domingo, 15 de dezembro de 2019

Difícil é entender


Temos buscado entender o que ocorre com nossa gente, nosso país e suas instituições. Perseguindo compreensão para o que consideramos absurdos praticados à luz de postulados civilizatórios. A razão por que nos distanciamos de tanto de evolução ocorrida nesta Humanidade em duas/três centenas de anos de existência se consideramos a sua dimensão homo sapiens sapiens como estágio que se lhe atribui de racionalidade, de capacidade de pensar, de refletir e de se comunicar.

Intriga o fato de percebermos em parcela da sociedade brasileira uma racionalidade de zumbis e mortos-vivos a partir de certa informação repetida a inibir quase inteiramente a capacidade de analisar, de refletir, de dialetizar.

Muitos os fatores, certamente. Afinal, a conformação de uma sociedade não se materializa de um instante para outro. O próprio inconsciente – como um código apriorístico definidor do habituar-se a algo como a um som ou a um ritmo – sedimentado está no alicerce que o desenvolveu no curso de décadas ou séculos, se nos aproveitamos de Carl Jung e seu ‘inconsciente coletivo’. O que uma sociedade reproduz se fez construir durante sua existência, aliada às influências absorvidas. A brasileira no curso de 500 anos. 

Quando aquele sobrinho de Sigmund Freud, nos Estados Unidos, abriu na década de 20 do século passado os caminhos da manipulação das massas, nada mais fez que metodologizar algo que de certa forma se fazia presente na concepção da fé e seus dogmas em nível antepassado. Apenas o promoveu para corresponder aos interesses de uma coisa que hoje se denomina deus mercado, onde o consumismo (entendido aqui como o desenfreado uso do que não seja necessário à sobrevivência) – e o Estado disso se apropriou ou se deixou cooptar – se tornou a pedra de toque.

A manipulação – como instrumento de “controle dos hábitos e opiniões” – tornou-se a pedra angular não somente da atividade negocial (produção, distribuição e consumo) mas também daquele “governo invisível” a que se refere Edward Barnays, teorizando a partir das pesquisas do tio.

Em “Propaganda”, Barnays declina:

“A manipulação consciente e inteligente dos hábitos e opiniões organizados das massas é um elemento importante na sociedade democrática. Aqueles que manipulam esse mecanismo invisível da sociedade constituem um governo invisível que é o verdadeiro poder dominante de qualquer país. Somos governados, nossas mentes são moldadas, nossos gostos são formados, nossas idéias são sugeridas, em grande parte por homens dos quais nunca ouvimos falar […] em quase todos os atos de nossas vidas diárias, seja na esfera da política ou dos negócios, em nossa conduta social ou em nossa vida, pensamento ético, somos dominados por um número relativamente pequeno de pessoas […] que entendem os processos mentais e os padrões sociais das massas. São eles que puxam os fios que controlam a mente do público, que aproveitam as velhas forças sociais e criam novas maneiras de ligar e guiar o mundo”.

Claro – assim o vemos – que a afirmação de tudo isso ser “importante na sociedade democrática” nada tem de contribuição para a Democracia, mas de quem a manipule para corresponder aos seus interesses.

Na esteira das observações acima postas nos defrontamos no Oráculo de Delfos diante da angustiante e milenar indagação, pautada na mais primeva pretensão filosófica: Por quê?

Certamente cansa utilizar dos meios de que dispomos para explicar. Mas não é difícil. Difícil é entender.

“Os homens são em grande parte movidos por motivos que eles escondem de si mesmos” – afirma-o Barnays. 

Eis o nó górdio desatado para compreender esta terra brasilis e sua gente. 

Jessé Souza vê no racismo elemento causal do muito que nos acontece:

 “Estamos em uma sociedade racista que não se vê, que não se critica como tal”. [...] Pessoas que estão a favor da injustiça, do ódio, da perseguição, a favor da própria destruição do patrimônio nacional que vai fazê-las perder oportunidades, a apoiar um governo que não investe em ciência. É esse racismo, essa necessidade de se sentir superior a alguém


Naturalmente, uma postura pequeno-burguesa há de alimentar tais egos pautada na exclusão do outro como fenômeno capaz de me afirmar superior, afastando a solidariedade (calor universal) como elemento catalisador de esperança e melhoria da coletividade. “Eu” sem o “outro” serei melhor. O que o “outro” tenha que me sirva dele me aproprio, não importa o meio de que me utilize, seja imagem ou força de trabalho.

Na esteira disso tudo a academia a legitimar com seus instrumentos de formação, informação e pesquisa os que a buscam como fonte do conhecimento em essência. E que se tornou apêndice e instrumento de controle dos “hábitos e opiniões”.

A propósito do universo jurídico, Lênio Streck: 

“Sempre disse e repito o que Dworkin já dizia em seus escritos sobre desobediência civil. É um disparate a ideia de que o Direito é o que o Judiciário diz que é. O ponto é que legisladores também não podem dizer coisa sobre qualquer coisa.

Ora, o Direito não é um amontoado de leis e precedentes aleatórios. O Direito é um todo coerente. Há um ordenamento, há uma tradição, há princípios que sustentam tudo isso. Tudo isso deve ser respeitado. O legislador tem o importante papel a cumprir; mas não pode dizer que ovos são caixas de ovos.”

Juntemos as pontas – diante do dito por Lênio Streck: Judiciário e legisladores no Brasil tornaram-se peça uniforme – cada um no seu mister – de dizer que “ovos são caixa de ovos”. 

Certo é que não lhes faltam os meios elaborados por Edward Barclays para nos dizerem/convencerem que estão certos, que a terra é plana e os que a sabem redonda são loucos.

Partindo todos eles de uma premissa errônea – de que é a lei, e não o Direito, o instrumento de promover Justiça – estão a tornar vontades, interesses e caprichos na fonte das mazelas todas por que passamos. Aquela lei que aprovam em inteira divergência com o interesse da sociedade passa a ser dogma de fé e sua aplicação a solução para tudo porque é lei. 

E aí entra a academia: analisa a lei e não o Direito que deveria norteá-la. Dela afasta os interesses que a fazem existir. E assim, o legislador se exprime, o Judiciário corresponde e a academia os legitima passivamente.

Não fujamos da realidade: escondemos de nós mesmos os motivos que efetivamente nos movem. Porque são espúrios e destruidores; desumanos e excludentes. Natural – não há como descurar – que sejamos dirigidos, legislados/representados e julgados por essa gente.

Não caro leitor. Difícil não é debulhar o por que de tudo isso. Difícil é entender que a exclusão e o patrimonialismo sejam aplaudidos por quem por eles é prejudicado porque tornou-se lei. Com aplausos da meritocracia doentia que a toma como dogma de fé.

Uma parcela a tudo aplaude, sim. Mas, mesmo que essa parcela seja tomada como vítima da manipulação de que trata Edward Barclays ela é o espelho do que somos. Até porque nós outros não estamos a enfrentá-la.

Em nível de academia  que o digam os cursos jurídicos, por exemplo  tudo está conforme. Esqueçamos a história do Homem e da Humanidade, tradições e princípios. Basta aplicar o método.


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