domingo, 27 de março de 2022

Onde vale tudo, um verdadeiro vale-tudo

 

Houve tempo em que o processo eleitoral alimentava-se de proposições. Vem sendo construído, no entanto, um distanciamento distinto de seu mister primordial. Ora nos parece ter se tornado um instante de oportunismos. Não mais a emissora de rádio ou de televisão ao lado dele como mecanismos de entendimentos e confluência na formação de juízos de valor em torno deste ou daquele candidato, deste ou daquele partido político. Atropelada pelo sistema de comunicação possível a qualquer um que porte um mísero celular  a proposição perde-se diante da realidade: vencer o pleito. Uma contradição então se impõe: não mais a proposição como instrumento para vencer o pleito, mas a vitória para implantar a proposição.

Um jogo no escuro  muito mais briga de foice e de facão no escuro  que perdeu a logicidade que manteve durante tanto tempo, e as circunstâncias exigiam, para tornar-se aventura pura e simplesmente.

A história político-eleitoral, à luz de certos resultados, comprova a afirmação acima, basta ver o nível de certos eleitos, alguns sem história alguma além do reduto que controlam (mesmo por meios espúrios e indecorosos) e que passaram a ocupar o panteão nacional. E nem falemos de outros métodos nada edificantes por trás de alguns resultados vitoriosos.

A ideia como eixo da proposição perdeu sentido. Em meio ao ácido diluidor do lugar nenhum a ideia tornou-se contrapeso insignificante. Que dizer do idealismo?

À falta de proposta vale tudo.

Qualquer pronunciamento sem pé e sem cabeça circula como se fora originada de gênios, de estadistas que ajudaram a construir a Ciência Política durante séculos. Dispensa o discurso equilibrado, teórico, em torno da realidade à qual submetida a sociedade como expressão do avanço civilizatório. Um “Deus nos acuda!”

O anedótico em Millôr Fernandes tornou-se lugar comum para uma parcela considerável da inteligentzia que ocupa a rede: “Às vezes você está discutindo com um imbecil... e ele também”. Páreo duro.

Não mais há ideologia elaborada, experimentada, conceituada, defendida em razão do que contém de aprimoramento para inspirar e corresponder aos destinatários a materialização de um sonho. Não há como imaginar-se, hoje, utopias, sonhos e quimeras a serem experimentados.

Qualquer sílaba elaborada torna-se de imediato ideia a ser reconhecida/imposta. E a rede leva adiante e a conveniência massifica, torna em gênio um idiota.

O país perdeu o bonde das inspirações. Não mais o tríduo básico desenvolvido há, pelo menos, dois séculos: esquerda, centro, direita. Basta ver o balaio de partidos políticos no Brasil. Destituídos de compromissos ideológicos, indefinidos enquanto meios de ações propositivo-administrativas, muitos dos que alcançaram registro nas últimas décadas nada mais são que feudos deste ou daquele grupo que conseguiu atender às exigências da Lei dos Partidos Políticos e obteve registro e direito ao um el dorado chamado Fundo Eleitoral. Para muitos um meio de renda, de sobrevivência financeiro-particular.

E nem falemos dos que se fundem, ou dos políticos que mudam de lado conforme o soar da cornucópia.

Em meio à ausência de talentos, a tanto desperdício subsiste como mote de campanha a agressão, o apoio ou desapoio sob o prisma do que eu gosto.

Sob esse particular aspecto, a qualidade de apoios começa a não ser considerada sob o peso do que representam as ideias, mas por ser simplesmente apoio. Recentemente o estágio de decadência chegou ao ponto de aplaudir quem utiliza o corpo (em todas as vertentes) para minimizar a representação feminina no concerto da sociedade. Para nós  que nos perdoem os que aplaudem, se nos leem  um estereótipo da banalização da mulher como objeto de consumo. 

Sim, caro e paciente leitor, presumindo o exercício da política sob patamares ideológicos entender ditos apoios sob a vertente aritmética (mais um) nega os mais comezinhos princípios exigidos para a conformação de nomes que efetivamente possam representar a sociedade no quesito administração pública. Não esquecer que hoje vivemos o resultado de tão lamentável experiência.

Estamos naquela de pouco nos importar para a negação científica, a necessidade de entender e discutir as lutas de classe, muito menos tentar compreender (para superar) a alienação adredemente elaborada para garantir ao sistema a perenidade que nega o processo político, do qual o eleitoral é pedra angular.

Mas, a irracionalidade não fica escondida. Avança, avança, avança...

O que dizer de analistas de plantão avaliando pesquisas? Na Bahia uma singular expressão (perdoada pelo aforismo de Otávio Mangabeira), diante do crescimento apresentado em determinada pesquisa para um quase desconhecido tornado candidato ao governo quando vinculado ao candidato Lula saiu-se com a pérola de que sem a ‘vinculação’ quase não pontuava. Esqueceu-se (e a conveniência o ampara) de explicar a razão por que de seu candidato perder tantos votos quando algum dele adversário vinculado está a Lula.

Detalhe que esta turma esbaldou-se citando FHC como seu apoiador quando se tornou imbatível no imediato do sucesso do Plano Real, hoje restado apenas pela moeda que originou, porque nada mais além disso, não fora algumas configurações de fraude no uso de seu sucesso, tanto que (por falta da imperativa e gradativa desvalorização do câmbio, que a realidade exigia) mantido o foi para assegurar a reeleição de FHC e no imediato despencou levando o Brasil a viver das migalhas oferecidas pelo FMI propostas em troca das ‘reformas’ neoliberais traduzíveis em privatizações, privatizações e mais privatizações.

E estamos diante de um processo eleitoral vivenciado sob a égide de muita mentira, pouca verdade... E, para não perder o mote de indecorosa tradição, bundas balançando.

Não estão na mesa dos debates a discussão de proposições, mas as arrumações. E aplausos para qualquer medíocre por haver apoiado este ou aquele nome.

Como registramos anteriormente à falta de proposta vale tudo. Que nos alcança com cara de um verdadeiro vale-tudo.


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