domingo, 31 de maio de 2020

Duas sílabas no Brasil sufocado

Dedicamos este dominical aos milhões de Ruy do Carmo Póvoas.

Amparamo-nos nas decepções. Estão elas no curso das horas diárias. Em escalas distintas – às vezes diversas – mas presentes, ferindo, incomodando como tumor latejando.

Postagem no facebook de um respeitado mestre matura reflexões neste escriba de província:

Amigos e Amigas

Vivemos tempos difíceis. As redes sociais se tornaram uma arena onde galopam as ideias mais absurdas. Para além disso, pessoas que sempre se estimaram, se consideraram, de repente se descobrem tão antagônicos que os pilares da amizade ficam estremecidos.

A essa altura da minha vida, perder ou dilacerar uma amizade será impossível recuperar, tendo em vista que já estou na última idade.

Não quero me desfazer de amizades. Conforme escreveu Jorge Amado a amizade é o sal da vida.

Assim, por estratégia, vou me ausentar por um tempo das redes sociais, a partir justamente deste momento.

Confesso que sentirei falta dos dizeres de muitos e muitas de vocês. Mas na ordem natural das coisas, e na vida dos humanos, tudo tem um tempo adequado para acontecer.

Grande abraço, e até mais.

Ruy Póvoas

Eis o que vivemos: tempos difíceis, tempos muito difíceis. Que levam a lucidez à renúncia da comunicação social para que não perca amizades. 

É o que expressa o professor Ruy do Carmo Póvoas, reverenciado e referenciado pesquisador da cultura afro, poeta e escritor de mancheia.

Eis a revelação do ponto a que chegamos. De tempos nebulosos expressados por mentes vazias.

Muito triste descobrirmos que aquele tão próximo a nós, respeitado, considerado parceiro, amigo de prosa e bate-papo não mais nos reconhece ou nos respeita quando defendemos nosso ponto de vista, porque não admite conviver com a diversidade.

Muito triste descobrirmos que tantos que imaginávamos integrantes da Humanidade trabalham contra ela.

Muito triste evitar para não ampliar novos reconhecimentos centrados na estupidez mais estúpida.

Muito triste descobrir que ausentar-se se torna única saída para evitar desfazimento de amizades.

Muito triste – muito triste, mesmo – saber que tais personas estão por aí disseminando ódio e inimizade sem justificativa alguma, defendendo uma “supremacia” em nada fundada, a não ser na exclusão pura e simples do outro que não pense o que e como pensa.

Não bastasse, em meio a tantas decepções nos descobrimos diante de duas sílabas de palavras chamadas ao palco: MI-LI. Em uma, para militares; em outra, para milícias; uma, protegida pela lei; outra, sobraçando a marginalidade. 

A primeira, corporação à qual incumbe a defesa da soberania e das instituições republicanas (estatuídas na Constituição).

A segunda, inserida inclusive no imaginário de parte daquela e levada à termo por quem deveria ser a ela contrário, passou a ocupar espaço nas redes digitais difundindo o ódio ao outro que não comungue com seu ‘pensamento único’ (ferindo a Constituição). Que se veste de camisas e tochas e se arma para eternizar-se e ocupar o Estado criando um ‘estado’ dentro do país (prenhe de bolsões de alienígenas deserdados), marchando como Ku Klux Klan, ferindo de morte uma democracia em estertores. Que encontra mentor em quem não deveria sê-lo por dever de ofício/função. Estarrecendo homens dignos como o professor Ruy do Carmo Póvoas.

Eis o país em que vivemos. Que nem mais imagem tem no exterior e vê o chefe da nação como moleque de recado de outra nação, encantado como ninja e a declarar publicamente seu amor por quem a dirige, que tornou esta terra brasilis no país em conflito, jogando com vocábulos que começam com as mesmas duas sílabas para ver o que acontece.

Enquanto a humilhação ocupa o vértice de uma pirâmide construída sobre os restos de um país que até recentemente sentava ao lado dos grandes da terra e hoje é motivo de escárnio, tudo – até aqui – caminha sob o silêncio dos que têm a lucidez como bússola.

Silêncio atropelado nas redes sociais que se tornaram arena para galope de ideias absurdas, criando entre pessoas que sempre se estimaram e se consideraram um  antagonismo digno do Coliseu, onde lançados às feras e aos gladiadores os pilares da amizade  e da fraternidade.

Como contraponto um outro silêncio, dos 30 mil mortos, que se multiplicarão sob a égide de profecia apocalíptica, no país sufocado, como aqueloutro...

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