domingo, 24 de março de 2024

Entre Pessoa e Russell

 

“Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...”

(Adiamento, Fernando Pessoa, pelo heterônimo Álvaro de Campos)

 

Convivemos com situações que ultrapassam a fronteira do inusitado. Certo que a idade alimenta em sua fase ‘filosófica’ a observação dialética em torno do que se nos acomete.

Mas, por mais que tenhamos evitado editoriais e noticiários televisivos e quejandos tais – desde muito, quando os percebemos peças da engrenagem de um sistema alienante – e, quando muito, nos limitamos a rir das versões difundidas como verdade quando lançada às calendas a Verdade (aristotélica), a mediocridade em coortes atravessa o Rubicão e avança em tática napoleônica sobre o que resta.

Não bastasse, a maioria de ‘técnicos’ nas diferentes áreas de (des)informação é testemunho de que não se trata de expressar formação intelectual, mas de corresponder ao ‘compromisso’ com o que lhes sustenta, naturalmente o “mercado’, o grande ‘empregador’. Uns, remunerados pelo vil metal; outros, por deslumbramento pequeno burguês.

Por isso não estamos conseguindo nem refletir sobre o ontem, atropelados pelo presente – que sob um dos prismas da autoajuda se outorga solução – profundamente violentado física, histórica, ética e humanamente pela carga de mensagens/verdades “absolutas”.

Tampouco – muito, muito menos – refletir sobre o outrem. Negamos-lhe o passado para reflexão e o presente o temos como campo de batalha onde o outro é o adversário em disputa fratricida a ser aniquilado. Sem direito a clamar por solidariedade.

E quando a realidade se expressa sob a ótica do ‘mercado’ eis em plenitude a negação do Humanismo, o ápice da negação do homem como destinatário da felicidade. Até a mensagem cristã foi apropriada pelo mercantilismo.

Eis que esta terra brasilis tenta enfrentar hostes servis à negação de tudo – sem apologia – que não se debruce sobre o homem como fonte e destino do bem comum.

Mas, não enxergamos o instante de “pensar o amanhã no dia seguinte”. O imediato nos afeta como destino inexorável e concentramos energias negativas em profusão lançando ao fundo do poço a esperança realizável.

Ainda que sub-reptício (desfigurando-se do alcunhado em nível ideológico) a velada forma de negação aí está, alimentando a ‘sua verdade’ e pensar ilustradamente tornou-se alvo de estigma e nós outros aos poucos sucumbimos a quem nega o ‘dia seguinte’ ao amanhã, sufocados e amordaçados.

Mas, para os que não esquecemos o passado como lição nos escudamos em reconhecer, como o reconheceu Bertrand Russell:

“Primeiro, eles fascinam os tolos; depois, amordaçam os inteligentes”.


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