instante, apelam para o inexorável ‘fim dos tempos’, ‘como Deus quiser!’ etc. etc. E mesmo custeiam os que prometem sanar ou reduzir o desalento elevando templos e quejandos tais mundo a fora para garantir vaga nas ‘naves da salvação’.

Mas, imagine o caro e paciente leitor o que significa a informação distante alcançada através de um rádio alimentado por ‘acumuladores’ (baterias usadas em veículos) – usamos a imagem do instrumento veicular para ‘contemporizar’ o entendimento – diante do contemporâneo (ainda!) celular!

Dispensemos outras experiências de tempos desconhecidos do presente, como brincar na rua, tomar banho de chuva etc. etc. etc. etc.

Consciente estamos, no entanto, de que vivemos instantes atropelando-se. E os avanços técnico-científicos sucedem-se como água rio abaixo.

Dentre tantas e tanto algo permanece como sempre, dispensado de alterações: riqueza acumulada. Em mãos de poucos, pouquíssimos, que não sabem o que dela fazer a não ser utiliza-la como ‘toque de Midas’. Com descendência híbrida, que não se reproduz a si mesma.

Aproveitamo-nos de Luiz Gonzaga Belluzzo (Carta Capital) citando Claudio Borio, diretor da área monetária do Banco de Compensações Internacionais (BIS)

“[...] Ao invés de financiar a aquisição de bens e serviços, o que eleva os gastos e o produto, (*) a expansão do crédito está simplesmente financiando a aquisição de ativos já existentes, sejam eles ‘reais’ (imóveis ou empresas) ou financeiros”.

Antecipara o articulista: “O capitalismo global reassumiu a sua forma mais avançada como economia monetária, cujos agentes detentores dos poderes de criação da riqueza social são tangidos pelo império da acumulação de riqueza sob a forma financeira”.

Em outras palavras, cruzamento de jumento com égua, que resulta em burro ou mula e se esgota aí como geração.

Para evitarmos transtornos aos nossos estimados leitores tal brincadeira envolve, segundo o próprio Belluzzo, cerca de “US$ 1,6 quatrilhões em ativos” (grande parte inteiramente estéril). 

Pasme o paciente e estimado leitor: 1,6 QUATRILHÕES EM DÓLARES AMERICANOS, ou próximo a míseros pouco mais de R$ 8.215 quatrilhões na cotação de 6 de janeiro/2024 na valorosa moeda tupiniquim, ou seja, cerca de mais de 80 PIBs anuais do Brasil, sob a estimativa de encerrar em R$ 10,5 trilhões neste findo 2023. Simplesmente 80 ANOS de riqueza produzida anualmente nos valores atuais!

Traduzindo no estilo da velha Tabuada que alimentou nossos primeiros anos de estudo: R$ 10.500.000.000.000.000,00.

Mas, alvíssaras – diríamos em outros tempos e eras – uma pesquisa científica singular (achamo-la tão significativa que não a recomendamos ao Ig Nobel) nos despertou para ‘sonhar’.

Matéria da BBC revela a descoberta do porquê do cocô boiar e afundar. O segredo está na quantidade de metano que resulte da metabolização intestinal em cada momento, o que leva o indigitado toloco a querer ‘submergir’ ou ‘emergir’. E como maior responsável, dentro do conjunto de espécies bacterianas causadoras do ‘mistério’ uma sobressaiu: a Bacteroides ovatus.

O que nos despertou a atenção para tão singular tema, muito mais vinculado à escatologia, com destaque valioso para estudo do Marquês de Sade, muito bem ilustrado por Pier Paolo Pasolini (1922-1975) em “Saló”, foi o fato de que tal descoberta abre caminho para utilização ‘racional’ do motivo do sobe e desce do indigitado, que exige, segundo o pesquisador Nagarajan Kanan, apenas “financiamento” para aprofundar as razões da “flutuação fecal”.

Supimpa!

Antes que o caro e paciente leitor comece a sentir necessidade de conferir explicamo-nos diante de tanto interesse em não sugerir a remessa da pesquisa ao Ig Nobel ou presumir que há mentes científicas carregadas da Bacteroides ovatus e familiares próximas: possibilidade concreta de geração de energia a partir daquilo que insistimos em lançar fora e, modernamente, utilizando a descarga para tanto.

E daí um salto: como podemos chegar à utilização energética utilizando o dito cujo por que não viabilizarmos pesquisa para a transformação da merda em algo mais imediatamente útil?

Com tanto dinheiro sobrando sem utilização racional, em meio a isso cá de nossa parte ficamos a refletir: para aliviar a fome e a miséria dos bilhões que ou nada têm, ou pouco têm ou ainda querem ter, por que não pegar também parte daqueles US$ 1,6 quatrilhões, do que sobra, e financiar pesquisa para transformar cocô em comida, escola, trabalho etc.?

Reconheçamos temerária, de certa forma, a solução aqui aventada, diante do risco concreto de o sistema (que hoje domina o universo financeiro) exercer o poder de que dispõe junto ao Estado contemporâneo, para editar leis para controlar o ‘fiofó’ alheio – tornado meio de produção – para recuperar o gasto com a pesquisa.

De certa forma algo adviria de imediato: financiamento em massa em comida para os povos famintos se integrarem ao processo produtivo.

E, para os que dizem que não há soluções para os seculares e aflitivos problemas desta que chamam de Civilização: caminhos existem; não cuida/custa percorrê-los.

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(*) Mas distribui riqueza... (intervenção nossa).