domingo, 24 de abril de 2022

2022: acaba o ano no Brasil ou o ano acaba com o Brasil

 

São as instituições que se impõem respeito umas às outras. O controle do Estado, na lição de Montesquieu, não pode estar sob o cutelo de uma só delas sob pena de alimentar tiranias e ditaduras. A vontade da sociedade e seus anseios devem estar sob a égide da soberania popular.

Destarte, o Estado Democrático de Direito é a forma de regime em que a soberania popular é fundamental. A contemporaneidade marca-o sob o prisma da separação dos poderes estatais (Executivo, Legislativo e Judiciário) harmônicos e independentes, de forma que não se desarmonizem, tampouco comprometam a soberania popular.

Já afirmado que a Democracia não é o ideal, mas nada fora dela será melhor.

Sob a Democracia o Estado Democrático de Direito corresponderá a princípios fundamentais, quais sejam o respeito à constitucionalidade, ao sistema dos direitos fundamentais, à igualdade e à justiça social, à divisão de poderes (tripartite nos Estados modernos), do respeito às leis como garantia da ordem e da segurança jurídica visando a atuação estatal, e, como escopo maior, a superação das desigualdades sociais.

A sociedade se faz representar através da eleição de dirigentes e legisladores. Traduzem tais representantes o ideário político amparado nas ideologias que regem os partidos políticos que lhes dão guarida.

O funcionamento pleno das instituições democráticas cobra respeito às diferenças, à forma de pensar e de agir, desde que não violem a lei ou atentem contra os princípios que asseguram a existência do próprio Estado.

Decisões de governo  eleito para corresponder aos compromissos ideológicos que norteiam o grupo  hão de ser respeitadas em consonância com o princípio do respeito à Constituição e às leis.

Por outro lado, a insatisfação não recomenda outra medida além da busca pelos meios de que deve se valer a sociedade, dentre eles a pretensão a uma decisão judicial.

Em nada compatível com um Estado Democrático de Direito que a disputa político-ideologizada deste ou daquele poder em relação aos demais, uma vez que tudo se funda no respeito mútuo dentro das competências de cada um: executivo (administrar), legislativo (legislar) e judiciário (julgar as demandas que lhe cheguem). As decisões inerentes aos poderes executivo (administrar) e legislativo (elaborar leis) podem ser enfrentadas através de medidas judiciais, mas a decisões judiciais devem ser respeitadas assim que esgotados os meios recursais cabíveis e que tenham sido utilizados.

Tênue que seja, sob análise purista de seus resultados, não é admissível o enfrentamento ou a desobediência à decisão deste ou daquele poder, ainda que todos tenham em si o vício comum ao Estado como resultado da experiência humano-civilizatória, onde grupos hegemônicos estabeleceram as regras gerais e as impuseram sob a conformação de um estado jurídico e politicamente organizado.

No curso da semana convivemos com o inusitado de o chefe do Poder Executivo não se conformar com uma decisão judicial que em nada lhe dizia respeito (pessoal ou funcionalmente) e, em desafio declarado, alardeou a aplicação de graça ou indulto antes mesmo que a decisão questionada houvesse sido publicada.

A abordagem deste escriba de província não vem a termo em razão de mais uma de suas inconsequências (que não são poucas), mas daquilo que vê por trás de uma pretensão maior, qual seja tumultuar o funcionamento das instituições republicanas, que pode levar a uma ruptura diante do que lhe seja adverso o resultado das eleições presidenciais.

As agressões inconsequentes à luz da denominada ‘liturgia do cargo’  ao Poder Judiciário, personalizando-as em alguns de seus membros, aliadas às dúvidas que levanta quanto a lisura do processo eleitoral, alimenta um clima de insegurança institucional que deixa no cidadão comum profundas dúvidas em torno do que será este ano de 2022.

Fazendo um jogo dirigido ao público cativo, que espelha o que nele existe de mais negativo e sombrio, alimentando insubordinações em searas militares, armando a população, exaltando a anarquia e aplaudido por iniciativas que atendem aos interesses da classe dominante, temos que articula concretamente contra as instituições democráticas e porá o bloco na rua na primeira oportunidade que sentir necessária.

Registramos neste espaço (Há quem não esqueçae o que não pode ser esquecido):

No particular desta terra brasilis não será demais duvidar dos instrumentos que  em princípio  garantiriam o funcionamento das instituições”.

Para Zuenir Ventura “1968” foi “o ano que não terminou”. Para este escriba de província 2022 tornou-se um ano emblemático: não somente o ano que vai acabar no 31 de dezembro, mas o ano que pode acabar com o Brasil. Por quem sonha com o recomeço.


domingo, 17 de abril de 2022

Meu reino por uma moldura!

 

Não sabemos até que ponto a visão deste escriba de província resulta apenas de uma distorção da realidade que lhe chega e que lhe soa mais e mais pessimista. Tantas as décadas vividas, e tantas as experiências e experimentos históricos ultrapassados, parece-lhe estranho que nada tenha servido de lição, que nada de útil tenha contribuído para o aprimoramento humano em todos os níveis, espaços e dimensões. Muito particularmente neste país.

É que, se a Civilização reflete mazelas profundas, incapacidade de aprender e compreender as lições, nesta terra de São Saruê, em toda sua extensão (territorial, moral, ética, social, política etc.) permanece com outras roupagens  como aquele vale do Rio dos Peixes que inspirou Vladimir Carvalho a fixar na celulose a negação do que inspirara o cordelista Manoel Camilo dos Santos (Viagem ao País de São Saruê).

Por outro lado, nenhum Ojuara (personagem de “O Homem que Desafiou o Diabo”, de Moacyr Góes) para se rebelar contra a ordem instituída e cavalgar na luta por buscar montes de cuscuz, rios de leite, fontes de mel, além do que muito se vê nas promessas de plantão.

Certo que vamos convivendo com outras aprendizagens. Ainda que tenhamos de atentar para a fonte, a origem (da lição e dos fatos) porque aqui se concentra o que parece ser a maior ramificação de ‘redes de intriga’ não mais a serviço da ficção detetivesco-policial.

O que facilmente percebemos é o grau de descrédito que a cada novo dia mais agrava a imagem do país, interna e externamente. E no limiar de um processo eleitoral.

Cavalo morto e perdido o símbolo que o integraria ao conceito de comandante de uma batalha, o rei Ricardo III clama desesperado: “Um cavalo! Um Cavalo! Meu reino por um cavalo!”

Por essas bandas não mais a perda do país como referência, mas da péssima referência em que se torna. Programas de além-mar utilizam os fatos recentes para fazer do Brasil, mais uma vez, objeto de piada e de escárnio.

Na esteira estranhos outros gastos militares, não aqueles que já haviam desviado recursos orçamentários destinados em SUS para combate a Covid-19 em 2020 (Correio de Minas). Tampouco aqueles R$ 56 bi com filé, picanha e salmão enquanto o povo aprendia a roer osso no curso da pandemia (247).

Não se afirme que haja campanha para desmoralizar as ‘forças armadas’ (com letra minúscula, em homenagem aos fatos que as envolve recentemente), tampouco que não são verdadeiras as revelações, oriundas de instituições públicas.

Certo que o estamento institucional incumbido de preservar a soberania nacional não mais compra antigas armas e aparelhamentos bélicos para a presumida defesa da pátria, mas as novas armas que traduzem (não só o descaso com que somos nós outros tratados) o estado de vetusta em que se tornou em razão de tantos carentes de apoio para outras ‘guerras’.

Não sabemos se um novo retrato resolverá a curto prazo as décadas que perdemos em tão pouco tempo. A metáfora se ajusta: elabora-se um castelo de cartas com paciência e dedicação; desfazê-lo basta um descuido (imprevisto ou programado).

O instante cobra resultados imediatos.

Nosso retrato vem pintado há cinco séculos. Com as mesmas cores. Talvez uma moldura corresponda melhor ao que desejamos que repintá-lo.

Um novo retrato para o Brasil muito está a exigir; quem sabe uma moldura, sim, seja o possível!

Porque repintá-lo com alegorias a Pedro Américo e Victor Meirelles exigirá colocar na tela botox, lubrificantes íntimos, sildenafilas, próteses penianas de até 25 centímetros, as novas despesas militares nesta contemporaneidade.

Uma moldura que se destaque desviará a atenção. Não sabemos até quando!


domingo, 10 de abril de 2022

O futebol aperfeiçoando o retrato do Brasil

 

Nos idos de 1928 Paulo Prado publica “Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira”. Dentre os problemas apontados (alguns abordados sob ótica empírica criticável), os vícios da cobiça e da imitação, temas que se tornarão até recorrentes à época. No amalgamar de um movimento intelectual discutir o país impunha-se. Muitos o fizeram. Não cabe aqui outros detalhes, apenas remeter o leitor à literatura da época, pelo menos até “O Banquete”, de Mário de Andrade, passando por “O Brasil na América” e “O Brasil Nação”, de Manuel Bonfim, um mestre pioneiro no registro de elementos históricos para compreender o atraso brasileiro. Sobre este sergipano, capítulo singular na análise desta terra brasilis (pouco estudado), também descubra o leitor “O Rebelde Esquecido”, de Ronaldo Conde Aguiar.

Discutia-se a visão colonialista, a subserviência ao de fora. Ensaiava-se a ruptura.

Politicamente o primeiro passo ocorreria em 1930, quando outros caminhos abertos para a adoção pátria ao reconhecimento de si mesma, pretensão à industrialização, às reformas sociais, inserção no concerto das nações etc.

Um século passado e nos vemos ainda que experimentando avanços e percalços, sonhos e pesadelos  incapazes de nos compreender como país/nação.

Em que pese os ufanismos não alcançamos um estágio civilizatório que justifique o nome. Avançamos em modernidades, nos inserimos no progresso científico em muitas vertentes. Nos deixamos, no entanto, apropriar pelos vícios da imitação e da cobiça apontados por Paulo Prado no que há de pior e mais desastroso. E nada avançamos em relação ao comportamento da elite, chamada por Jessé Souza de agente “do atraso”.

A subserviência colonialista, em ciclos, ocupa mais e mais o torrão pátrio, exaure suas riquezas, concentra em favor das classes dominantes (locais e alienígenas) o trabalho nosso de cada dia, transferindo o suor e o sangue para as fontes em suas formas diversas do neoliberalismo financeiro.

Submetido ao tacão teórico do sistema dominante há quem veja nos postulados da Ciência Econômica, em sua vertente isolada  a Economia  como aquela voltada para administrar a escassez. Bem melhor seria que administrasse a distribuição da riqueza para não tornar nossa gente em personagem mendicante enquanto a concentração daquela avulta nas mãos de um punhado da insignificância aritmética da população.

E vão se apropriando de tudo.

E como se tudo que se nos acomete não bastasse estamos assistindo àquilo inimaginável: o futebol ocupado. Apropriado pelo capital financeiro e por típicas milícias travestidas de ‘torcidas organizadas’.

Alguns brutamontes  “chefes” das ditas cujas  dizendo-se insatisfeitos com resultados obtidos em campo por seus clubes passam a ameaçar jogadores, técnicos e até mesmo parentes. A palavra “terror” passa a ser utilizada como lema. Agressões em diferentes formas (de atentados a ameaças) vão ocupando os noticiários.

Em meio ao que nos parece absurdo há quem as aceite e delas se beneficie, inclusive politicamente (em nível interno-clubístico ou eleitoral).

O futebol, que nasceu da elite, abriu-se (mesmo a contragosto) às camadas menos, ou nada, abastadas da sociedade. Histórico o instante de uma ruptura ocorrida no Vasco da Gama, nos anos 20 do Século passado, quando aceitou em plenitude negros em sua equipe. Um escândalo. Escândalo que fez o futebol brasileiro se tornar referência no mundo, em especial a partir de 1958, onde se destacou um dos negros daquela equipe, chamado Pelé (em que pese, por muito que diz, faz e declara, mais próximo do pensamento de Paulo Prado).

Mas, descobre-se, de um instante para outro, que a ‘organização’ que passa a comandar o futebol mais voltada está não para o aperfeiçoamento das disputas e alegrias nos estádios, através de sadia competição, mas para expressar o quão primitivo ainda há em nós. Uma cara conhecida; de um velho retrato na parede.

E assim, vivencia disputas menos esportivas e mais mercantis e de poder. Inclusive, como natural ao presente instante histórico, com a idiotice e a estupidez ocupando espaços antes não imaginados.

Certo que, dos confins desta província vamos descobrindo que o futebol vai contribuindo para aperfeiçoar o retrato do Brasil, visto sob prismas levantados por Paulo Prado (cobiça e ganância) e Manuel Bonfim (atraso). Mais um ingrediente no cadinho da tristeza só nossa.

Há quem alcance estesia eufórica e proclame salivando: estamos crescendo.

Coisa assim, na ironia de Tormeza: como rabo de cavalo (para baixo). 

 

domingo, 3 de abril de 2022

Não um dia qualquer

Nos idos da infância provinciana o 1º de abril era dia de aproveitar da boa vontade de servir de muitos (geralmente os pobres e carentes, os servis) para deles um grupo se utilizar pedindo favores e fazê-los transmitir recados escritos. No destino, aberto o recado, a mensagem de que enviasse o ‘idiota’ mais adiante porque era 1º de abril. E assim, o indigitado corria rua por rua, de um extremo a outro da cidade, até que alguém, penalizado, lhe dissesse que aquilo não passava de brincadeira. Então, humilhado, lá ia o estafeta curtir a humilhação em algum lugar onde ninguém o visse.

Sim, caro leitor, a mentira tinha seu dia: 1º de abril. Um dia por ano.

Não a imaginemos como fenômeno recente. Mentira sempre existiu. Mentir faz parte da natureza humana. Uns mentem por vício; outros, por doença. Sobre a mentira Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) filosofou classificando-a sob duas espécies: a jactância (exagerar a verdade) e a ironia (diminuí-la). Lá, no Dicionário de Filosofia, de Nicola Abbagnano, Martins Fontes, 2007 (p. 764), também a referência da mentira dentro dos modernos antinomínia e paradoxos para traduzir ‘mentiroso’ (o que é): “afirmação de que se está mentindo; assim, quando se diz a verdade, mente-se, e quando se mente diz-se a verdade”. Não só o caro e paciente leitor entenderá a conclusão impossível. Também inúmeros deles, os filósofos.

Mas, em nosso meio e contemporaneidade a ‘conclusão’ vai se tornando válida e verossímel.  

Mas a mentira não ocupava tanto espaço como hoje. Tinha apenas o seu dia: 1º de abril. Um dia por ano. Não um dia qualquer. Hoje são todos os dias do ano. E vemo-la universal. Um dia que se impôs e se fez referência.

Descobre-se que o Catar tornou-se referência futebolística, tanto que sediará uma Copa do Mundo.

Comemora-se golpe contra governantes democraticamente eleitos como se revolução o fora e implantação de uma ditadura como avanço democrático.

Em homenagem ao dia a verdade que nele se encerra, sob égide da contradição filosófica: este é o país que sonhei!

Mas, insistem para que aprendamos a ver como mentira:

Que militares pagaram por seus crimes contra a humanidade na Argentina, no Chile e no Uruguai.

Que as centenas de crianças raptadas/retiradas dos assassinados pela ditadura argentina são uma criação das Avós da Praça de Mayo.

Que as mortes de Anísio Teixeira, Rubens Paiva, Stuart Angel dentre centenas são mentira.

Que a morte de políticos (inclusive brasileiros) sob a égide da Operação Condor não passam de invenção de derrotados.

Que o expurgo de Paulo Freire, Miguel Arraes, Celso Furtado e tantos outros não passou de uma viagem de férias.

Que as revelações de “Batismo de Sangue”, de Frei Beto, são apenas ficção.

Que mentem as mulheres que se disseram torturadas e estupradas nos porões da ditadura, inclusive aquelas que acusam os torturadores de ameaçar congelar seus bebês diante delas.

À luz de tanta verdade travestida de mentira, ou vice-versa, podemos afirmar que não é verdade que a meca de alguns pastores evangélicos não é o “ouro” do MEC.

Também não se definiu, se verdade ou mentira, que o inquilino do Alvorada e a valorosa turma fardada do ‘meu pirão’ não pretendem dar um golpe e que não mais teremos eleições em 2022 e um novo “Estado Novo” surgirá.

Não se lhes cobre (daqueles maus militares brasileiros) do que não estão sujeitos: cumprir as regras do Estado de Direito e respeitar as instituições democráticas. Em outros países (de governantes e populações rudes, ignorantes, analfabetos) cumpriram pena por seus crimes. Mas, não passavam de paisecos tipo Argentina, Uruguai e Chile.

Por aqui, se cometeram algum crime contra a Humanidade, foram absolvidos pelo STF (que eles querem fechar) que entendeu os crimes de tortura, ocultação de cadáveres ou torna-los cinza em crematórios clandestinos como típicos ‘crimes conexos’ alcançados pela anistia, ampla, geral e irrestrita.

Não, caro e paciente leitor, aquele primeiro dia de abril não somente é dia de golpe. Não é dia qualquer. É dia a dia de todos nós, furibundos viventes desta singular terra brasilis sem a quem apelar, acreditando que tudo dará certo, que o futuro nos pertence.

Afinal, a terra que conclui não ser impossível o que a Filosofia o diz.

Que acredita na verdade de que vivemos num país de instituições sólidas, com a democracia consolidada, com justiça social e distribuição de renda, com parcela de militares que não se imiscui na Ciência, na Pesquisa, respeita a Constituição e que não se reúne em suas sedes para discutir a possibilidade de golpe e implantação de uma nova ditadura militar para avançarmos na revolução democrática que só eles enxergam.