domingo, 26 de dezembro de 2021

Por outros caminhos as lições

 

Por pouco, muito pouco, o dominical não foi publicado na segunda-feira. A energia elétrica finou-se e não havia expectativa de retorno. “O rio de minha aldeia” (Fernando Pessoa) avalentou-se (neologismo que se impõe) como há muito não se via e cobrou o descaso do homem para com a Natureza à qual deve tributo.

Sobre este escriba de província o voo dos helicópteros resgatando os necessitados todos. Todos iguais perante a cheia.

Mais de cinco décadas o retorno das águas em alerta. O cordão de contas entre uma terra e outra, entre Itororó e Itabuna, sucumbido às águas.

Este Natal cobrou dívidas. Tornou iguais todos, ainda que não tão iguais assim.

Uns clamando aos céus, chorando os teres perdidos, única expressão de uma existência de economias. Agora sem mesmo dispor do alimento imediato. Outros, impotentes diante do caos, ilhados em suas casas, agradecendo por não haverem perdido tudo como outros, e mesmo sem poderem oferecer parte de si.

Lágrimas escoando de faces, traduzindo a dor contida, impossível de ser expressada com palavras.

As hidrelétricas com suas barragens transbordando.

Não sabemos se com tanta água que correu ainda justifica o anúncio de que o custo da tarifa de energia continuará alta no ano entrante.

Certamente, se mantida, o será para quem defende apenas o lucro dos que exploram a tragédia alheia.

Como os que aumentaram os preços da água engarrafada quando buscada por quem dela precisava para crianças, idosos e doentes, aplicando indecorosa lei de oferta e procura.

Por outros caminhos as lições ainda não aprendidas de quem ensinou que os mansos e os pequeninos alcançarão o Reino.

Tampouco leram Tiago, para quem “a Fé sem as obras é morta”.

Porque, ainda que muitos elevem as mãos para o alto rezando em nome do Menino da Manjedoura, apóstatas se fazem quando imaginam que o vil metal os torna deuses.

Deuses que não controlam as águas que os alerta de que somos todos iguais.


domingo, 19 de dezembro de 2021

Nas entrelinhas a continuidade do jogo

 

Ainda que a semana entrante se faça de esperança para o consenso ocidental, sublimada na existência de um símbolo do mercado que se ampara no primado cristão para justificar suas ações (compre e dê, compre e dê...) não há como dissociar a realidade que se avizinha da íntima relação com a expectativa de dias melhores, o melhor dos presentes ansiados.

Duas décadas são o palco da encenação: uma experiência político-administrativa recente, caminhando para o sexto ano, que se contrapõe àquela vivida nos 14 anos anteriores a nortear o desejo de que  traduzidas em defesa dos interesses da sociedade as políticas públicas sob a atuação do Estado.

De certa forma, uma metáfora ou alegoria se faz presente: que a atuação do governo se afine com a ficção noelina, qual seja dar presentes, e que não sejam os clássicos sob a égide do ho-ho-ho do morador da Lapônia. Porque a massa da sociedade ora carece do fundamental: comida, saúde, educação, emprego através da retomada da atividade econômica que segure tudo aquilo.  

Desta forma não há como afastar o instante natalino do processo eleitoral que se avizinha. E em torno dele o debate entre as experiências imediata e mediata.

Registramos em Não há mistério: “De entender ou buscar a razão por que não há quem se interesse sem interesse. O processo eleitoral o demonstra”. E cá estamos neste acompanhar porque discutir possível resultado eleitoral é ‘chover no molhado’ e cansar o leitor diante de tanta tormenta: Lula vencerá as eleições no primeiro ou segundo turno. A não ser – cala-te boca – que o mercado não confie nele e resolva buscar outras soluções, inclusive... libertando Adélio.

Temos registrado, sem arroubos acadêmicos, com palavras outras, a inexistência do Estado em dimensão conceitual diante da apropriação da instituição política pelas classes dominantes no correr dos séculos.

Postos os peões no tabuleiro avoluma-se a imprescindível análise em torno de propostas e projetos que permitam confiar naquele que pretende alcançar a magistratura maior da nação.

Da jornalista Myriam Leitão (veiculada no 247), porta-voz de destaque em defesa do golpe de 2016, sobre o proclamado Sérgio Moro: “No mercado financeiro já se ouve o farfalhar dos apoios incondicionais à pessoa sem conteúdo definido, como houve em 2018. O autoengano recomeçou", escreve Miriam. E prossegue: "O problema em torno de Sergio Moro é o quase nada que se sabe sobre suas ideias em várias áreas. Nos 16 meses que ficou no Ministério da Justiça, Moro barrou demarcações de terras indígenas, mandou o fracassado pacote anticrime para o Congresso, embutindo nele o excludente de ilicitude,... e abonou os sinais de desvios éticos no governo Bolsonaro, quando começaram a surgir".

E mais: “Houve um evento assustador na sua gestão no Ministério. Greve de policial é proibida, porque é motim de pessoas armadas. E que foram armadas pela sociedade com o fim exclusivo de protegê-la. Policiais militares se amotinaram no Ceará, desafiando o governador Camilo Santana e levando medo à população. Moro enviou o coronel Aginaldo Oliveira para resolver o conflito. Lá, o coronel definiu os amotinados como corajosos e gigantes".

Afastados os interesses pessoais e corporativos defendidos por Myriam Leitão o que diz contém verdades insofismáveis: o despreparo deste ensaiado mito, como daquele outro. Mas se o atual presidente conviveu com a política, Moro somente a praticou inapropriadamente no âmbito de interesses alheios às instituições nacionais. Sob a capa de combate à corrupção – e sob o manto do “eu acho” – prendeu quem queria prender e soltava os que faziam o seu jogo.

Fica-nos a indagação, já levada a termo como explicação, em outros instantes/textos deste dominical: o que remete parcela do mercado à defesa de figuras tão bizarras postas como ‘soluções’ para o país a ponto de incomodar até uma porta-voz do sistema.

Para compreender, caro e paciente leitor, é imperativo ler o que está contido nas entrelinhas. E entrelinhas se encontram com outras declarações, estas trazidas pelo editor Lúcio Costa Pinto, do 247, que diz ter ouvido de empresário de renome e com assento na Avenida Paulista de que a parcela em torno dele não votará pela reeleição do atual muito menos no Moro (“Ninguém vota no Moro”!

Para não cansar nosso caro e paciente leitor – e mesmo não ‘chover no molhado’ diante do que temos escrito neste espaço – cabe apenas “Entender ou buscar a razão por que não há quem se interesse sem interesse”.

Myriam Leitão é porta-voz do empresariado, como o é o empresário da conversa. Cada um defendendo seus interesses: um, através de porta-voz; outro, testemunhando os pares.

Pode-se mesmo especular até o limite dos interesses de um e de outro: os defendidos pela porta-voz muitos estão lá fora exercitando o controle sobre esta terra brasilis por via de contemporâneo colonialismo; o outro, mais vinculado a este chão.

O que está nas entrelinhas é a continuidade do jogo. Que, no fundo, atende a Papai Noel e não a quem nasceu na Manjedoura.

Ao povo desassistido resta a esperança de ver retornados aqueles dias melhores já experimentados.

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A visão deste escriba de província para o Natal está expressa em “Epifania” (Portal da Piedade; Via Litterarum, 2018), disponível em GGN/Luiz Nassif .


domingo, 12 de dezembro de 2021

Presidencialismo de coalizão exige renúncias

 

A ora decantada possibilidade de aliança político-eleitoral entre Lula e Geraldo Alckmin faz tapar narinas à esquerda e à direita. Observada sob a égide ideológica tal aliança é inteiramente incompatível.

A socialdemocracia de Alckmin é a defendida pelo mercado capitaneado pela teoria neoliberal, ou seja, a do Estado mínimo. Tudo à iniciativa privada quando assegure lucro a esta e obrigações para o Estado inclusive salvar bancos e empresas. O contrário do que defende a esquerda.

Não sabemos se uma aliança com Alckmin virá a se constituir em nefandas consequências para o Estado, como a do PT com o PMDB fisiológico. Não esquecer que em quase tudo atribuído ao PT em nível de escândalos estão figuras de proa indicadas pelo PMDB para formar feudos que alimentassem a sua cornucópia. Como não bastasse plantou uma figura grotesca chamada Michel Temer que conversava com o Departamento de Estado americano desde idos de 2006 e comandou as negociatas que alimentavam o golpe ainda encastelado no Palácio Jaburu, em típica traição “ao vivo e em cores”.

A percepção de Lula em nível deste tipo de composição política não é nova, quando diz respeito a alianças com o centro ou mesmo centro-direita.

Quanto ao prejuízo eleitoral em cada uma das hostes (esquerda ou direita) de pouca influência se levamos em consideração o eleitor comum.

Ninguém imagine que o eleitor conservador vote em Lula porque Alckmin é seu vice. A possibilidade concreta de eleitores progressistas não votarem em Lula em razão da aliança, proporcionalmente aos ganhos, é insignificante. Ou seja, o contingente à esquerda será bem maior na manutenção do voto no petista do que a perda deste dentre votos conservadores.

Observados em suas dimensões para a análise e avaliação do eleitorado quem pesa é Lula. Presidente da República atuou sob visibilidade plena; Alckmin tem limites provincianos em que pese a hercúlea sabujice da mídia com o sistema nunca passou de ‘picolé de chuchu’. Os limites de sua longa carreira como governante, em São Paulo (a mais longa da história da República), não ofuscam a da presença de Lula no restante do país.

Pesquisa recente (Quaest, no 247) confirma tal avaliação, uma vez que somente 10% dos eleitores de Lula dizem que a chance de voto diminuiria. Isso faltando um ano para a eleição. Para nós tal chance (de não votar) se tornará nula quanto mais se aproximar o dia D.

No entanto não há como afirmar que dita aliança se consumará. A pretensão de Lula em dispor de alguém com tal viés não se esgota em Alckmin. Por outro lado, o amadurecimento de tal tema exige dele Lula que não corresponda ao imediatismo, à irreflexão para que não seja visto simplesmente como um oportunista.

Temos que Lula enxerga possibilidade de votos vinculados a Alckmin para o petista Fernando Haddad para governador, uma vez que tal aliança não afastará de Haddad os votos de que dispõe. Em cenário mais pessimista o único prejuízo residiria em Haddad não conquistar qualquer voto conservador.

Conquistar o Estado de São é a maior ambição de Lula (certamente sua maior vitória no atual instante), praticamente igual a reconquista da presidência. Emblemático e significativo: lá está a maior concentração do capital, centro do sistema financeiro e industrial, maior contingente de trabalhadores sindicalizados e onde o PT nunca venceu eleição para governador, incluindo o próprio Lula.

Eis o nó górdio: não haverá aliança Lula-Alckmin se não for Fernando Haddad o cabeça de chapa para governador em São Paulo.

Os críticos à esquerda imaginam que tal aliança seria passar uma borracha no passado. Cremos que a realidade da busca pelo poder na história recente do país e tomando o próprio Lula candidato em todas as eleições depois da ditadura não venceu o PT em qualquer delas quando formou aquilo que chamam de chapa puro sangue.

No mais, difícil o homem comum entender, que em regime de presidencialismo de coalizão não somente o poder deve ser conquistado; também a governabilidade.

Começando por aumento da bancada petista e de aliados no Congresso como efeito de uma candidatura Haddad, com chances de vitória.

Este fato exige renúncias no campo purista. Narinas tapadas, mas voto na urna.

domingo, 5 de dezembro de 2021

De leitores e personagens a realidade se faz

 

Há em romance nosso, prestes a ser levado ao prelo, personagem enlouquecida que recita Navio Negreiro (Castro Alves) e tem a escravidão como a tragédia maior da humanidade sem o devido reconhecimento, “por faltar interesse” do sistema em fazê-lo. Aprendeu a entalhar com Hansen Bahia quando de sua passagem pelo Recôncavo e exercitava o mister para leva-lo ao fogo assim que concluído o trabalho. Como tema “crianças esquálidas, bocas escancaradas, acorrentadas umas às outras clamando aos céus”. Certamente as chamas expressavam a sua catarse de toda uma humanidade. Alfonsino, o seu nome.

Leitor deste blog nos enviou e-mail pedindo apoio para sua luta contra a ocupação de espaços públicos por bares e restaurantes, em especial calçadas. Questiona ele a omissiva atuação de órgãos públicos destacando Prefeitura e Ministério Público.

A catarse de Alfonsino e a denúncia do leitor vemo-las como expressão da triste realidade de um país que perdeu o respeito pelas instituições e valores que constroem e dignificam uma sociedade civilizada. Daí nada faltou para perde-lo em relação ao cidadão.

O Estado – o brasileiro em particular – como expressão da classe dominante mais e mais se consolida em tão lamentável dimensão, consideradas as proporções: do comerciante provinciano ao banqueiro, latifundiário etc.

Os feudos edificados em todas as dimensões do poder público (Judiciário, Ministério Público, Forças Armadas, Poder Legislativo e Poder Executivo) e do privado (imprensa, igrejas e sociedade civil organizada) passeiam ao largo e, quando muito, são afetados pontuadamente, em instantes raros, por quem faz a diferença e de logo marcados estes autores como ‘terroristas’, ‘comunistas’, ‘petralhas’ e quejandos outros.

Basta ver o ‘normal’ a que chegamos.

No plano judicial aplaudidas decisões sob a égide de interpretações de ‘colendas’ cortes, de repercussão geral, escondem, muitas vezes, o asseguramento de vantagens à classe dominante.

Nada a dizer diante de alguns magistrados criminosos. Inclusive os que servem a países outros que não o nosso e já elevados à condição de tentar ocupar a maior magistratura nacional.

Decisões no âmbito legislativo (em todos os níveis) albergam interesses de grupos econômicos acima de tudo, restando migalhas aos do povo. E os reproduz o judiciário, que cuida menos de corresponder ao bom senso e à Justiça e em essência ao cumprimento da lei (que nem sempre está a serviço da Justiça).

As forças militares (e as de segurança pública) são o cão de guarda do sistema e seus rosnados ameaçam os que enfrentem privilégios e absurdos, inclusive os seus (como manutenção de forças ativas em tempo de paz e indecorosas pensões às custas do erário).

O Ministério Público, em instantes cruciais, menos defende a sociedade e mais – muito mais – interesses alheios a ela. Quando nada, se omite em enfrentá-los. No geral, a burocracia.

O Executivo encastela em seu bojo os instrumentos de favorecimento aos interesses econômicos (agências e câmaras de regulação em particular). Que o digam ANEEL, Banco Central, ANVISA, ANP, ANATEL, CMEB etc., administradas por pessoas indicadas pelos interesses que com elas conflitam.

Em nível privado a imprensa serve a quem a custeia. Para tanto, mente para garantia dos privilégios daqueles que a sustentam.

Igrejas e organizações outras tornaram-se apêndice do Estado – por via direta ou indireta – a ponto de aquelas haverem ampliado sua participação político-partidária como instrumento de pressão para melhor partilha no ‘meu pirão primeiro’ e em nada para defesa de interesses do povo.

Eis a razão por que gritam sem serem ouvidos nosso leitor – contra a ocupação de espaços públicos – e Alfonsino – levando às chamas sua produção intelectual enquanto declama Navio Negreiro. A ficção(?) se confunde com a realidade.

A consciência da cidadania no limbo de órgãos e instituições aos quais cabe defendê-la vê-se mais e mais acanhada e não tardará todos os que a defendemos sermos chamados de loucos.

Já o somos por não concordarmos – os mais lúcidos – com as políticas de governo ora implantadas como solução para as desgraças causadas pelo mesmo governo.

A propósito, nos soa a Voltaire (1694-1778): “Um doido chamado La Jonchère, que não tinha do que comer, escreveu em 1720 um projeto de finanças em 4 volumes” (Dicionário Filosófico, tradução de Ciro Mioranza e Antonio Geraldo da Silva – Lafonte, 2018, p. 237).

No entanto, diferem estes tempos em relação aos do século XVIII, porque os desta terra de São Saruê que se envolvem com finanças do Estado não têm nada de “doido”: comem muito bem e guardam dinheiro em paraísos ficais e seus chefes vão a regabofes mundo a fora (Oriente Médio, recentemente) quando entregam parcela do patrimônio pátrio àqueles que nos farão ainda mais escravos.

Porque neste livro chamado Brasil, onde escrito o cotidiano teimoso, de leitores e personagens a realidade se faz. Dolorosa, impiedosa para com sua gente.