domingo, 25 de outubro de 2020

O suicida não teme a morte

Irving M. Copi (1917-2002), em Introdução à Lógica (tradução de Álvaro Cabral para a Editora Mestre Jou, 3ª edição, 1981), tratando de Premissas e Conclusões, aborda em torno do argumento, onde admissível ‘outro material’ para sua compreensão afora premissas, e se vale, para ilustração, de escrito de Schopenhauer (1788-1860) em Estudos de Pessimismo: “Se o código penal proíbe o suicídio, isso não constitui um argumento válido na Igreja; e, além disso, a proibição é ridícula; pois que penalidade poderá assustar um homem que não teme a própria morte?”

Não buscamos enveredar por aprofundar leituras, tampouco levar o caro e paciente leitor ao estudo da Lógica, mas nos amparamos na assertiva de que o suicida não teme a própria morte, razão por que qualquer ameaça de punição lhe cheira a nada ou  como diria Tormeza — nem fede nem cheira. Afinal, punição em tal jaez somente possível sob a égide do Décimo Primeiro Livro do Código de Manu, que a admite em outro plano espiritual ou em nível de retorno pelo viés reencarnatório.

Schopenhauer levantou em torno do quão ‘ridícula’ a vedação legal em relação ao suicídio. Óbvio que não está contido em sua observação que a disposição normativa tem caráter de repressão paralela em relação a quem o incentive e/ou para com ele contribua, o que inclui a discussão em torno da eutanásia, que em si é um desejo suicida cobrando assistência de alguém, no caso um profissional médico. Mas, considerando a verdade como vista por Aristóteles  a Verdade é por ser a afirmação de que é — irrefutável compreender o desperdício e a bizantinice em torno do fato em si como ato de vontade individual no espaço remoto de quem o cometa.

Vem-nos à avaliação a singularidade daqueles que usam uma bizarrice como argumento para alcançar a negação da razão e desvirtuar a compreensão lógica. Nessa tangente os que dizem defender a vida negando o que a defenda.

No âmbito da Saúde Pública cuidará o Estado de buscar os meios para evitar doenças, pesquisar a sua cura e disponibilizar de modo universal o acesso aos mecanismos de tratamento. Clássica referência ao que representa nessa universalidade a vacinação, como prevenção, tornada instrumento de singular importância para a sociedade contemporânea no combate às viroses.

No cenário mais recente nasce da mente do inquilino do Alvorada a conclusão de que a vacinação contra o Covid-19 não deve ser obrigatória; afirma-o como arauto de um dogma de fé. Ainda que tal tema esteja além da vontade individual — uma vez que o não vacinado é potencial transmissor da doença, porque afeta a coletividade em seu bem-estar, tornando-se uma emergência no plano da saúde pública e a redução do risco de circulação do vírus se torna imperativo — um dirigente vai contra a corrente científica para colocar o seu juízo(?) de valor acima do interesse da sociedade.

Na esteira do assunto aproveitou para dizer que não admitirá uma vacina originária da China. Até que volte atrás não há dúvida que o inquilino politiza e ideologiza a partir da saúde alheia.

Por essas e outras não há como negar que estamos diante de uma capacidade inovadora em temas nunca imaginados, razão por que afirmamos que o estágio da administração(?) do inquilino do Alvorada nunca chegará ao fundo do poço porque, em si, é um poço sem fundo.

As explicações(?) bizarras para justificar(?) o injustificável ultrapassam o conceito de nonsense deste (des)governo. Mas nunca falta algo ‘novo’ como alegar que boi contribui para combater queimadas etc. etc. etc.

Mas — imprescindível reconhecer — contido está que há coisas que não podem ser enfrentadas, porque o são como a Verdade. Assim, imaginar que o inquilino e seus acólitos se tornem passíveis de aconselhamentos, se tornem capazes de ouvir a razão é como dizer, em lei, que o suicídio é vedado. Afinal, quem não tem medo da morte nunca respeitará alertas para evita-la.

Muito menos alertas para preservar a vida. Preferível impor a cultura da morte lenta em contraponto à vida imediata. Não fora isso como explicar que seja questionada a vacinação enquanto são liberados centenas de agrotóxicos (inclusive produzidos na China), clássicos agentes cancerígenos, alguns proibidos além-mar?

Quem combate o combate à morte não deseja a vida. Nivelado está, potencialmente, a um suicida. Que pode se tornar um Jim Jones tupiniquim na Jonestown em que faz tornar esta terra brasilis.

E não carecemos do pessimismo schopenhaueriano para entender o que claro se afigura.

Mas, por outro lado, compreendemos os que o aplaudem e o que motiva os que o seguem: somente o sofrimento é positivo. Caso lessem alguma coisa diríamos que obras de Leopold von Sacher-Masoch (1836-1895) pela ótica que lhe foi atribuída por Richard von Krafft-Ebing (1840-1902).


domingo, 18 de outubro de 2020

Quando a interpretação leva o Direito à sepultura

Percebe-o o leitor deste escriba de província que o seu escrito não busca refletir o fato em essência, mas como visto por tantos que a ele têm acesso. No caso particular a visão especialmente da imprensa e de agentes públicos diante dele.

Não nos debruçaremos  para evitar perda de tempo  com o caso da inovação no transporte de dinheiro. Afinal, uma singular forma de aprofundamento por 'vias naturais' aos tempos e costumes vigentes, cuidando-se de evitar o cheiro exalado da contagem das notas.

Singular a lição desenrolada no curso desta semana que finda em torno de um habeas corpus concedido por um ministro do STF tendo por paciente um traficante.

Não cabe ao intérprete  o que obriga o aplicador  distinguir onde a lei não o faz. Quem nos diz não é o escriba, mas a consciência jurídica. Caso contrário para que a lei?

A história desta Civilização é o registro das conquistas alcançadas pela humanidade palmilhadas no correr dos séculos. No curso dos últimos cinco milênios instituições se materializaram e a fórmula de fazê-las conhecidas. A família não só sociologicamente se viu materializada como foram elaborados estatutos para defini-la e reconhece-la como instituição e os meios que a organização social  desaguada no Estado como poder de controle social  estabeleceu para sua proteção.

Instante houve em que a vida e a liberdade estiveram submetidos pura e simplesmente ao talante da força: o mais forte detinha o poder de matar ou segregar o indivíduo simplesmente por sê-lo. Na Era Moderna a vida e a liberdade alcançaram o reconhecimento institucional e, através de normas jurídicas, o Estado assegura o seu reconhecimento dentre os direitos universais como inerente à natureza do homem. Afinal, nasce o homem livre e legitima o Estado e suas instituições a assegurá-lo. Sendo a vida e a liberdade direitos naturais não há meio termo para reconhecê-los. Não estão eles submetidos aos ditames da lei humana, que rege os acordos e os contratos sociais. São aqueles direitos fundamentais, direitos em essência; fundam-se em princípios e não em regras.

Ainda que interesses em jogo levassem a Europa absolutista a negar reconhecimento aos povos que não estivessem sob o crivo da fé então professada tal circunstância (afastado o jogo dos interesses), não se sustenta à ideia da supremacia da vida e da liberdade como valores universais a serem reconhecidos e defendidos.   

Na Filosofia encontramos a premissa de que uma lei injusta não seria lei. Que dizer da interpretação?

Lei recente, de 2019, deu nova redação ao Art. 316, do Código de Processo Penal, que trata da revogação da prisão preventiva pela autoridade judicial, verbis:

Art. 316. O juiz poderá, de ofício ou a pedido das partes, revogar a prisão preventiva se, no correr da investigação ou do processo, verificar a falta de motivo para que ela subsista, bem como novamente decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem. (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)       

Por seu turno a mesma lei inseriu o Parágrafo Único, com a seguinte redação:

 

Parágrafo único. Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

De fácil compreensão que o parágrafo único buscou tão somente evitar que a prisão preventiva se torne (como vinha ocorrendo) em prisão definitiva ou para atender aos reclamos de magistrados e investigações policiais à cata de confissões/delações, quando diante da ausência de provas incriminadoras (o que também se tornou comum).

Atente-se para o fato da redação final do aludido parágrafo: “sob pena de tornar a prisão ilegal”, no caso de a cada 90 dias o juiz que a decretou não a renovar “mediante decisão fundamentada”, ainda que de ofício, ou seja, de sua iniciativa.

A celeuma causada não encontrará amparo em outro argumento que não seja o de negar validade a dispositivo legal. O que quer dizer: a lei existe, não a cumpro porque uma razão encontro para descumpri-la.

No caso concreto o magistrado que decretou a prisão simplesmente deixou de cumprir a lei e tal fato leva a que a prisão se torne ilegal.

Mas — aí o busílis em que se tornou o país — não se discute a eficácia do dispositivo legal, mas o fato isolado: um traficante etc. etc. etc. que foi beneficiado pela incúria do juiz que deixou de cumprir com seu dever funcional fixado em lei e deixou passar NOVENTA dias sem se manifestar pela prorrogação.

O ex-senador Roberto Requião, comentou em seu perfil: “[...] Uma lei que impede que uma prisão provisória se eternize sem processo, sem acusação, e se transforme em uma punição eterna, é justa e é boa. O MP não pediu a renovação, e o juiz cumpriu a lei".

Ainda que o ex-senador tenha se limitado a reconhecer na lei um avanço  e passamos ao largo do fato concreto, porque nos limitamos a compreender o que está dito (em lei) pelo legislador, nos vemos diante da balbúrdia em plenitude, de um ministro do STF conceder, o presidente desconsiderar e o plenário  ainda que criticando o presidente  negar o habeas corpus.

E a aí a baboseira mental, menos por consciência e mais por pressão midiática, leva a que esta pérola tenha sido levantada em nível de STF, no sentido de que a falta de revisão do decreto de prisão preventiva a cada 90 dias “não se qualifica como causa automática de sua revogação”. E mais embevecido o intérprete: “Para revogação da preventiva, o juiz deve fundamentar a decisão na insubsistência dos motivos que determinaram sua decretação. O juiz tem que dizer que os motivos não existem mais. A obrigação do juiz é motivar se revoga a preventiva, não é soltar imediatamente”...


Lindo e maravilhoso: a lei ao afirmar que o não cumprimento do ato de ofício do juiz torna a “prisão ilegal” não justificaria o deferimento de habeas corpus, remédio justamente voltado para amparar o paciente (acusado) diante de flagrante violação. Não cabendo analisar o fato, nem discutir a prova.

E para coroar a insanidade interpretativa cuidou o plenário do próprio STF de negar o habeas corpus fundado na gloriosa interpretação acima manifesta.

Simplesmente de que a violação à lei e a clareza redacional de que a prisão se torna ilegal não ensejam o reconhecimento por via de habeas corpus.

Claro que a gloriosa plateia que gargareja no palco da falência mental por que passa parcela significativa do Judiciário aplaudiu. E  como o fez o jornal O Globo em editorial – aproveitou a oportunidade para pedir que o Congresso viole a Constituição Federal  no capítulo das garantias fundamentais  e edite lei ordinária dizendo que a Carta Maior não vale e que a condenação em Segunda Instância se torne regra geral.

Naturalmente — se possível — explicitando que o ex-presidente Lula seja levado imediatamente à masmorra de Curitiba.

Estes os apedeutas que — à guisa de intérpretes — estão levando o Direito à sepultura. Porque para eles o Direito não o é por estar fixado na lei, mas no fato conforme o veja a mídia e as conveniências às quais servem.

Às calendas as conquistas da Civilização.

___________

Post scriptum: pondo nossa utilidade pública a serviço do estimado e paciente leitor recomendamos cautela aos que se utilizam dos dedos molhados na saliva para contar dinheiro em cédulas.

domingo, 11 de outubro de 2020

Lista tríplice, o voto e a burrice histórico-sociológica sob cortada

Há coisas nesta terra brasilis que convivem com o nonsense. No caso particular da eleição para Reitor de Universidades Públicas a existência de uma lista tríplice (que não é exclusiva das universidades) para que o chefe do Poder Executivo escolha — dentre os três mais votados — o reitor. Não deixa de ser contraditório o fato de o mais votado vir a ser preterido por apenas integrar uma lista submetida à vontade/escolha. Mas, esta é a regra. 

A utilização do respeito ao mais votado, no entanto, não significa o que traduz o sistema, mas vontade política de quem detém o poder de escolha.

O tema está sob julgamento do STF, por força de Ação Direta de Inconstitucionalidade impetrada pelo Partido Verde que entende a ‘lista’ violar o instituto constitucional da autonomia universitária, como veiculado no Sputinik.

O primeiro ministro a votar, Edson Fachin, proferiu voto no sentido de que o Presidente da República é obrigado a escolher o mais votado na lista tríplice.

Repitamos: obrigado a escolher o mais votado.

Como a coisa, no imediato, envolve o inquilino do Planalto, farto em diatribes, arauto do besteirol e quejandos, há quem esteja a cair de pau no dito cujo. Que, por sinal, desrespeitando a lista tríplice, tem nomeado aqueles que entende, inclusive quem nem integrou a lista, como observa o Brasil de Fato:


“[...] em pelo menos 14 oportunidades desde o início da gestão, o presidente decidiu pela nomeação de um reitor ou diretor de instituições federais de ensino que não encabeçava uma lista tríplice ou sequer constava entre os nomes indicados a partir das consultas internas, o que vem sendo denunciado como uma forma de intervenção para colocar nos cargos apoiadores ou professores ligados a aliados políticos, como seria o caso de Bulhões na UFRGS.

Em junho de 2019, Bolsonaro desconsiderou a lista tríplice para nomear os reitores da Universidade Federal Grande Dourados (UFGD), no Mato Grosso do Sul, da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) e da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).

Em Dourados, Mirlene Damázio foi nomeada como reitora pro tempore após o Ministério da Educação (MEC) considerar inválida a lista tríplice enviada pela instituição.

[...]

Fábio Josué Souza dos Santos, que era o terceiro nome da lista tríplice, foi nomeado reitor da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB). Janir Alves Soares, que foi o quarto colocado na consulta interna, foi empossado reitor da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), Minas Gerais.”

Voltando às vacas magras, há quem esteja a descer o pau no inquilino por não respeitar a cantada e decantada ‘lista tríplice’.

Mas, caro, estimado e paciente leitor, ninguém levanta o tapete para ver a origem de ‘listas’ levadas à escolha de chefes do poder executivo. Para muitos a ‘lista tríplice’ é um avanço. Mas...

O primeiro senão, de nossa parte, gira em torno da existência da lista tríplice, invenção dos políticos para que nem sempre a vontade acadêmico-corporativa democraticamente manifesta seja respeitada (e não trazemos aqui os critérios sofríveis que delimitam essa ‘democrática vontade acadêmica’).

À guisa do que isso representa ilustramos nosso expressar com um fato concreto ocorrido nos anos 80 na hoje Universidade Estadual de Santa Cruz-UESC, ainda FESPI: foi eleito Diretor-Geral (função correspondente a de reitor) o Professor José Orlando Rocha de Carvalho. No entanto o Governador Antônio Carlos Magalhães-ACM desconsiderou a ‘vontade da maioria acadêmica’ e nomeou o Professor Altamirando Marques Diretor-Geral.

Ou seja, como naqueles idos antecedentes à Nova Constituição, a nomeação em si — que deveria simplesmente ser a chancela do Poder Executivo, como gestor, ao decidido pela comunidade acadêmica — uma vez que não há o instituto jurídico da autonomeação (a própria universidade nomear) — já se constituía um ato político de gestão sob o tacão da ‘vontade’. Coisa que remonta à República Velha, quando o mais votado não era mantido e perdia a eleição para o segundo colocado que integrasse ou aderisse ao governo de plantão.

Sob esse viés — a origem dentro da cultura política como exercício de poder — este encanto de instituto nasce (e permanece) com vícios que não estão sendo enfrentados, apenas ajustados aos interesses deste ou daquele (do integrante da lista ou de quem nomeia).

Necessário, assim o entendemos, que a luta fosse para suprimir simplesmente a famigerada ‘lista tríplice’.

Para não perdermos o mote — já que estamos abordando 'lista tríplice' — circula na rede (247) a indignação de um mercenário religioso contra o inquilino do Alvorada por não haver este respeitado uma “lista tríplice” do conluio evangélico para indicar o novo ministro do STF.

De nossa parte, no que diz respeito a escolher da ‘lista tríplice’ quem não a encabece integra o ‘juízo de valor’, a ‘vontade política’, o “eu entendo melhor’ adstrito a quem nomeia, seja ele Presidente da República ou Governador de Estado. Porque o problema não está em João, José ou Joaquim; está na forma e na fórmula que vinculam João, José ou Joaquim a decidir, ofertando três para que, dentre eles escolha um. E escolha não é sinônimo de referendum, muito menos de imposição.

Obrigar a indicar o primeiro de uma lista onde três se acham presentes constitui típica intervenção — para não dizer imposição — contrariando o espírito (ainda que muito pretérito) que origina histórico-sociologicamente a delegação de escolha conforme a vontade do detentor do poder.

O voto de Fachin pode até ser o vencedor. Especialmente em tempo em que o STF se arvora de legislativo onde não é necessário, político-partidário escancaradamente e a magistratura  em todos os níveis  dispensa princípios e fundamentos jurídicos para fazer prevalecer o “eu acho”. Mas será uma decisão burra. Que reflete a ignorância diante da origem de certos institutos que orientam este país que a cada ‘novo’ mais esclerosado fica. Sem falar no desrespeito à legislação que a reconhece.

A lógica de acolher o primeiro da lista sempre foi respeitada por administrações petistas em nível federal. Mas, o antipetismo falando mais alto, tal uso era coisa de comunista, de esquerdopata, de bolivariano, de aparelhamento, etc. etc.

Ah! Para não perder o bonde da idiotice política: a Confederação Brasileira de Vôlei pretende punir a jogadora que, depois do jogo, criticou o inquilino do Alvorada. Mas esquece de uma dupla masculina que fez, em plena quadra, apologia e propaganda do inquilino. Coisa da linha “eu acho”.

No particular, gente que para chegar lá nem mesmo carece de integrar ‘lista tríplice’.

domingo, 4 de outubro de 2020

Em meio a jabuticabas, faz de conta, zangas e euforias

Roto fala de esfarrapado na casa do faz de conta que defende a Constituição. O que parece mensagem cifrada fica cristalina quando no centro dela colocamos Supremo Tribunal Federal. 

É que, caro leitor, o recém empossado presidente daquela Casa revelou contrariedade em relação ao colega Gilmar Mendes por andar/continuar fazendo das suas. Sentiu-se incomodado o ilustrado Luiz Fux porque Mendes exercitou seu lado político (mais uma vez) e influenciou na indicação do desembargador Kássio Nunes Marques para substituir Celso de Mello, conseguindo afastar um “terrivelmente evangélico” por enquanto.

A ar(rru)mação foi construída por nada mais nada menos Gilmar Mendes e Dias Toffoli. Deixando de fora o Fux — coitadinho! Talvez estivesse pensando em ver indicada a filha — prevaleceram, ao que demonstram os resultadaos, a intervenção do mercado e dos militares. Não pode ser descartada a articulação política — como sói ocorrer nas indicações — onde a ala centrada em torno do inquilino planta uma semente para agradar a muitos.

Diga-se, de passagem, que Mendes não está só na pretensão: também o centrão, a gloriosa classe advocatícia (o indicado é advogado que ocupa o TRF-1 por eleição pelo denominado Quinto Constitucional, ou seja, cargo em tribunal intermediário ou superior ocupado por advogado eleito em lista tríplice levada ao Presidente ou Governador conforme o caso), a turma contrária à postura da Lava Jato em sua versão de violação de direitos constitucionais etc. e, naturalmente o próprio inquilino, que soube muito bem aproveitar a oportunidade para fazer sua média.

O Fux sobrou; roto falando de esfarrapado. Com o passado não recomendado a leituras — o escândalo de reconhecer a Telesena como título de capitalização, enquanto ministro do STJ, que deu origem a uma representação junto ao STF (leia uma das notícias, através do GGN) — imaginava-se todo poderoso e, certamente, almejava ser o bajulado e incensado interlocutor, conselheiro e definidor da indicação.

O inquilino do Alvorada, para não perder oportunidade, criou nova jabuticaba e, antes que a vaga fosse aberta no STF indicou a “indicação” de Mendes.

Certo que o inquilino do Alvorada não bate prego em sabão e vai garantindo trânsito mais satisfatório junto ao Judiciário. E — correspondendo ao seu papel de pau mandado do mercado – acaba de conseguir, entre proezas futuras, a liberação pelo glorioso e patriótico Judiciário do direito de torrar as refinarias da Petrobras sem autorização do Congresso.

A esquerda em sede do PT gargareja como macaca de auditório em razão da decisão da juíza Hardt inocentando Lula das acusações de recebimento de propina em forma de palestras e determinou a liberação dos depósitos e investimentos do ex-presidente.

Em outras palavras: a Justiça confessa que errou. E em razão dessa confissão a euforia. Ainda que os males maiores não tenham se desfeito com a confissão, qual sejam: o lawfare para atingir objetivos indecorosos e — o mais grave — os danos irrecuperáveis causados ao país em decorrência do golpe promovido para afastar Lula da disputa.

Mas, ainda assim, esgoela-se onde o povo não escuta, com matéria da Veja (“Após cinco anos, Justiça reconhece legalidade de palestras de Lula”). Para Gleise Hoffmann “a justiça tarda mas não falha”.

A mesma justiça (com letra minúscula, revisor!) que não julga a suspeição de Moro, que libera venda de refinarias da Petrobras sem anuência do Congresso, que libera o Conama de Salles para perpetrar a dizimação de manguezais e restingas e mesmo declara — como o fez um destes TRTs da vida — que chamar um negro de "macaco" é injúria LEVE (247), como já fizera instância que afastou o crime de racismo daquela juíza que quantificou a pena de um acusado em “razão de sua raça” (negro).

A leitura da História continua por ser feita.

Essa turma nunca aprende. Nem com os fatos recentes. Mesmo tendo José Dirceu para ler e refletir.

 

[...]

“Se você olhar a História do Brasil, vai verificar que de tempo em tempo — conforme o nível de organização, politização e, principalmente, ocupação de espaços institucionais, no sentido eleitoral, de governo e parlamentar, como também de auto-organização das classes populares — sempre há uma interrupção do processo. Foi assim em 1964 e se repetiu em 2016. Em outros momentos houve tentativa de golpe, como em 1955, tentativa de impedir a posse de Juscelino. Em 1945, Getúlio foi deposto por um golpe da cúpula das Forças Armadas, elegeu Dutra, voltou nos braços do povo e foi ‘suicidado’ em 54’.

[...]

Ganhar quatro eleições em um país como o Brasil não é para amador. Nossa debilidade talvez tenha sido não ter o nível de organização e mobilização para se contrapor ao tipo de golpe que tem sido dado agora em vários países, que é a mobilização de classes médias, às vezes de classes populares, muito apoio da mídia, a partir de razões muitas delas reais, muita intervenção externa e uso do Parlamento e do Judiciário. Foi o caso de Honduras, Paraguai e depois Brasil. O golpe foi a saída que tiveram para abortar a volta do Lula em 2018, que seria natural.

[...]

Se nós não elevarmos o nível de organização e de consciência política em geral, vai ser muito difícil enfrentar nos próximos anos a direita, que já mostrou como age”.    

(Entrevista ao Brasil de Fato, em maio de 2018)

Cremos, salvo melhor juízo, que os conteúdos fáticos acima expostos — e suas implicações — não devem se satisfazer com remendos e migalhas enaltecidas com expressões de caráter moral-religioso tipo “a justiça tarda, mas não falha”.

Sob pena de ser apenas uma euforia em meio a zangas e jabuticabas nesta terra brasilis que se torna a terra do faz de conta...: que se faz justiça, que se administra, que se faz política para o futuro e suas gerações.

Porque de "consciência política" estamos a cada dia mais distantes.