segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Às baratas, tudo!

 

Afirmam que restarão a qualquer hecatombe nuclear somente as baratas. Sabendo-se quão grave a realidade e de que o homem como espécie não anda lá muito bem das pernas só uma retomada de experiências tipo o suicídio coletivo em Jonestown, de Jim Jones, há 43 anos, para explicar a ameaça estadunidense à Rússia de impor o ingresso da Ucrânia a OTAN-Organização do Tratado do Atlântico Norte (aliança entre Estados Unidos e Europa Ocidental) caminho para instalação de bases militares em território ucraniano, no costado da Rússia.

O inverso do ambicionado levou a uma crise nos anos 60 quando a URSS começou a instalar bases de mísseis em Cuba. Naquele instante os Estados Unidos alegaram (com razão) ameaça à sua soberania. Hoje, pretendê-lo em relação a Ucrânia não o é.

No âmbito do princípio da autodeterminação dos povos cabe respeitar o que internamente este ou aquele decidiu ou vive: democracia, absolutismo, ditadura, autocracia religiosa etc. Ou seja, não cabe intervenção que atinja aspectos estritamente locais. Ou seja, não havendo iniciativa deste ou daquele país que materialize ameaça ao concerto das nações é inconcebível qualquer intervenção.

Mas afastada a fonte da informação que recebemos, ou seja, a versão trazida aos fatos conforme os interesses particulares deste ou daquele país  intervenções têm ocorrido à sorrelfa neste planeta de todos nós!

Não mais os mesmos  talvez por força do ditado de que ‘o hábito do cachimbo põe a boca torta’  os Estados Unidos pensam que ainda são aquele em plenitude e que o resto do mundo é seu quintal como se América Latina o fosse. Mas, qualquer observador que não paute a sua informação de mundo nas histórias em quadrinhos de Superman, Homem América e quejandos tais, sabe  e o sabe muito bem  que o Tio Sam não é mais aquele. O necrológio como potência hegemônica vem sendo escrito e mesmo há quem afirme que os limites do seu poder (ora ainda mais aparente) tem data marcada, em lapso temporal que pode não ultrapassar uma década.

A sanha intervencionista, imperialista (de império, mesmo), de ter os demais submetidos ao ‘big stick’ há trinta anos vem se degradando. A alardeada vitória sobre o ‘mal’, cantada e decantada como a vitória da ‘liberdade’ e da ‘democracia’ no imediato do que foi denominado fim da ‘guerra fria’, simbolizada na queda do Muro de Berlim, levou o país e seu complexo militar que o sustenta e aos seus governos (democratas ou republicanos) a imaginar que detinha as rédeas do mundo para que suas vontades imperialistas fossem satisfeitas bastasse um psiu.

Esqueceu, no entanto, de combinar com a sabedoria de Garrincha, e saber se os russos, os chineses, os coreanos do norte estavam de acordo.

Para os Estados Unidos é muito cômodo promover guerras fora de seu território. Para lá manda os seus jovens sustentados no hinário e na bandeira como vestidos de libertação para os povos oprimidos enquanto travestem a opressão que promovem por outros caminhos.

...

A informação sob controle de quem a emite  e no Ocidente através das agências europeias e estadunidenses  reflete as reações ‘do mundo’ contrárias às ações russas em território ucraniano. Carregadas estão de protestos em defesa da autonomia e segurança territorial dos povos, no particular o da Ucrânia.

Nenhuma pergunta que aprofunde a busca da razão por que de a Rússia estar chegando ao ponto extremo. Nenhuma ponderação envolvendo a clássica definição de que ‘países não têm amigos, têm interesses’. Sob tal jaez os interesses em conflito são muito mais profundos do que o leitor meramente informado pela conectividade internética possa imaginar.

Os russos (de Putin) são acusados, mas os estados nacionais que apoiam um cerco estratégico à Rússia, que se materializa através da instalação de bases ao redor do território russo, capazes de atingir mesmo Moscou com artilharia balístico-nuclear, escondem o jogo oriundo da postura imperial do complexo militar estadunidense.

Somente os Estados Unidos possuem mais de 700 bases militares ao redor do mundo. A subordinação da Europa aos interesses estratégicos e hegemônicos dos Estados Unidos  e as decorrentes relações econômico-financeiras  há muito (fato aprofundado deste a desarticulação da ex-União Soviética) vem buscando sufocar os russos.

Em meio a tudo que nos chega como informação ninguém discute se os reclamos da Rússia, em nível de proteção aos seus interesses locais encontra ou não apoio da China. A China sabe que os avanços dos Estados Unidos buscando sufocar a Rússia se alcançarem sucesso abrirão o campo para idêntico avanço estadunidense sobre a própria China.

Sabendo o que representa a Ucrânia em termos de produção agroindustrial gostaríamos de ver a informação que nos chega permeada do que possui e interessa aos Estados Unidos, além do que significa como cabeça-de-ponte estadunidense no costado da Rússia.

Naturalmente, de direito idêntico inversamente dirá a Rússia deter.

Podemos afirmar que a pretensão dos Estados Unidos em defender a ‘liberdade’ e a ‘democracia’ ucraniana não corre pelos lindos olhos de sua gente. Caso ‘liberdade’ e ‘democracia’ o fossem paradigma a justificar suas intenções há muito não alimentaria terroristas (como o fez com Bin Laden, quando lhe convinha) ou Sadan Russein (quando lhe interessava) e há muito já teria destituído as ditaduras árabes. A Arábia Saudita, um exemplo. Mas – ora, mas  o petróleo da Arábia Saudita já está sob controle dos interesses dos Estados Unidos, servindo às suas corporações. Como não o tem da Venezuela promove bloqueios, ou derruba governos legítimos, como o do Brasil em 2016 para dispor do pré-sal.

Nos últimos anos não custa lembrar do Iraque, da Síria, da Líbia. Fundam-se na mítica da defesa da liberdade e afogam a liberdade dos outros. Na concepção em muito sedimentada no cinema como instrumento de controle da ‘verdade’, desde os faroestes, são eles os guardiães da Liberdade dos povos. Desde que a eles estejam submetidos. Sob o tacão de sanções econômicas levam povos a estado de penúria.

O parque agroindustrial da Ucrânia, herdado de investimentos ao tempo em que integrava a União Soviética  incluindo indústria voltada para usinas nucleares  atrai interesses de potências. A sua autonomia, no entanto  em que pese intervenção do Ocidente (leia-se Estados Unidos) no que resultou no atual governo (que tirou da algibeira um ator e comediante para servir de fantoche do Ocidente)  estava sendo respeitada até a mais recente tentativa de impor o ingresso da Ucrânia na Otan (leia-se, abrir caminho para a instalação de bases visando Moscou).

Como registramos na coluna anterior “Nada se faz sem que haja vantagem material” e para assegurar controles “A guerra é um instrumento exercido por quem detém o poder de promove-la e os meios de efetivá-la”.

Também registramos que o Ocidente capitaneado pelos Estados Unidos acabaram de transformar os ucranianos em "espingardas de Satanás".

Resta perguntar, considerando a possibilidade de uma guerra nuclear  único caminho para compensar a desmoralização diante da invasão bélica da Rússia a Ucrânia  se estão preparados para conviver com as baratas! Os que sobreviverem, claro!

Amanhã daremos continuidade abordando o tema ‘interesses’ em jogo sobre o prisma da hegemonia e da geopolítica, partindo do que representam para o mundo e a economia planetária, isolada e conjuntamente, a Rússia e a Ucrânia.


domingo, 27 de fevereiro de 2022

Padaria e açougue logo ali!

 

Do menor para entender o maior. Imaginemos o dono da padaria ou do açougue do bairro, instalado a gerações, de um instante para outro acossado por interesses de fornecedores monopolistas que exigem dele a aquisição da farinha ou do boi por eles fornecidos. Recusa sob argumento de que é o proprietário e sempre escolheu onde comprar conforme sua conveniência. Então se vê ameaçado de que não o fazendo sofrerá graves consequências. 

A natureza dos argumentos de quem ameaça, detendo alguma forma de poder, estão sob o paradigma da fábula ‘O lobo e o cordeiro’ partilhando a água do rio (interesses). Assim o vemos, em qualquer dimensão.

Certamente dirá a sensatez que isso fere direitos individuais, coletivos, a liberdade de escolha, a livre iniciativa etc. etc. E mais dirá: que qualquer coisa que interfira de forma violenta contra o padeiro ou açougueiro é crime.

Na seara internacional as coisas não diferem do refletido acima. No entanto, por trás de tudo, sob o prisma da hegemonia (a supremacia e o controle de um sobre o outro sob a égide cultural ou bélica) e da geopolítica (os espaços sobre os quais ‘meu’ poder deve ser exercido através de práticas muitas vezes intervencionistas), os interesses monopolistas agem de igual forma, exercitando mesmo a guerra para assegurar o objetivo.

Caro leitor, este escriba de província não pretende convencer quem quer que seja em torno do que aprecia como melhor. Mas não custa observar os dois lados que se fazem sempre presentes em questões como o atual momento na Ucrânia.

Não custa lembrar que por lá fizeram recentemente uma ‘revolução’ (2014). Não só promovendo a ruptura da ordem interna, o Ocidente não respeitou o princípio da autodeterminação dos povos e escancaradamente apoiou os mascarados que derrubaram o governo mais afinado com a vizinha Rússia e voltados para a desestabilizar a região.

Não custa lembrar o que representa a área ora sob conflito: Kiev, capital da Ucrânia já foi capital do império russo, o que demonstra a relação histórica e cultural entre eles.

A Rússia tolerou, cumpriu acordos celebrados na ocasião. Apenas, como já ocorrera ao tempo da queda do muro, condicionou os acordos e a manutenção da paz à não instalação de bases da OTAN no entorno de suas fronteiras. Inclusive aceitou a ‘revolução’ ucraniana e assinou os Tratados de Minsk, onde reitera as mesmas condições.

De lá para cá caso tenha paciência o leitor verifique quantas base da OTAN foram implantadas no entorno do Leste russo.

O que está por trás de todo sonho de qualquer império é a ocupação do próximo (cultural e geograficamente). Portugal e Espanha, Inglaterra, Holanda, Alemanha, França, Estados Unidos ou Rússia, qualquer deles, cada um a seu tempo.

Não descurar de que, no caso concreto quem está atravessando o oceano para ameaçar outro povo são os Estados Unidos utilizando-se dos parceiros europeus como cavalos de batalha.

O detalhe reside apenas num fato que os falcões estadunidenses pensaram que não aconteceria: a reação russa. Isto porque nada está acontecendo sem aviso.

Não nos esqueçamos quando falam de motivos que os motivos são sempre os deles (dos que detêm o controle da informação). As ‘armas químicas’ do Iraque  alardeadas em rede internacional por Colin Powell  justificaram a invasão do Iraque. Nunca foram encontradas. Bombardearam Belgrado recentemente para garantir adesão a OTAN. Tudo sem autorização do Conselho de Segurança da ONU. Mas ...

Nada se faz sem que haja vantagem material. A guerra é um instrumento exercido por quem detém o poder de promovê-la e os meios de efetivá-la. Por trás das guerras imperiais, em todos os tempos (Babilônia, Macedônia, Pérsia, Grécia, Roma etc. etc.), o butim esteve assegurado para cobrir as ‘despesas’, materializado no saque das riquezas e na escravidão para as populações locais.

O interesse do Ocidente mais que o interesse em dominar o complexo agroindustrial e mineral ucraniano, já em poder dos ‘revolucionários’ é aprofundar o entorno de ameaças a Rússia, incluindo o controle estratégico sobre as vias de suprimento e comercialização de produtos exportados pela Rússia.

Em defesa de suas ambições o Ocidente, capitaneado pelos Estados Unidos, pretende sufocar mais imediatamente a Rússia e, num segundo instante, dispor de meios para cercar a China (hoje aliada dos russos), a segunda maior economia do planeta e também detentora de insumos estratégicos para as indústrias eletroeletrônicas e aeroespaciais mundo a fora.

Guerra ou paz pouco importa. O poder das nações é aético. Só o interesse prevalece. As vítimas humanas são apenas estatísticas a serem esquecidas. Nesta contemporaneidade os Estados Unidos se acostumaram a destruir gerações, levando-as à guerra. Nunca foram santos, quando muito do “pau ôco” como diz o sertanejo.

Razão infinita ao que é atribuído a Erich Hartmann: “A guerra é um lugar onde jovens que não se conhecem e não se odeiam se matam, por decisão de velhos que se conhecem, se odeiam mas não se matam”. Desde Esparta!

Minha vó Tormeza certamente chamaria de ‘espingarda de Satanás’ o que os poderosos fazem deles.

Como se não bastasse, os Estados Unidos de Biden acabam de transformar os ucranianos em espingardas de Satanás.

Este escriba apenas paga para ver se sanções econômicas contra a Rússia a farão tornar-se a Cuba (a partir dos anos 60) ou a Venezuela (de hoje).

O jogo é sujo. De nossa parte apenas não queremos concordar com ele, qualquer que tenha a iniciativa.

E, como o demonstra a história não tão recente do comportamento intervencionista dos Estados Unidos, tenhamos a certeza de que não são os ‘lindos olhos’ ucranianos o motivo de tamanho interesse pela liberdade e democracia de seu povo.

Para essa gente é como se o mundo fosse a padaria ou açougue da esquina para a máfia, o comando vermelho ou a milícia de plantão.

Quanto aos desdobramentos é o que veremos amanhã, neste espaço, em “Às baratas, tudo!”


domingo, 20 de fevereiro de 2022

As lições que ficam, ainda que trágicas possam ser as consequências

 

Idos de fevereiro de 2017, domingo 19, quase dois anos antes das eleições de 2018, registramos em nosso dominical (“Gargalhares e ironias”) o seguinte raciocínio:


O que assusta e ensina

Nessas pesquisas para 2018 vão surgindo duas coisas: uma que não surpreende; outra, surpreendente.

Não surpreende Lula capitaneando. Até porque não lhe falta mídia se não bastasse ter sido presidente com reconhecível índice de aprovação  e a perseguição por que passa (levando-o à vítima, no entender do observador diante de tanta denúncia e nada ter sido provado até agora).

No entanto – em que pese haver saído do armário a turma, inebriada no aroma de 1964 – uma candidatura escancaradamente reacionária estar no imaginário dos entrevistados é sinal preocupante.

Não porque tal não devesse ocorrer (a candidatura), mas em razão das razões que a alimentam, contrárias – em muitos pontos de vista – aos anseios da cidadania.

Isso posto, o que mudou de lá para cá?

Em nível de povo, o que mudou de lá para cá? O instante, apenas o instante?!!!

Cremos  sem pretensão à profecia  que vivemos uma diferença entre o comum de um e outro instante: o de que aquela parcela da sociedade muito mais próxima do delírio (ver) mais segura se sente por haver descoberto o líder que antes nunca teve. O que lhe dá ganas e certeza de que seu universo de pensamento(?) é possível e profético.

A denominada classe dominante, ideologicamente conservadora, controlou a quase totalidade das eleições, elegendo representantes no curso da história republicana. Que lhe asseguravam o poder, apropriando-se do Estado, como se particular o fosse (patrimonialismo), para consumar políticas voltadas à acumulação da riqueza produzida, promover e ampliar a concentração da renda e aprofundar mais e mais a distância entre os desiguais. Reproduziu a praxe universal de o interesse privado detentor do capital ditar, com rédeas presas, as regras para que todos trabalhem para uns poucos, não preocupado com o interesse coletivo, tampouco desenvolver a cultura do debate político.

Ultrapassado o controle através dos púlpitos encontrou na imprensa o meio ideal para formar juízos de valor conformados à sua forma de defender seus interesses individuais e a educação levada a reboque.

O nosso alerta em 2017 continha a provocação para que o leitor percebesse que algo remoto norteava aquele instante. E o ‘remoto’ residia no controle remoto. Ou seja, os meios de comunicação ditavam o ‘pensar’ e o ‘que pensar’ a partir da agenda do que poderia voltar a corresponder aos interesses da classe dominante.

Como não bastasse, os desdobramentos (amparados na divulgação manipulada da realidade) resultaram no que vivemos.

A caixa de Pandora tupiniquim, até então, não liberava os males, guardados com quem com eles sonhava.

Mas os sonhos reprimidos (a dimensão patológica destes sonhos), expressavam-na apenas na ‘mesa de bar’, nas discussões pessoais. Porque o poder nunca lhe havia ofertado um teatro que trouxesse exemplo vivo para sua catarse.

E quem sonha defende com unhas e dentes o que acredita. Especialmente quando percebe que o sonho se materializou.

Em nível de Brasil não desenvolvemos uma cultura sob o cadinho das sociedades e costumes das gentes que contribuíram para sua construção. Uma parte significativa de experiências sucumbiu à saga pelo poder oriundo da amoralidade. Porque para tal gente a moralidade é coisa apenas afeta à Filosofia.

Em nível de Humanidade é “o passado que controla o presente às ocultas” (Eric Hobsbawn). Este passado é o registro da história do homem em virtudes e defeitos. Há um certo quê de que o homem não se fez a caminho da felicidade quando descobriu a acumulação material  em detrimento da participação/distribuição  como instrumento de reconhecer-se capaz de deter poder. Dividiu-se em explorador e explorado.

Este passado, presente na experiência exitosa recente  contrária “aos anseios da cidadania”   nos deixa um quê de que as lições ficam  e se consolidam  apesar de trágicas.

Lamentável  razão por que do trágico  que não há encanto ou sentido de avanço em benefício da cidadania a lição daquele instante se fazer permanente razão para uma parcela da população.

Caso indagação surja do trágico no contexto exposto, compreender que tudo que ora aparenta esperança pode não sê-lo como muitos imaginam.


domingo, 13 de fevereiro de 2022

Apocalipse em nova versão

 

O mais provinciano dos caboclos do mais remoto dos rincões deste sertão brasileiro sabe, à sorrelfa  sob a égide da experiência, vivida e ouvida  que portar a enxada não faz do homem agricultor; possuir uma caixa de ferramentas não torna o portador mecânico. E a lição mais primitiva  de que só se aprende fazendo  não faz jornalista ou escritor quem simplesmente escreva.

Sob este particular aspecto (escrever) não somente saber ler e levar ao texto o amontoado de letras. Fundamental a ideia lógica que o norteie.

E por mais integrante que sejamos de um inconsciente coletivo (junguiano) que acumule a experiência da humanidade se não nos debruçarmos sobre a razão das coisas, compreender sua existência e dialetiza-la para alcançar uma conclusão. Por tal razão nada nos fará habilitado à Academia se não dispusermos dos fundamentos em torno do que defendamos. Há uma base, um centro da verdade, que não admite o vazio mental como fundamento. A verdade científica somente é alcançada através da observação e do experimento exauridos.

O progresso em torno da elaboração textual saltou milênios quando a tipografia veio à luz sob Gutemberg. Naturalmente abriram-se espaços para que muitos alcançassem o que antes era privativo dos escribas e seus registros em pergaminhos, pedra ou barro.

Mas já vivemos os tempos em que até o revolucionário papel começa a perder espaço para outras formas de comunicação textual. E mesmo as nuvens tornam-se destino de impressões.

Circula na rede conclusão de Humberto Eco, pouco antes de morrer: “O drama da internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade. Normalmente, eles [os imbecis] eram imediatamente calados, mas agora eles têm o mesmo direito à palavra de um Prêmio Nobel. Antes, os idiotas da aldeia tinham direito à palavra em um bar e depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a coletividade".

Os efeitos do desencanto de Humberto Eco em muito ultrapassado pela realidade apropriada no curso do último ano de sua existência e dos seguintes. Não mais o “direito à palavra’, mas a possibilidade concreta do exercício da influência sobre os que pensam e agem igualmente, que esperam ser ouvidos e acreditam no que ‘escrevam’ outros.

Por outro caminhar, nos legaram as leituras a lição milenar em torno do que possa refletir no entender dos destinos de cada um no ambiente de uma coletividade. Então, uma catarse reprimida se combina, de certa forma, com a escatologia. Ou seja, a incompletude espiritual da humanidade em busca de caminhos de superação através da compreensão escatológica, saída e explicação para tudo se torna.

Em vertente aparentemente diversa, fonte de convicções, de medos, de temores espirituais, o Apocalipse prenuncia o final dos tempos no lombo de guerras, pestes, fome, sismos, clamor dos mártires e tudo que carreado o seja por seus ‘profetas/cavaleiros’

Em cada instante da história desta Civilização em dimensão própria  as pragas se expressam alimentando os temores e confirmações. Para alguns exegetas, ocorrências no curso de milênios; para outros, de poucos anos, dividido o tempo no contexto das aflições.

Cada Revelação se materializa no recente terremoto, na enchente, na estiagem. Os ‘profetas’ os utilizam para afirmar a chegada do final dos dias. O escatológico superado por esta singular forma de esperança, a catarse.

No entanto, claro fica, que distância há entre compreender e crer, puramente no sentido de acreditar sem discutir. Sob este viés a atualidade se tornou pródiga no construir os meios de confundir o escatológico e o catártico.

Agigantado se tornou, poder capaz de mesmo influenciar na conformação do poder temporal. Que o digam os que hoje ocupam no mundo cargos de comando sem capacidade plena para tanto, embalados na esteira de ‘verdades’ que são mentira e que por tal vertente esteja o planeta a sucumbir como projeto de Humanidade.

Em meio a um (Eco) e outro (Revelações), o homem em sua dimensão de compreender os fatos. Que não mais os compreende por haver alcançado a capacidade de abstrair da observação as conclusões lógicas no plano da seriedade ou credibilidade: tão somente por acessá-los.

E muito daquilo que estaria no âmbito da alucinação se transforma em delírio*.

Humberto Eco e o Livro das Revelações. O italiano se viu diante do inusitado: avanço e ocupação por um pensamento(?) retrógrado sobre o espaço antes limitado ao conhecedor.

Quando as Revelações traçaram sua existência no curso da História da Humanidade, no mundo dos profetas das Revelações muito se viu do que se aproxima de alucinações.

O que não se imaginou  espantava-se Eco  é que o avanço científico contribuísse tão decisivamente para que a imbecilidade ocupasse o espaço na dimensão que ocupou.

E o que o Livro das Revelações não revelasse em sua nova versão o verdadeiro cavaleiro: o imbecil triunfante.

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* Sobre o tema 


domingo, 6 de fevereiro de 2022

O bizarro se apropria da Tropicália ou por que choramos tanto

 

Os anos 60 nasceram sob a batuta de reformulações políticas e culturais. João Gilberto fixara em 1958 os parâmetros de uma nova estética musical, elaborada  como o afirma o maestro baiano Aderbal Duarte  sob a raiz modal que existe no Nordeste. Os anos JK despertavam na nova década a esperança de um país que andasse sobre os próprios pés. E Jango anunciava, assim que recuperou o poder presidencial, suas ‘reformas de base’, logo atropeladas pelo golpe civil-militar de 1964.

A morte da democracia e dos sonhos reformistas não atingiu uma parcela da geração que caminhava por outros degraus e tomou as artes como torreão para a defesa dos valores em ebulição. Na Música, no Cinema e no Teatro.

Na Bahia uma geração (que também convivia com as raízes do modalismo) aperfeiçoava-se musicalmente sob o condão de Ernst Widmer (1927-1990) e Hans-Joachim Koellreutter (1915-2005), secundada por Anton Walter Smetak (1913-1984), no cadinho que efervescia da Escola de Música da UFBA, que sucedera aos Seminários Internacionais de Música da UFBA (nascidos do idealismo do reitor Edgar Santos).

Nessa geração experimentalista Glauber Rocha (1939-1981) ofertava novos tons estéticos à Sétima Arte, Lina Bo Bardi (1914-1992) despertava o MAM da Bahia, Martim Francisco (1919-1973) e a Escola de Teatro da UFBA revolucionavam no então Teatro Santo Antônio e Tom Zé se fazia presente ao lado de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato Neto e Capinam trocando filigranas enquanto um certo Raulzito tocava bateria no “seus panteras”.

Dessas fileiras, ampliadas com presenças de Hélio Oiticica, Rogério Duprat, Os Mutantes, Nara Leão, Rita Lee, Zé Celso e inspirações concretistas, surge no início da segunda metade dos anos 60 do século passado o denominado Movimento Tropicalista.  

Não haverá quem o compreenda plenamente sem que tenha lido “O Banquete”, de Mário de Andrade (1893-1945). Isso porque a dimensão estética nele embutida  capitaneada pelo personagem Janjão  traz à mesa a reformulação proposta por Mário para a cultura pátria com o fito de afastar o país da aculturação europeia já se ensaiando para a estadunidense. Não à toa mais autêntica “a feijoada” que a salada americana e seus singulares acepipes alheios à conformação cultural de nossa gente. Traduzida na proposta tropicalista de deglutir tendências, manifestações de pensamento e informações várias em algo genuinamente pátrio, originalmente nosso. Para tanto, do popular ao erudito, passando por samba, xote, baião, rock e o que pudesse contribuir para a mescla, como bem traduziu Torquato Neto no breviário “Tropicalismo para principiantes”:


"Assumir completamente tudo o que a vida dos trópicos pode dar, sem preconceitos de ordem estética, sem cogitar de cafonice ou mau gosto, apenas vivendo a tropicalidade e o novo universo que ela encerra, ainda desconhecido".

Dito isso, mais fácil fica então compreender a salada contida em “Tropicália ou Panis et Circensis” (1968): ‘Miserere Nobis’, ‘Geléia Geral’, ‘Panis et Circensis’, ‘Parque Industrial’, ‘Baby’, ‘Bat Makumba’, ‘Mamãe Coragem’, ‘Lindonéia’ em meio a ‘Coração Materno’, ‘Três Caravelas’ e ‘Hino ao Senhor do Bonfim’.

Mas  triste mas! , eis o bizarro em que nos tornamos: o nome símbolo da revolução cultural não nos lembra hoje o que representou, mas a tragédia nossa de cada dia, onde a vida humana volta a ser experimento como se à senzala houvéssemos retornado.

Por ironia destes trópicos, diante de um quiosque Tropicália, na Praia da Barra da Tijuca, o sangue voltou a correr como nos troncos do pelourinho. No tombadilho castro-alvense mais um africano se foi neste imenso “Navio Negreiro”.

“Enquanto as pessoas na sala de jantar / são ocupadas em nascer e morrer” (Panis et Circensis) que pelo menos nos levantemos contra, “Antes que definitiva noite / se espalhe em Latino América” (Soy loco por ti, America).

E há quem ainda pergunte, ultrapassadas as bodas de ouro do Tropicalismo, por que choramos tanto!