domingo, 13 de setembro de 2020

Entre More, Vargas Vila e a informação

Registros há de que a inspiração de Thomas More (1478-1535) para Utopia (1516) brotou de relatos sobre as terras recém descobertas naquela que se tornaria América, em especial dos portugueses em relação à terra brasilis, onde a decantada carta de Caminha relatava coisas dignas de um paraíso terrestre. A pureza e inocência dos nativos, a fartura arbórea, a riqueza intacta suficiente a fazer a felicidade do homem despertava em vivente de Era Medieval o que somente se conceberia em sonhos.

Temos que a aclamada obra mais que sinalizar em torno de uma utopia existente afirmava, profética, que aquele mundo não seria alcançado, ainda que existente.

Certamente viu Morus na gente nativa o sinal de uma raça como inspiração. Não cuidou — ou não caberia fazê-lo — tratar de um outro tema, também de conteúdo profético: quem exploraria aquelas terras e suas gentes.

Porque de lá para cá a única certeza que existe reside no fato de ninguém aqui veio para aprender, mas para explorar. E explorando, matar – se preciso – o que de puro havia.

Triste dizer que — apesar de dispormos de tudo para nos tornarmos exemplo para o mundo — reproduzimos e aperfeiçoamos o que de pior e mais tétrico há, contempladas pinturas de Eras obscuras.  

O Covid-19, como pandemia, legou neste 2020 o despertar de uma reflexão: certo que não poderíamos comemorar o aniversário da pátria, mas — ther’is the question — comemorar o quê? Uma independência que para ser reconhecida exigiu a indenização de 25 mil libras esterlinas a Portugal pelos prejuízos causados? Uma República que nasceu de um golpe, sem povo, sem projeto? Uma Federação que repetiu o perfil provinciano do Império onde a classe dominante se fez perpetuar?

Um país que obsta progredir se tal não ocorre pela mão e em favor dos que sempre o colonizaram e dominaram.

Uma classe ‘pensante’ que só pensa nela e que tem a educação como mercadoria para os aquinhoados, artigo de luxo acessível a poucos, nem sempre às custas da honestidade.

O colombiano José Maria Vargas Vila (1860-1933) — em Filhote de leão (1920) — espelha uma realidade ao seu tempo de ficção que muito bem conhecemos:

 

“Os Rujeles sempre haviam sido, desde séculos, homens endinheirados e temidos naquela região [...] 

descendentes de velhos fidalgos, senhores de baraço e cutelo, raça de velhos lobos brasonados, que faziam ascender sua genealogia até os primeiros proprietários a quem o rei dera em feudo e patrimônio aquelas terras [...] 

conservaram por muito tempo o prestígio de sua dominação, mantendo e cultivando a ignorância de seus vassalos; o analfabetismo foi a regra primordial de sua autoridade; inocular e cultivar nesse rebanho humano o viro da religiosidade, desenvolvendo nele a epzootia do fanatismo religioso, foi essa a força e o segredo de seu poderio; as turbas fanáticas de Sierra Negra foram por longos anos o terror daquelas comarcas e o braço e a esperança de todos os partidos retrógrados que lá chegaram a buscar o amparo para suas pretensões.”   

 

Uma gente, revela o autor, que não aceita a mínima alteração em relação ao status quo por ela eternizada em detrimento da universalidade e igualdade de direitos:

 

“Diminuídas suas pretensões e seu prestígio pelo avolumar-se da onda democrática e igualitária que aboliu foros, extinguiu privilégios e criou direitos, não capitularam com o espírito da época, nem por vencidos se deram, nem tampouco abaixaram a cerviz diante da perda de suas prerrogativas, que eles consideravam sagradas; vencidos, selvagens e irredutíveis, continuaram a considerar uma espoliação todo direito que se criava e exercia naquelas terras  por muito tempo indivisas, e que eles tinham habituado a olhar como suas, exercendo sobre as mesmas domínio e posse”.”

(Tradução de João Henrique, Editora Prometeu; 1953, p. 16 e 17)

Os Rujeles de Vargas Vila não afirmemos apenas que sejam personagem de novela colombiana, uma “novela de almas rústicas” como o autor subtitulou a obra. Bem podem estar ali, beneficiados por isenções fiscais em seus templos, afastados de reformas administrativas que castram direitos ou em cargos, sinecuras e baronatos remunerados pelo dinheiro público.

Certeza tenhamos de que alertas estão para que não aconteça alguma “onda democrática e igualitária” que beneficie outros que não eles, porque “sagradas” são as suas prerrogativas.

Porque são eles — os que ameaçam — os primeiros a se apresentarem como solução contra o que eles mesmos causaram e causam. E tudo fazem para que não lhes seja frustrado tal fazer.

Os que, nos últimos 100 anos, não permitiram que avanços da pátria e de seu povo viessem a ser permanentes. Aí estão anos 40, 50 e 60 do século XX. E porque o XXI começou ousado o que lhe ocorreu nos anos 20.

E controlando a informação nunca o mundo saberá o que aconteceu com a inspiração de Thomas Morus.

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