domingo, 30 de maio de 2021

O Richelieu de cada um

 

Armand-Jean du Plesis, tornado Cardeal de Richelieu (1885-1642) é sinônimo de poder sob o manto do assessoramento, do aconselhamento. Ou seja, aquele que efetivamente manda no período em que exerce função no aparelho de Estado.

De 1624, quando nomeado ‘primeiro ministro’ da corte onde fora Secretário de Estado desde 1616, tramou a assunção do Luís XIII e dada a indiferença com que o monarca olhava o poder o Cardeal tornou-se senhor absoluto da França.

Unificou o país e, para tanto, quando convinha, unia-se a protestantes e enfrentava a nobreza. Fortaleceu as fronteiras do Estado nacional francês.

Reconhece-se nele o pensamento que atua de forma concreta na conformação do Absolutismo. Legítimo arquiteto do Ancien Regime e inegavelmente um dos grandes líderes franceses que levaram o país ao domínio que exerceu na Europa.

Tamanha a sua influência que mesmo depois de morto manteve vivo e atuante o seu pensamento através do Cardeal Mazarino (1602-1661), de quem foi mentor, durante o reinado de Luís XIV.

Tido como bajulador de nobres passou a hostilizá-los quando se tornaram entrave à política absolutista que desenvolvia.

Compilou suas ideias sobre política externa em livro (“Testamento Político”) que teria sido obra de cabeceira de Luís XIV e Napoleão Bonaparte. Há quem o tenha ao nível de Nicolau Maquiavel no campo dos escritos e pensamento político.

Por que este escriba de província se debruça sobre uma liderança inconteste do Absolutismo em tempos tão diversos?

Por um detalhe: na reunião da CPI (da pandemia) que apreciou e votou requerimentos na terça-feira houve pedido em defesa da ouvida do Pastor Silas Malafaia... sob o argumento de que a distinta figura era o conselheiro por excelência do inquilino do Alvorada.

Dos grotões desta província só nos cabe dizer — não precisa explicar —  que cada um tem seu Cardeal de Richelieu.

domingo, 23 de maio de 2021

Falando em pactos

 

Afastados os senões que temos levantado em torno do que representa o atual andamento do processo eleitoral em relação ao tanto de tragédia até agora consumada há sinais evidentes de que a debandada em torno do inquilino do Alvorada tomou corpo de forma inexorável. Caso não materialize suas ameaças de golpe ou alguma tragédia física ocorra em relação ao ex-presidente Lula o instante afirma-o futuro presidente da República.

As águas turbulentas não recomendam tranquilidade ao inquilino na travessia para a reeleição. O apoio complementar ao seu universo ‘delirante’ (ver), mesmo que não míngue mais, não será suficiente para barrar o avanço das forças que se unem em torno de sua naufragada. Tomando os dados expressos através do Vox Populi (disponilizados no 247) percentual ‘espontâneo’ que vota no inquilino (19%) e aquele outro de 28% que votaria nele no segundo turno temos os limites mínimo máximo de efetivo eleitorado que “mata e morre” por ele neste instante. No primeiro aspecto (a pequena parcela que mata) fato concreto; no segundo (a parcela que morre) há controvérsias.

Contra a sua pretensão de continuar à frente de tragédias (econômica, saúde, aniquilação do patrimônio público etc.) a presença de Lula no palco sucessório abala pilares que o sustentaram, o que inclui até mesmo a mídia digital (“popularidade digital”), onde seus grupos fizeram o ‘discurso’ eleitoral e permaneciam em estado de ‘louvação’ ao mito. Por outro lado, tendem a esvaziar-se as ameaças e chantagens do inquilino pondo à frente da tropa os militares em nível de unidade. Tal fato nunca fora demonstrado, muito menos agora. A não ser os que formam o ‘partido da boquinha’ como a eles se referiu Florestan Fernandes em razão da quantidade de cargos que ocupam no Governo Federal. Por outro lado, as cúpulas devem perceber os riscos à imagem, caso se aprofunde o observado em pesquisa publicada no 247.

Os interesses em jogo que o levaram ao Alvorada perceberam o risco (desnecessário) em mantê-lo. Sua utilidade se efetivou no quesito entrega do país e satisfaz o conseguido pelo mercado até aqui. Não podem aventurar a postura belicosa do inquilino a colocar no olho do furacão a partir de uma hecatombe social o que a banca conseguiu até agora.

Então a saída se impõe: vencer suas diatribes sem pôr na berlinda os interesses obtidos. Para tanto como sói ocorrer em tais instantes um pacto social por via eleitoral, que possa garantir o afastamento do inquilino sem melindrar o conquistado. Para tanto uma ação concreta: consenso. Para quem está fora, o desejo de entrar. Mas sob articulações que não avancem sobre os resultados alcançados.

Neste instante, grandeza e desprendimento são a tônica. Depois da tempestade em muito causada por exacerbações individualistas postas acima do interesse coletivo, ainda que não se exija de quem quer que seja renunciar às suas convicções, o encontro de FHC e Lula sinaliza uma retomada da ação política justamente por colocar na mesma mesa de conversa peças emblemáticas no que diz respeito a projetos de governo que cada um defende em relação às políticas de Estado. Demonstram, ambos — ainda que alguma carta do tucano não esteja à mostra  que não há diferenças inegociáveis, que não há divergência que não possa transitar para uma confluência programável.

De elementar — por aquilo que significa FHC para a corrente neoliberal — um sinal evidente de que o mercado nada tem a temer de Lula; para o centro-esquerda a nova chance de recomeçar dentro do dar os dedos para não perder anéis.

Política debate conflito de interesses em busca de um consenso. A ausência deste debate no campo político, das ideias em conflito em momentos recentes não podemos dizer que as coisas acontecidas recentemente são fruto de atuação política — exige a renúncia de parte a parte para construir um ponto comum, farol a demonstrar o que leva o homem civilizado à construção do Estado que deseja. Dos últimos grandes exemplos a transição na África do Sul com Mandela e o Pacto de Moncloa que edificou a transição da ditadura franquista para a democracia, aceitando-a sob a égide de uma monarquia constitucional onde o rei foi a solução para atender aos adeptos de Franco, aonde o irônico é que a monarquia espanhola (então extinta) ‘ressurge’ sob o crivo de uma canetada do ditador: a ‘nomeação’ do rei por ele indicado em 1969.

Os pactos assinados em Moncloa visavam sustar a profunda crise econômica em andamento e estabelecer um programa de ação política e social.

Neste Brasil de hoje há sinais de que uma parcela considerável de apoiadores do inquilino chegou a uma conclusão: sua permanência será a hecatombe para todos. Neste sentido até o comando de doutrinas evangélicas “quero mais” como bênção do Altíssimo — ainda não se manifestou o pentecostalismo católico — percebem que não há milagre nem exorcismo que as alimente ($$$$) e faça-as sobreviver sem os meios de que se valem: dinheiro em poder dos fiéis.

O dízimo nos tempos áureos da distribuição de renda, ganhos reais para o salário mínimo e o quase pleno emprego fartou-as. Minguou com o desastre atual de uma economia que não gera nem trabalho, quanto mais riqueza a ser distribuída.

Para este escriba de província eis o lado oculto do pacto em andamento: interesses de igrejas (que) carecem da retomada de ações político-sociais. Que levem mais recursos ao bolso do povo. Não estarão na mesa de negociações diretamente, mas influenciarão, com certeza.

No mais, ficamos a matutar desta singular capacidade de por aqui inovarmos em tudo: inclusive em pactuação política. Na Espanha Moncloa se fez à sombra de uma monarquia extinta cujo rei foi ‘nomeado’ pelo ditador; aqui, até com o pentecostalismo ‘quero mais’.


domingo, 16 de maio de 2021

De perfunctórios e de fato

 Inquirem os instantes perfunctórios (não é palavrão!) deste escriba de província, sibilando o olhar sobre colunas de ontem e de hoje, as razões por que muitos não enfrentam a persecução em torno dos reais motivos que levaram o Brasil ao atual estágio de mediocridade, subserviência e colonialidade.

Em especial depois de escancarada a porteira da desmoralização dos ‘donos’ e ‘construtores’ da verdade lavajatense, aquela que enaltece o “eu acho”, justamente porque dito ‘achar’ em muito se amparava na certeza de que sempre haveria uma fraude por trás da criminosa atuação funcional ao arrepio da lei nos casos em que o interesse político ocupava o jurídico.

Eis o que nos deixa cabreiro: parece-nos que efetivamente são perfunctórios os interesses dos que discutem a realidade desta terra brasilis a ponto de limitar-se ao imediatismo das superficialidades. E cômodo – assim nos parece – focar o fato em si em sua dimensão de irrelevância, em sua dimensão imediata, que discuti-lo.

Sob tal jaez alcançar o poder mais interessa que aprofundar razões e motivos por que tanta coisa aconteceu. Ou seja, o poder em si ainda que o “fato” esteja mais entronizado no controle do que lhe interessa.

Claro – sabe-o o caro e paciente leitor – que através da lavra deste escriba de província tem sido levantada a questão basilar de tanto acontecer sem que motivo plausível justifique tanto absurdo. E tal caminhar aponta sempre para o horizonte externo reproduzido nas telas internas como se de nossa lavra o fosse.

Até quem provoca o tema evita enfrentá-lo (aqui). Exceções há! (aqui)

Mas, sabemos e já o dissemos: o jogo é bruto. E não custa avaliar que sempre é possível algum temor guardado no fundo baú que pode ser a caixa de Pandora sobre cada um.

Sob o crivo de nossa observação o que se tornou fato: eleições. Que vai concentrando atenções, atraindo para si o olhar superficial e lançando ao largo das discussões o “fato”.

E a semana nos trouxe CPI para tornar público o que já sabemos a mancheia. E mais uma pesquisa elevando o ex-presidente Lula a estribo mais alto no palco sucessório, onde venceria com folga o inquilino do Alvorada no segundo turno e mesmo viabilizada a possibilidade de fazê-lo ainda no primeiro.

Euforia! Certezas!

Na verdade, a certeza de Lula disputar eleições faz precipitar, em nível eleitoral, os tropeços do inquilino do Alvorada, muitas vezes maiores que comer picanha de 1,8 mil reais quando o desemprego aumenta, o custo de vida mais que dobrou, a fome retorna, os pedintes voltam a ocupar as ruas e o número de mortes por Covid-19 caminha a passos não tão de cágado para ingressar nos quinhentos mil. E, como auxílio, a ameaça de Edir Macedo “quero mais” romper com o ‘mito’.

Os sinais de que pode ficar à própria sorte (com aqueles 20% a 25% que o têm como o encanto maior deste planeta) vão se solidificando. Parcela de quem o elegeu sente-se desamparada, até traída em alguns casos.

Por seu turno, a denominada direita, o âmago do conservadorismo nacional encastelado na classe dominante, às vésperas do processo eleitoral nada como “bosta n’água”, sábia expressão cabocla para dizer que a coisa não vai a lugar nenhum por vontade própria.

Para demonstrar como as coisas andam mesmo FHC(apareceu!) fala em votar em Lula como saída para enfrentamento ao inquilino.

Mas, eis, para este escriba de província, o busílis: FHC votando em Lula. Ele, pensador/servidor mor do mercado, arauto do neoliberalismo predador, custeado pela Fundação Ford desde que adjutorou aquela teoria da dependência, paternidade maior da entrega do patrimônio nacional, que não fala o que o ‘patrão’ não queira, sinalizando acompanhar petralhas e comunistas de plantão.

Isto o que muito preocupa este escriba: vencer eleição sem vitória para o povo. Naturalmente as políticas de governo petistas traduzem melhor as políticas de Estado. E não faltam a Lula capacidade e inteligência (como o fez no tempo em que governou) para entregar os dedos (agradar o mercado) para não perder os anéis (reduzir desigualdades, aplacar a fome, oferecer emprego etc.).

Mas, alguma certeza de reversão da criminosa entrega do patrimônio do povo? Particularmente não cremos que tal ocorra.

Quando FHC, oráculo do entreguismo, fala em votar em Lula alguma coisa sabe.

Concluamos explicando a quem diga que 2023 não será 2003, que a geopolítica econômica  mundial é diversa etc. etc. etc. Não trilhamos por tal raciocínio como prévia de avaliação do próximo governo.

Cremos que o próximo presidente nunca encontraria estado melhor para mostrar o que fazer, mesmo pouco. Afinal, depois da política de terra arrasada do atual inquilino do Alvorada tudo que seja pouco será de sobra.

O que deve preocupar mesmo são os perfunctórios escondendo o ‘fato’. Ainda que imprescindíveis neste instante.


domingo, 9 de maio de 2021

De Boétie e a servidão consentida ao aplauso à criminalização da pobreza e da miséria

 

O pensamento e a ciência política moderna, o Estado e o governo, encontram em Maquiavel (1469-1527) seu reconhecimento em razão de sua análise diante do que representavam, do que realmente eram, e não do ‘como’ deveriam ser.

No limiar da Era Moderna então abriam-se as portas para discutir uma atuação estatal dentro de limites de legitimidade, trânsito para as teorias monárquico-absolutistas de Thomas Hobbes (1588-1679) e seu Leviatã (concentrando o poder), a Jacques Bossuet (1627-1704) teorizando ser a vontade divina a fonte do poder do monarca até que o advento do Século das Luzes ilumina o repensar em torno deste Estado sob o condão de valores como a razão para a fonte da autoridade e da legitimidade e a liberdade, o progresso científico, a tolerância, a igualdade, a fraternidade e uma ordem constitucional (decorrente de um ordenamento discutido por representantes do povo) que assegurasse a efetiva participação dos representados nas decisões (sem falar no calcanhar-de-Aquiles do Absolutismo, ferido de morte pelas novas ideias: a relação Igreja-Estado).

No alvorecer desta época Étienne de La Boétie (1530-1563) cunha de tirania a governança, a partir de um questionamento vinculado à legitimidade, uma vez que não discutia em torno de serem as formas de República “melhores que a monarquia” mas se “as diversas formas de governar a coisa pública... num governo no qual tudo depende de um só” (p. 32) seriam o melhor caminho.

Daí, questiona ele:

“[...] gostaria de entender como tantos homens, tantos burgos, tantas cidades e tantas nações suportam às vezes um tirano só, que não tem mais poder que o que lhe dão[...]”. (p. 32).

Adiante avalia circunstância da eleição do dirigente relacionando-o às outras formas de ascensão ao poder (como a guerra ou a hereditariedade):

“Parece-me que aquele a quem o povo entregou o Estado deveria ser mais suportável, e o seria, como creio. Mas, logo que se vê elevado acima dos outros, encantado com esse não sei quê que chamam grandeza, decide não sair mais. Considera quase sempre o poder que o povo lhe conferiu como devendo ser transferido aos seus filhos. E, desde que adotaram essa ideia, é surpreendente ver como superam os outros tiranos em todos os tipos de vícios, e mesmo em crueldade”. (p. 42).

Ainda dele extraímos:

“É incrível ver como o povo, quando é submetido, cai de repente num sono tão profundo de sua liberdade, que não consegue despertar para reconquistá-la. Serve tão bem e de tão bom grado que se diria, ao vê-lo, que não só perdeu a liberdade, mas ganhou a servidão”. (p. 44).

Dirá o precioso e estimado leitor aonde pretende chegar este escriba de província em plena terceira década do século XXI trazendo a lume análise vinculada historicamente ao século XVI.

Paciente leitor, os que compreendemos a existência da patologia social em suas diversas vertentes, dentre elas o transtorno delirante, cremos que Boétie transita ao seu tempo em torno dele, vinculando todas as mazelas ao tirano/governante.

Por estas bandas diverso o instante e o rótulo do perfume, mas não a essência.

Temos que cinco séculos não fizeram qualquer contribuição à construção do Estado brasileiro. Em nada aperfeiçoado à luz dos ditames elaborados no curso do Iluminismo. De tudo utilizamos os rótulos: do Estado, do exercício do Poder (tripartido para os Pensadores de então), da representação popular em níveis de executivo e legislativo.

Não construímos um conceito de nação. Tão somente do Estado patrimonialista que serve à classe dominante em suas várias esferas e do povo apenas se serve, em plenitude este daquele a que se refere Boétie para justificar o tirano na contraposição.

Da Antiguidade à Contemporaneidade o Poder exercido em suas diferentes vertentes no curso da História avançou apenas na conformação administrativa criando funções e instituições para asseguramento do Estado Nacional organizado.

Sob este aspecto fomos buscar em Boétie o retrato do que vivemos. E o fazemos – para não nos alongarmos mais – diante de mais uma tragédia, ora vivenciada por uma destas favelas desta vida de meu Deus!

É que o Estado brasileiro faliu no exercício de uma de suas competências institucionais primárias: do clássico combate ao crime, desde que – há muito – deixou de investigar e articular prisões e levar a julgamento os infratores da lei. Substituiu-o pela cômoda situação de eliminar por eliminar, de fazer a estatística substituir a cruel realidade. Para essa gente não importa se algum inocente morreu, porque em seus ‘relatórios’ todos que sucumbem às suas balas resistiram à prisão ou receberam as forças de segurança(?) à bala.

Não lhes falta apoio: desde a mídia que se vale de sangue para vender mercadorias aos que sonham retornar ao velho faroeste roliudiano.

Não vê o homem comum, vítima por excelência de tamanha brutalidade, que sempre morrem os eleitos para tanto: moradores das periferias, negros em sua maioria. Sob o nominado ‘combate às drogas’ as chacinas se avultam. Ainda que desconheçamos ações policiais ou a mínima atuação repressora em aviões presidenciais ou helicópteros de políticos transportando drogas ou em bairros nobres das grandes cidades onde se efetivam sua distribuição.

Em meio ao processo de destruição das instituições democráticas, onde o Estado Absolutista regido sob o codinome ‘democracia’ assegura o controle do poder a quem detenha a força, caminhamos céleres para unirmo-nos sob dois extremos: o policial-militar miliciano e a sociedade servo-consentida.

Nada à toa. Há quem sonhe tornar-se o personagem perfeito de Thomas Hobbes (1588-1679) amparado na teoria absolutista de Jacques Bossuet (1627-1704). Pouco importando que Boétie se faça vivo cinco séculos depois.

Afinal, uma linha tênue separa o pensamento de Boétie da contemporaneidade tupiniquim. Apenas não tinha como saber o francês que outros seriam os meios de convencimento, tampouco que de outros instrumentos se valeriam os tiranos contemporâneos. Não apenas os tipos de Gutemberg dão-lhes coliseus, altares, fantasias etc.

Também outras as formas de servidão. Dentre elas a que aplaude a criminalização da pobreza e da miséria.

Não repitamos aqui o dito por Karl Marx no “18 de Brumário de Luís Bonaparte”. (Reler). Permaneçamos com Étienne de La Boétie, no século XVI que se faz XXI:

“Hoje não são melhores os que, antes de cometer seus crimes mais graves, sempre os fazem preceder por alguns belos discursos sobre o bem público e o interesse geral”. (p. 58)

______

Valemo-nos neste dominical de “Discurso da Servidão Voluntária”, de Étienne de La Boétie, na Edição bilíngue da Martin Claret, traduzida por Casemiro  Linarth, reimpressão de 2017).

domingo, 2 de maio de 2021

Quando acontece não custa reler

Estamos vivendo tamanho desencontro no plano da solidariedade humana, cada vez mais afastados da discussão civilizada, da salutar troca de ideias e raciocínios que não duvidamos de mais nada neste país. 

Lamentável que tenhamos desenvolvido (não que o devêssemos) uma cultura não do ódio a determinado fato, mas do odiar como meta humana. Dizer que tal conduta é incompatível com o mais remoto conceito de civilização de logo levará a que sejamos julgado/tachado de comunista, petralha e adjetivos que engordam o vocabulário desta parcela de ‘modernidade de pensamento’.

A especulação financeira — prática híbrida de capitalismo, nada gera ou distribui da riqueza produzida socialmente, incompatível com o mais elementar conceito do liberalismo clássico, que a tornava meio de acumulação pelo reinvestimento na produção — tornou-se em sua versão neoliberal ampliada na vertente da ‘gloriosa’ globalização, na bíblia dos idiot  savant que integram parte da contemporânea intelectualidade, que vê em tal aberração a alavanca propulsora do que denomina de desenvolvimento. Coisa assim do tipo  crítica pessoal  daquele que se diz cristão e busca no Deuteronômio e no Talião a vocação e a expressão de sua fé no Amor.

Assim anda nossa gente em sua augusta atualidade: não faça ao outro o que gostaria que não lhe fosse feito, mas pratique o olho por olho dente por dente. Não compreenda, não seja semelhante a Cristo mensageiro do Amor como redenção do homem; apunhale o próprio filho, porque o ‘deus’ que você acredita é aquele que pode sustar a adaga como o fez com Abrão, antes de torná-lo Abraão.

E dessa forma aplaude o Estado que mata o semelhante. Afinal, a morte é a festa, que já conta com mais de 400 mil participantes. Dos mais de 500 mil antes do final de junho. 

Temos exercitado a leitura deste universo tupiniquim, desde que o compreendemos como instrumento de exploração tal que o faz pátria da desigualdade social elevada ao cubo. Aprendemos que as razões históricas que assim o tornam até o momento não foram enfrentadas. E mesmo quando o é não foi compreendida pelos próprios beneficiados.

As raízes de tal mazela se encontram fincadas na condução do processo, em razão de uma classe dirigente que, de uma forma ou de outra — com raríssimas exceções — se apega ao patrimonialismo e ao compadrio como política pública e faz do Estado seu instrumento de atuação, diferindo, tão somente, em relação aos destinatários, conforme a ideologia que a norteie.

Desta forma permanecemos no embate histórico de uns lutarem para reduzir a desigualdade e outros para que se amplie. A vitória dos últimos tem sido mais permanente. Assim, afastada a conformação de uma unidade nacional beneficiada pelas riquezas imensuráveis presentes no território pátrio, cada dia mais distante da base da pirâmide social (mais e mais achatada) e mais concentrada naquele punhado de insignificância aritmética.

Sob essa vertente, a atuação político-eleitoral — como instrumento de ocupação do poder estatal — não alcançou em nível de resultados o mínimo que se possa esperar para uma terra que ultrapassa cinco séculos de existência.

Construímos no curso de dois séculos de independência política a dependência subserviente. E quando anunciamos posições contrárias a ela não o fazemos sob a égide da compreensão do por que ocorre.

Abaixo alguns trechos de dezenas dos que escrevemos neste espaço abordando o fato acima posto em relação à discussão da atualidade: 

A esquerda — tomando-se o PT como referência — enquanto no poder não interpretou os fatos à luz da experiência histórica. Não leu os almanaques e alfarrábios da política e do poder no curso da história, pelo menos da recente.

Não dimensionou a geopolítica como instrumento de hegemonia.

Não leu a cartilha estadunidense, em que pese alertado por entrevista de Moniz Bandeira, em 2013 (queremos crer que não tenha lido, para não ficarmos com a ideia de que foi burra) quando afirmou que os Estados Unidos não tolerariam o protagonismo do Brasil.

Não viu a ‘primavera árabe-tupiniquim’ batendo às portas em 2013 sob o álibi das tarifas em São Paulo; tampouco dimensionou que a diplomata estadunidense presente quando derrubaram Lugo no Paraguai se mudara de mala e cuia para Brasília (lá e cá o mesmo método, congresso-judiciário).

Sempre afirmamos que o jogo é bruto.

A desgraça se voltando para o Brasil começou com a descoberta e prospecção do pré-sal. Estados Unidos (CIA e Departamento de Estado) abertamente espionando. O esquema Petrobras foi todo manipulado a partir dos Estados Unidos em conluio com a república de Curitiba. Pepe Escobar, Assange divulgaram os fatos.

...

Por enxergar detalhes tais — como já escrevemos recentemente — só acreditamos na candidatura de Lula se houver por parte dele garantia para o mercado/classe dominante (que se apropriou do país recentemente) de que não haverá ‘quebra de contrato’. Ou seja, o que fizeram/compraram/espoliaram/queimaram será respeitado.

Caso contrário é ficar com as euforias e fazer de conta que não se vê o caminhar da juristocracia e dos que ora dela se beneficiam.  

(in Euforias a reboque).

“Ainda que seja ele o único capaz (como o fez quando governou) de perder os dedos para não perder os anéis. Os milagrosos anéis das políticas de governo petistas voltadas para os menos favorecidos.

Se o sistema o permitir, recomporá a credibilidade e o respeito do país.

Até outro golpe.”

                                                                       (in Lula, a bola da vez...). 

“[...] sua presença à frente do governo atende aos interesses mais comezinhos, tanto da classe dominante local como de além mar.

Também levantado indignação crítica à forma como a denominada oposição ao inquilino se porta, já que limitada ao ramerrão da denúncia midiática que em si mesma não alcança o real objetivo (justamente porque interpretada aos olhos e ouvidos do homem comum como apenas ‘coisa da oposição’, de quem perdeu o poder), sem meios e força para enfrentar ou competir com os discursos de ódio, com a mensagem evangélica. Ou seja, o discurso levado a termo pela oposição não conseguiu, em dois anos de descalabro, reduzir o BOM(!) e ÓTIMO(?) de avaliação do inquilino para menos de 30%. Simplesmente — por incrível que pareça — dispõe ele de 1/3 de apoio até agora imutável.

Salvo esparsas vozes sem a penetração necessária na base da sociedade a experiência recente deixa no ar que a oposição não aprendeu a lição de que não precisa agredir ou perseguir mas não pode confiar em projeto nacional amparado na burguesia. Sua postura nesse instante parece demonstrar apenas a realidade imediata: a retomada do poder.

Para tanto ataca o inquilino do Alvorada e esquece (e não o combate) a razão que a afastou do poder: o projeto neoliberal, com o qual de certa forma conviveu e tolerou. Parece não atentar que o que está em jogo permanece sendo uma luta de classes em torno da qual não se situou além do discurso.

(in Em meio à vitória avassaladora...)

Esta angústia que se nos acomete resulta de não vermos a saída necessária e imprescindível ao trágico que vivemos com um resultado eleitoral que sonhemos. Porque não bastará o discurso, a retomada do poder, o retorno às políticas de redução das desigualdades ora destruídas se tudo pode voltar a acontecer.

Sabemos — e parece que nos portamos indiferentes — diante de fatos comprovados – que:


o Departamento de Justiça (DoJ) norte-americano – órgão equivalente à Procuradoria-Geral da Justiça brasileira, com a diferença de que seu titular é ministro de Estado e, como tal, é demissível pelo presidente da República – recrutou e treinou a malta curitibana, ainda no início da segunda década deste século.


Em suma, a tarefa consistia em desencadear a 'perseguição constante e sistemática ao ‘rei’…', para usar as palavras de Karine Moreno-Taxman, a “especialista” da embaixada ianque, que inculcou aos seus aplicados alunos o método por eles executado estritamente, como se viu nos anos seguintes: adoção de task force; doutrina jurídica das “delações premiadas”; e 'compartilhamento informal' de informações com o DoJ, por fora dos canais oficiais.


E, o principal: criação do clima de ódio ao alvo da perseguição, mediante intenso uso dos meios de comunicação de massa, de modo a articular na chamada opinião pública, a demanda por sua condenação. A propósito, sempre é bom recordar o motivo do especial empenho dos agentes do Império nesta empreitada – a diplomacia “ativa e altiva” dos governos petistas, inclusive a atuação das empresas brasileiras no mercado internacional de infra-estrutura, exercendo forte concorrência às congêneres ianques.”

                                                       (Carlos Frederico Guazzelli, in Sul21)

Precisamos reler os fatos. Mensagem de Pepe Escobar (na TV247) reitera — com todas as letras — o que temos dito. E não vemos discutidos, tampouco enfrentados publicamente.

Não por falta de aviso.