domingo, 29 de março de 2020

Razão em duas convergentes


Abre-se o tema com a assustadora análise de estudo, titulado de “O impacto global da Covid-19 e as estratégias de mitigação e supressão”, do grupo de Resposta à Covid-19 do Imperial College, de Londres, particularizando o Brasil: prevê em 1.152.283 o número de mortes no país, caso medidas de contenção não sejam tomadas, que podem despencar para 44 mil brasileiros mortos com as medidas mais radicais e precoces. Aqui nos louvamos em veiculação no Conversa Afiada.

Em meio a tão catastrófica realidade – que assusta o planeta – exigindo tomada de posições drásticas mundo afora, por este país dividem-se opiniões. Havendo quem esteja virtualmente contra qualquer delas porque o ‘mito’ de seus sonhares e quereres assim o expressa. Ou seja: entre salvar vidas como sugerido pela Ciência Médica e assegurar veiculação de pessoas (que propagarão o mal, multiplicando-o quase geometricamente) sob o raciocínio de que a economia ‘não pode parar’ sacrifique-se o primeiro.

Nem entremos no vazio idiota de quem fala em economia (que é de marcado, de consumo) reduzindo consumidores. Tampouco de que, em momentos de crise, é dever do Estado custear e prover a sobrevivência porque – como costumamos dizer – ao Estado não cabe servir ‘o’ homem, mas ‘ao’ homem.

Todo o posto como introito visa buscar compreender a razão por que o comando da nação se encontrar sob as rédeas de quem demonstra, à sobeja, desconhecer o minimo minimorum (o mínimo do mínimo, o menor dos menores) do que seja administrar o cotidiano, muito menos crises.

Claro que não cobramos – até porque nunca o fizemos – por estar ocupando o posto maior do país quem nunca ofereceu qualquer exemplo de que dominasse a seara pública. Sua história e testemunho nunca enganaram ninguém. Não pode ele, o inquilino do Alvorada, ser cobrado porque – repetimos – nunca enganou ninguém.

Mas o questionamento que fazemos neste espaço passa, sempre, por entender as razões por que o inquilino atingiu o ápice. Um fato que se expressa, em suas raízes, presente e remotamente.
Sempre intrigou este escriba de província um fato concreto: por que as classes sociais menos favorecidas, beneficiadas diretamente com as políticas públicas encetadas por governos petistas, que melhoraram de vida efetivamente, não responderam em votação ao que lhes beneficiara? Ou seja: por que não reconhecidas as ações concretas de governos progressistas, com programas pautados na redução das desigualdades e distribuição de riqueza?

Aplique-se tal raciocínio às administrações do PT em nível municipal, estadual e nacional.

Ainda que alertado por observações preciosas, como a de Mujica, de que a esquerda estava cuidando de formar consumidores e não cidadãos, ainda não encontrávamos a resposta, que somente transitava pelo viés moral (presunção ou mesmo certo preconceito) do eleitor mal agradecido.

Não deixamos de cobrar do PT/governo o afastamento das bases, por acreditar piamente (assim pensávamos) de que seria compreendido em razão do reconhecimento “espontâneo” às ações que realizava. Cobramos por tal postura ‘vaidosa’. Cremos que, sob este particular aspecto, nos enganamos porque não apenas essa circunstância hoje alimenta o observador.

A resposta extraímos em texto de Bruno Reikdal Lima, no GGN. Transitando por Weber diz o articulista, com palavras irrefutáveis, que aquele “consumidor” formado pela esquerda reconhecia o seu avanço como dádiva de Deus. O emprego gerado, a distribuição de renda, o ganho real para o salário mínimo, o investimento público em obras de infraestrutura etc. não se originavam – para ele – das políticas de Estado postas em uso por um governo como nunca outro o fizera.

Ou seja, a ação humana, concretamente definida por políticas estatais através de governos progressistas, não se insere no imaginário pelo prisma externo (quem fez o que fez) mas por via de alienação eminentemente subjetiva e individual: EU, por bondade e graças de Deus, conquistei pelos meus méritos... etc. etc. etc.

Enquanto as políticas distribuíam renda e riqueza viam tais camadas na ação de Deus a sua vitória como reconhecimento de dedicação ao culto.

Assim, parcela significativa dos beneficiados por programas governamentais oriundos de governos petistas (em todos os níveis, federais, estaduais e municipais) viram sua melhora de vida atribuída ao pregador/pastor que lhe tomava parte da renda obtida para garantir mais de Deus. E assim, o governo dava e o igreja tirava a parte de ‘deus’ e o dizimista se via agradecido tão somente a Deus, não a quem – em nome d’Ele – aqui agia.

Mas, outro fenômeno há de ser observado. E vinculado ao processo de construção cívico-cultural do cadinho histórico-sociológico desta terra brasilis. Fato assemelhadamente ponderado/observado por Eduardo Galeano (As veias abertas da América latina) e Manoel Bonfim (1868-1932) (“América Latina, males de origem”, “O Brasil na América” e “O Brasil Nação”) Para tanto nos apoiamos, relendo-o recentemente, em Darcy Ribeiro:

O espantoso é que os brasileiros, orgulhosos de sua tão proclamada, como falsa, "democracia racial", raramente percebem os profundos abismos que aqui separam os estratos sociais. O mais grave é que esse abismo não conduz a conflitos tendentes a transpô‐lo, porque se cristalizam num modus vivendi que aparta os ricos dos pobres, como se fossem castas e guetos. Os privilegiados simplesmente se isolam numa barreira de indiferença para com a sina dos pobres, cuja miséria repugnante procuram ignorar ou ocultar numa espécie de miopia social, que perpetua a alternidade. [...]

E preciso, conclui assim seu raciocínio:

[...] O povo-massa, sofrido e perplexo, vê a ordem social como um sistema sagrado que privilegia uma minoria contemplada por Deus, à qual tudo é consentido e concedido. Inclusive o dom de serem, às vezes, dadivosos, mas sempre frios e perversos e, invariavelmente, imprevisíveis.” (O Povo Brasileiro – a formação e o sentido do Brasil, Companhia das Letras, 2ª edição, 2005, p. 24).


Compreendemos, caro leitor, que o tema exige um ensaio e que o espaço aqui não o permite. Mas não custa semear para tentar compreender a razão por que de tanta estupidez, de tanta divisão, de tanta indiferença para com os desassistidos.

Já nos bastamos em vislumbrar os caminhos originários e convergentes. Ontem e hoje.

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