domingo, 3 de abril de 2022

Não um dia qualquer

Nos idos da infância provinciana o 1º de abril era dia de aproveitar da boa vontade de servir de muitos (geralmente os pobres e carentes, os servis) para deles um grupo se utilizar pedindo favores e fazê-los transmitir recados escritos. No destino, aberto o recado, a mensagem de que enviasse o ‘idiota’ mais adiante porque era 1º de abril. E assim, o indigitado corria rua por rua, de um extremo a outro da cidade, até que alguém, penalizado, lhe dissesse que aquilo não passava de brincadeira. Então, humilhado, lá ia o estafeta curtir a humilhação em algum lugar onde ninguém o visse.

Sim, caro leitor, a mentira tinha seu dia: 1º de abril. Um dia por ano.

Não a imaginemos como fenômeno recente. Mentira sempre existiu. Mentir faz parte da natureza humana. Uns mentem por vício; outros, por doença. Sobre a mentira Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) filosofou classificando-a sob duas espécies: a jactância (exagerar a verdade) e a ironia (diminuí-la). Lá, no Dicionário de Filosofia, de Nicola Abbagnano, Martins Fontes, 2007 (p. 764), também a referência da mentira dentro dos modernos antinomínia e paradoxos para traduzir ‘mentiroso’ (o que é): “afirmação de que se está mentindo; assim, quando se diz a verdade, mente-se, e quando se mente diz-se a verdade”. Não só o caro e paciente leitor entenderá a conclusão impossível. Também inúmeros deles, os filósofos.

Mas, em nosso meio e contemporaneidade a ‘conclusão’ vai se tornando válida e verossímel.  

Mas a mentira não ocupava tanto espaço como hoje. Tinha apenas o seu dia: 1º de abril. Um dia por ano. Não um dia qualquer. Hoje são todos os dias do ano. E vemo-la universal. Um dia que se impôs e se fez referência.

Descobre-se que o Catar tornou-se referência futebolística, tanto que sediará uma Copa do Mundo.

Comemora-se golpe contra governantes democraticamente eleitos como se revolução o fora e implantação de uma ditadura como avanço democrático.

Em homenagem ao dia a verdade que nele se encerra, sob égide da contradição filosófica: este é o país que sonhei!

Mas, insistem para que aprendamos a ver como mentira:

Que militares pagaram por seus crimes contra a humanidade na Argentina, no Chile e no Uruguai.

Que as centenas de crianças raptadas/retiradas dos assassinados pela ditadura argentina são uma criação das Avós da Praça de Mayo.

Que as mortes de Anísio Teixeira, Rubens Paiva, Stuart Angel dentre centenas são mentira.

Que a morte de políticos (inclusive brasileiros) sob a égide da Operação Condor não passam de invenção de derrotados.

Que o expurgo de Paulo Freire, Miguel Arraes, Celso Furtado e tantos outros não passou de uma viagem de férias.

Que as revelações de “Batismo de Sangue”, de Frei Beto, são apenas ficção.

Que mentem as mulheres que se disseram torturadas e estupradas nos porões da ditadura, inclusive aquelas que acusam os torturadores de ameaçar congelar seus bebês diante delas.

À luz de tanta verdade travestida de mentira, ou vice-versa, podemos afirmar que não é verdade que a meca de alguns pastores evangélicos não é o “ouro” do MEC.

Também não se definiu, se verdade ou mentira, que o inquilino do Alvorada e a valorosa turma fardada do ‘meu pirão’ não pretendem dar um golpe e que não mais teremos eleições em 2022 e um novo “Estado Novo” surgirá.

Não se lhes cobre (daqueles maus militares brasileiros) do que não estão sujeitos: cumprir as regras do Estado de Direito e respeitar as instituições democráticas. Em outros países (de governantes e populações rudes, ignorantes, analfabetos) cumpriram pena por seus crimes. Mas, não passavam de paisecos tipo Argentina, Uruguai e Chile.

Por aqui, se cometeram algum crime contra a Humanidade, foram absolvidos pelo STF (que eles querem fechar) que entendeu os crimes de tortura, ocultação de cadáveres ou torna-los cinza em crematórios clandestinos como típicos ‘crimes conexos’ alcançados pela anistia, ampla, geral e irrestrita.

Não, caro e paciente leitor, aquele primeiro dia de abril não somente é dia de golpe. Não é dia qualquer. É dia a dia de todos nós, furibundos viventes desta singular terra brasilis sem a quem apelar, acreditando que tudo dará certo, que o futuro nos pertence.

Afinal, a terra que conclui não ser impossível o que a Filosofia o diz.

Que acredita na verdade de que vivemos num país de instituições sólidas, com a democracia consolidada, com justiça social e distribuição de renda, com parcela de militares que não se imiscui na Ciência, na Pesquisa, respeita a Constituição e que não se reúne em suas sedes para discutir a possibilidade de golpe e implantação de uma nova ditadura militar para avançarmos na revolução democrática que só eles enxergam.



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