domingo, 6 de junho de 2021

Anarquia programada, objetivo definido

Remonta aos primórdios da Grécia Antiga, com Esparta (séculos IX a.C. a IV A.C.), a origem da disciplina militar. Estruturada para uma sociedade de guerreiros (os jovens retirados da família em tenra infância) que formavam uma casta voltada para a guerra, onde se desenvolveu o processo de conformação de uma unidade sob o primado da hierarquia e da disciplina.

Ainda que no curso da história os exércitos tenham correspondido aos interesses de seu tempo (de chefes, de reis e imperadores etc.) os princípios estabelecidos pelo norteamento espartano sustentaram a militarização em cada época, alcançando o Estado moderno. voltados, em tese, para a defesa da soberania e da integridade territorial dos países.

De simples compreensão que a Instituição militar se reduz ao binômio originário da velha Esparta: hierarquia e disciplina.

Razão por que um tema por demais sensível. no militarismo, diz respeito a evitar que seja ferido dito binômio, o que implicaria em anarquia. A bíblia de cabeceira da anarquia se ampara no descumprimento de códigos de conduta, de regulamentos, de ordens de comando, em negar a rígida disciplina, dogma de existência e unidade das corporações. Os sinais de sua presença são combatidos a ferro e fogo porque dela derivam todas as mazelas à imagem das forças militares.

A indisciplina é tema caro ao ordenamento militar. Razão por que inteiramente vedado — ainda que se afirme não existir — a politização nas casernas, porque onde se faz política não se exige disciplina, tampouco respeito à hierarquia onde a tônica é o debate de ideias.

Muitos dos fatos recentes (últimos anos) se iniciam com a escancarada manifestação de um militar de que traiu seus compromissos ao intervir concretamente contra o Estado Democrático impondo ao STF os ditames de um julgamento político e não jurídico, até a recente manifestação pública de um outro general em mobilização tida para muitos como de natureza política.

Este fato tanto incomodou que mesmo a imprensa, cautelosa e por demais melindrosa ao tratar de fatos que envolvam militares, alardeou a punição do militar por desrespeito ao ordenamento a que submetido aquelas.

Merval Pereira, uma figura de leitura imprescindível como porta voz da classe dominante, antecipou o que seria o caos quando escreveu no dia 3:


"Os generais do Alto-Comando do Exército, reunidos ontem para debater a situação da indisciplina do general de divisão da ativa Eduardo Pazuello, decidiram não anunciar a decisão no momento".

E acrescentou o bem informado editorialista de O Globo:


"Aproveitarão o feriado para amadurecer a tendência de puni-lo, em clima de indignação com a atitude do presidente de proteger seu ex-ministro da Saúde, em claro confronto com a instituição a que pertence."


"Evidente que um general da ativa investigado por indisciplina não poderia ser nomeado para nenhum cargo, muito menos um diretamente ligado ao presidente da República, a menos que ele queira protegê-lo e impor sua condição de comandante em chefe das Forças Armadas para pressionar o comandante do Exército, general Paulo Sérgio Nogueira. Bolsonaro não tem limites e não respeita nada nem ninguém. Ou você o aceita como é, ou será confrontado sempre, não apenas o STF, o Congresso, mas até as instituições militares a que ele é ligado, sempre marcado por indisciplina e insubordinações...”.

Em meio às críticas o editorial do Estadão, na quinta-feira (em detalhes no 247), foi mais longe:


“Mais grave, contudo, é que o presidente consagra como princípios a insubordinação e a quebra da hierarquia militar, exatamente à sua imagem e semelhança.

[...]

"Bolsonaro, em resumo, nomeou o intendente Pazuello pensando escarnecer dos militares. Mas o escarnecido é o País e, antes dele, um comandante em chefe que se comporta como chefe de milícia."

O inquilino do Alvorada “comandante em chefe das Forças Armadas” (a quem competia o exemplo de fazer respeitar a lei) nomeara o indigitado e quase punido para cargo de assessoria imediata e proclamou aos quatro ventos que é ele o verdadeiro “chefe” e que ninguém interfere em decisões das forças armadas, em que pese tê-lo feito diretamente para que a anunciada punição não fosse consumada.

O mínimo a dizer-se é que o Exército sai desgastado, jantado pelo indisciplinado da motocicleta.

A gravidade que envolve o fato e seus desdobramentos reside justamente na singularidade de que um chefe interferiu em programada decisão punitiva, ferindo de morte o código disciplinar da instituição. Tal circunstância demonstra à sorrelfa o estágio de quebra de um ordenamento jurídico sob a vontade um. Ou seja, aquela de “O Estado sou eu”, de Luís XIV, o estado absolutista, personificado não na Lei, mas no monarca entronizado por vontade divina.

Não há como atribuir a decisão de tolerar a indisciplina ao Comandante do Exército — para mesuras ao ‘chefe’ — e, sim, ao Alto Comando que, constituído de 15 generais de quatro estrelas, certamente através de uma decisão colegiada de alto coturno, “amadurecida” para evitar um conflito aberto (que põe de joelhos o comando militar), abre quarteis e fortalezas ao controle político-partidário-eleitoral.

A indisciplina escancarada, amparada em razões de poder político pode constituir-se em precedente perigoso. Cabe saber se a hierarquia será capaz de manter a ‘disciplina’ de subordinados em quarteladas.

Ressalte-se que a cúpula militar não tem de que reclamar. Mesmo pelo precedente envolvendo o mesmo ator. O inquilino do Alvorada, então tenente, foi reformado/aposentado aos 33 anos de idade como saída encontrada pela Justiça Militar para não puni-lo com a expulsão por ameaça de terrorismo, quando anunciou explodir o sistema de adutoras do Guandu, no início do governo Sarney. E não lembremos do escabroso caso Para-Sar, em 1968, quando Burnier pretendeu explodir o gasômetro do Rio de Janeiro para lançar a culpa sobre os comunistas e desencadear uma matança de líderes políticos ao lado da perseguição aos esquerdistas.

Neste quesito ele sabe com quem está mexendo. Sabe que tem sua espinha dorsal sustentada na ala que pensa igual a ele encastelada no Exército: a turma que aplaude a cloroquina (produção), que detém alguns milhares de cargos no Executivo e Estatais, que se imagina a salvação de todos nos moldes dos “tempos de murici, cada um cuida de si”.

Algo que não mais faz sentido na contemporaneidade — forças armadas regulares — a cúpula tupiniquim lança às calendas o mais caro de suas tradições: a disciplina.

Daí para o caos nada falta.

Apenas o primeiro tiro. Isso, pelo menos, o que pode estar na mente do inquilino do Alvorada.

Para este escriba de província, com olhar de caboclo dos grotões, lendo nas nuvens o futuro, o indigitado deu o ponta pé para a instauração da anarquia e da indisciplina, o que nos soa como o objetivo definido.

Diz ele, com todas as letras ao observador e intérprete — que Deus se apiede de nós! — em mensagem cristalina: policias civis e militares, integrantes das forças armadas, podem se rebelar contra as instituições. Caso sejam frustrados em seus intentos, estou aqui para anistiá-los e impedir que sejam punidos.

Como desdobramento a instauração de um estado de exceção para controlar a ‘desordem’ e, naturalmente, suspender as eleições com a prorrogação automática dos atuais mandatos até que a ordem seja instaurada.

Quem duvidar reze para que o escriba esteja errado.


Porque há quem imagine que impeachment e calendário eleitoral são a solução para tudo.

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