Registros há de que a inspiração de Thomas More (1478-1535) para Utopia (1516) brotou de relatos sobre as terras recém descobertas naquela que se tornaria América, em especial dos portugueses em relação à terra brasilis, onde a decantada carta de Caminha relatava coisas dignas de um paraíso terrestre. A pureza e inocência dos nativos, a fartura arbórea, a riqueza intacta suficiente a fazer a felicidade do homem despertava em vivente de Era Medieval o que somente se conceberia em sonhos.
Temos que a aclamada obra mais que
sinalizar em torno de uma utopia existente afirmava, profética, que aquele
mundo não seria alcançado, ainda que existente.
Certamente viu Morus na gente nativa o
sinal de uma raça como inspiração. Não cuidou — ou não caberia
fazê-lo —
tratar de um outro tema, também de conteúdo profético: quem exploraria aquelas
terras e suas gentes.
Porque de lá para cá a única certeza
que existe reside no fato de ninguém aqui veio para aprender, mas para
explorar. E explorando, matar – se preciso – o que de puro havia.
Triste dizer que — apesar de
dispormos de tudo para nos tornarmos exemplo para o mundo — reproduzimos e
aperfeiçoamos o que de pior e mais tétrico há, contempladas pinturas de Eras
obscuras.
O Covid-19, como pandemia, legou neste
2020 o despertar de uma reflexão: certo que não poderíamos comemorar o
aniversário da pátria, mas —
ther’is the question —
comemorar o quê? Uma independência que para ser reconhecida exigiu a
indenização de 25 mil libras esterlinas a Portugal pelos prejuízos causados?
Uma República que nasceu de um golpe, sem povo, sem projeto? Uma Federação que repetiu
o perfil provinciano do Império onde a classe dominante se fez perpetuar?
Um país que obsta progredir se tal não
ocorre pela mão e em favor dos que sempre o colonizaram e dominaram.
Uma classe ‘pensante’ que só pensa
nela e que tem a educação como mercadoria para os aquinhoados, artigo de luxo acessível
a poucos, nem sempre às custas da honestidade.
O colombiano José Maria Vargas Vila (1860-1933)
—
em Filhote de leão (1920) —
espelha uma realidade ao seu tempo de ficção que muito bem conhecemos:
“Os Rujeles sempre haviam sido, desde séculos, homens endinheirados e temidos naquela região [...]
descendentes de velhos fidalgos, senhores de baraço e cutelo, raça de velhos lobos brasonados, que faziam ascender sua genealogia até os primeiros proprietários a quem o rei dera em feudo e patrimônio aquelas terras [...]
conservaram por muito tempo o prestígio de sua dominação, mantendo e cultivando a ignorância de seus vassalos; o analfabetismo foi a regra primordial de sua autoridade; inocular e cultivar nesse rebanho humano o viro da religiosidade, desenvolvendo nele a epzootia do fanatismo religioso, foi essa a força e o segredo de seu poderio; as turbas fanáticas de Sierra Negra foram por longos anos o terror daquelas comarcas e o braço e a esperança de todos os partidos retrógrados que lá chegaram a buscar o amparo para suas pretensões.”
Uma gente, revela o autor, que não
aceita a mínima alteração em relação ao status
quo por ela eternizada em detrimento da universalidade e igualdade de
direitos:
“Diminuídas
suas pretensões e seu prestígio pelo avolumar-se da onda democrática e
igualitária que aboliu foros, extinguiu privilégios e criou direitos, não
capitularam com o espírito da época, nem por vencidos se deram, nem tampouco
abaixaram a cerviz diante da perda de suas prerrogativas, que eles consideravam
sagradas; vencidos, selvagens e irredutíveis, continuaram a considerar uma
espoliação todo direito que se criava e exercia naquelas terras por muito tempo indivisas, e que eles tinham
habituado a olhar como suas, exercendo sobre as mesmas domínio e posse”.”
(Tradução
de João Henrique, Editora Prometeu; 1953, p. 16 e 17)
Os Rujeles de Vargas Vila não afirmemos apenas que sejam personagem de novela colombiana, uma “novela de almas rústicas” como o autor subtitulou a obra. Bem podem estar ali, beneficiados por isenções fiscais em seus templos, afastados de reformas administrativas que castram direitos ou em cargos, sinecuras e baronatos remunerados pelo dinheiro público.
Certeza tenhamos de que alertas estão para
que não aconteça alguma “onda democrática e igualitária” que beneficie outros
que não eles, porque “sagradas” são as suas prerrogativas.
Porque são eles — os que ameaçam — os primeiros a
se apresentarem como solução contra o que eles mesmos causaram e causam. E tudo
fazem para que não lhes seja frustrado tal fazer.
Os que, nos últimos 100 anos, não
permitiram que avanços da pátria e de seu povo viessem a ser permanentes. Aí
estão anos 40, 50 e 60 do século XX. E porque o XXI começou ousado o que lhe
ocorreu nos anos 20.
E controlando a informação nunca o
mundo saberá o que aconteceu com a inspiração de Thomas Morus.
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