Há em romance nosso, prestes a ser
levado ao prelo, personagem enlouquecida que recita Navio Negreiro (Castro
Alves) e tem a escravidão como a tragédia maior da humanidade sem o devido
reconhecimento, “por faltar interesse” do sistema em fazê-lo. Aprendeu a entalhar
com Hansen Bahia quando de sua passagem pelo Recôncavo e exercitava o mister
para leva-lo ao fogo assim que concluído o trabalho. Como tema “crianças
esquálidas, bocas
escancaradas, acorrentadas umas às outras clamando aos céus”. Certamente
as chamas expressavam a sua catarse de toda uma humanidade. Alfonsino, o seu
nome.
Leitor deste blog nos enviou e-mail
pedindo apoio para sua luta contra a ocupação de espaços públicos por bares e
restaurantes, em especial calçadas. Questiona ele a omissiva atuação de órgãos
públicos destacando Prefeitura e Ministério Público.
A catarse de Alfonsino e a denúncia do
leitor vemo-las como expressão da triste realidade de um país que perdeu o
respeito pelas instituições e valores que constroem e dignificam uma sociedade
civilizada. Daí nada faltou para perde-lo em relação ao cidadão.
O Estado – o brasileiro em particular –
como expressão da classe dominante mais e mais se consolida em tão lamentável dimensão,
consideradas as proporções: do comerciante provinciano ao banqueiro,
latifundiário etc.
Os feudos edificados em todas as
dimensões do poder público (Judiciário, Ministério Público, Forças Armadas, Poder
Legislativo e Poder Executivo) e do privado (imprensa, igrejas e sociedade
civil organizada) passeiam ao largo e, quando muito, são afetados
pontuadamente, em instantes raros, por quem faz a diferença e de logo marcados estes
autores como ‘terroristas’, ‘comunistas’, ‘petralhas’ e quejandos outros.
Basta ver o ‘normal’ a que chegamos.
No plano judicial aplaudidas decisões
sob a égide de interpretações de ‘colendas’ cortes, de repercussão geral, escondem,
muitas vezes, o asseguramento de vantagens à classe dominante.
Nada a dizer diante de alguns magistrados criminosos. Inclusive os que servem a países outros que não o nosso e já elevados à condição de tentar ocupar a maior magistratura nacional.
Decisões no âmbito legislativo (em
todos os níveis) albergam interesses de grupos econômicos acima de tudo,
restando migalhas aos do povo. E os reproduz o judiciário, que cuida menos de
corresponder ao bom senso e à Justiça e em essência ao cumprimento da lei (que
nem sempre está a serviço da Justiça).
As forças militares (e as de segurança
pública) são o cão de guarda do sistema e seus rosnados ameaçam os que
enfrentem privilégios e absurdos, inclusive os seus (como manutenção de forças
ativas em tempo de paz e indecorosas pensões às custas do erário).
O Ministério Público, em instantes
cruciais, menos defende a sociedade e mais – muito mais – interesses alheios a
ela. Quando nada, se omite em enfrentá-los. No geral, a burocracia.
O Executivo encastela em seu bojo os
instrumentos de favorecimento aos interesses econômicos (agências e câmaras de
regulação em particular). Que o digam ANEEL, Banco Central, ANVISA, ANP, ANATEL,
CMEB etc., administradas por pessoas indicadas pelos interesses que com elas
conflitam.
Em nível privado a imprensa serve a
quem a custeia. Para tanto, mente para garantia dos privilégios daqueles que a
sustentam.
Igrejas e organizações outras
tornaram-se apêndice do Estado – por via direta ou indireta – a ponto de aquelas
haverem ampliado sua participação político-partidária como instrumento de
pressão para melhor partilha no ‘meu pirão primeiro’ e em nada para defesa de
interesses do povo.
Eis a razão por que gritam sem serem
ouvidos nosso leitor – contra a ocupação de espaços públicos – e Alfonsino –
levando às chamas sua produção intelectual enquanto declama Navio Negreiro. A
ficção(?) se confunde com a realidade.
A consciência da cidadania no limbo de
órgãos e instituições aos quais cabe defendê-la vê-se mais e mais acanhada e
não tardará todos os que a defendemos sermos chamados de loucos.
Já o somos por não concordarmos – os mais
lúcidos – com as políticas de governo ora implantadas como solução para as
desgraças causadas pelo mesmo governo.
A propósito, nos soa a Voltaire (1694-1778): “Um
doido chamado La Jonchère, que não tinha do que comer, escreveu em 1720 um
projeto de finanças em 4 volumes” (Dicionário Filosófico, tradução de Ciro
Mioranza e Antonio Geraldo da Silva – Lafonte, 2018, p. 237).
No entanto, diferem estes tempos em
relação aos do século XVIII, porque os desta terra de São Saruê que se envolvem
com finanças do Estado não têm nada de “doido”: comem muito bem e guardam
dinheiro em paraísos ficais e seus chefes vão a regabofes mundo a fora (Oriente
Médio, recentemente) quando entregam parcela do patrimônio pátrio àqueles que
nos farão ainda mais escravos.
Porque neste livro chamado Brasil, onde
escrito o cotidiano teimoso, de leitores e personagens a realidade se faz.
Dolorosa, impiedosa para com sua gente.