domingo, 18 de outubro de 2020

Quando a interpretação leva o Direito à sepultura

Percebe-o o leitor deste escriba de província que o seu escrito não busca refletir o fato em essência, mas como visto por tantos que a ele têm acesso. No caso particular a visão especialmente da imprensa e de agentes públicos diante dele.

Não nos debruçaremos  para evitar perda de tempo  com o caso da inovação no transporte de dinheiro. Afinal, uma singular forma de aprofundamento por 'vias naturais' aos tempos e costumes vigentes, cuidando-se de evitar o cheiro exalado da contagem das notas.

Singular a lição desenrolada no curso desta semana que finda em torno de um habeas corpus concedido por um ministro do STF tendo por paciente um traficante.

Não cabe ao intérprete  o que obriga o aplicador  distinguir onde a lei não o faz. Quem nos diz não é o escriba, mas a consciência jurídica. Caso contrário para que a lei?

A história desta Civilização é o registro das conquistas alcançadas pela humanidade palmilhadas no correr dos séculos. No curso dos últimos cinco milênios instituições se materializaram e a fórmula de fazê-las conhecidas. A família não só sociologicamente se viu materializada como foram elaborados estatutos para defini-la e reconhece-la como instituição e os meios que a organização social  desaguada no Estado como poder de controle social  estabeleceu para sua proteção.

Instante houve em que a vida e a liberdade estiveram submetidos pura e simplesmente ao talante da força: o mais forte detinha o poder de matar ou segregar o indivíduo simplesmente por sê-lo. Na Era Moderna a vida e a liberdade alcançaram o reconhecimento institucional e, através de normas jurídicas, o Estado assegura o seu reconhecimento dentre os direitos universais como inerente à natureza do homem. Afinal, nasce o homem livre e legitima o Estado e suas instituições a assegurá-lo. Sendo a vida e a liberdade direitos naturais não há meio termo para reconhecê-los. Não estão eles submetidos aos ditames da lei humana, que rege os acordos e os contratos sociais. São aqueles direitos fundamentais, direitos em essência; fundam-se em princípios e não em regras.

Ainda que interesses em jogo levassem a Europa absolutista a negar reconhecimento aos povos que não estivessem sob o crivo da fé então professada tal circunstância (afastado o jogo dos interesses), não se sustenta à ideia da supremacia da vida e da liberdade como valores universais a serem reconhecidos e defendidos.   

Na Filosofia encontramos a premissa de que uma lei injusta não seria lei. Que dizer da interpretação?

Lei recente, de 2019, deu nova redação ao Art. 316, do Código de Processo Penal, que trata da revogação da prisão preventiva pela autoridade judicial, verbis:

Art. 316. O juiz poderá, de ofício ou a pedido das partes, revogar a prisão preventiva se, no correr da investigação ou do processo, verificar a falta de motivo para que ela subsista, bem como novamente decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem. (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)       

Por seu turno a mesma lei inseriu o Parágrafo Único, com a seguinte redação:

 

Parágrafo único. Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

De fácil compreensão que o parágrafo único buscou tão somente evitar que a prisão preventiva se torne (como vinha ocorrendo) em prisão definitiva ou para atender aos reclamos de magistrados e investigações policiais à cata de confissões/delações, quando diante da ausência de provas incriminadoras (o que também se tornou comum).

Atente-se para o fato da redação final do aludido parágrafo: “sob pena de tornar a prisão ilegal”, no caso de a cada 90 dias o juiz que a decretou não a renovar “mediante decisão fundamentada”, ainda que de ofício, ou seja, de sua iniciativa.

A celeuma causada não encontrará amparo em outro argumento que não seja o de negar validade a dispositivo legal. O que quer dizer: a lei existe, não a cumpro porque uma razão encontro para descumpri-la.

No caso concreto o magistrado que decretou a prisão simplesmente deixou de cumprir a lei e tal fato leva a que a prisão se torne ilegal.

Mas — aí o busílis em que se tornou o país — não se discute a eficácia do dispositivo legal, mas o fato isolado: um traficante etc. etc. etc. que foi beneficiado pela incúria do juiz que deixou de cumprir com seu dever funcional fixado em lei e deixou passar NOVENTA dias sem se manifestar pela prorrogação.

O ex-senador Roberto Requião, comentou em seu perfil: “[...] Uma lei que impede que uma prisão provisória se eternize sem processo, sem acusação, e se transforme em uma punição eterna, é justa e é boa. O MP não pediu a renovação, e o juiz cumpriu a lei".

Ainda que o ex-senador tenha se limitado a reconhecer na lei um avanço  e passamos ao largo do fato concreto, porque nos limitamos a compreender o que está dito (em lei) pelo legislador, nos vemos diante da balbúrdia em plenitude, de um ministro do STF conceder, o presidente desconsiderar e o plenário  ainda que criticando o presidente  negar o habeas corpus.

E a aí a baboseira mental, menos por consciência e mais por pressão midiática, leva a que esta pérola tenha sido levantada em nível de STF, no sentido de que a falta de revisão do decreto de prisão preventiva a cada 90 dias “não se qualifica como causa automática de sua revogação”. E mais embevecido o intérprete: “Para revogação da preventiva, o juiz deve fundamentar a decisão na insubsistência dos motivos que determinaram sua decretação. O juiz tem que dizer que os motivos não existem mais. A obrigação do juiz é motivar se revoga a preventiva, não é soltar imediatamente”...


Lindo e maravilhoso: a lei ao afirmar que o não cumprimento do ato de ofício do juiz torna a “prisão ilegal” não justificaria o deferimento de habeas corpus, remédio justamente voltado para amparar o paciente (acusado) diante de flagrante violação. Não cabendo analisar o fato, nem discutir a prova.

E para coroar a insanidade interpretativa cuidou o plenário do próprio STF de negar o habeas corpus fundado na gloriosa interpretação acima manifesta.

Simplesmente de que a violação à lei e a clareza redacional de que a prisão se torna ilegal não ensejam o reconhecimento por via de habeas corpus.

Claro que a gloriosa plateia que gargareja no palco da falência mental por que passa parcela significativa do Judiciário aplaudiu. E  como o fez o jornal O Globo em editorial – aproveitou a oportunidade para pedir que o Congresso viole a Constituição Federal  no capítulo das garantias fundamentais  e edite lei ordinária dizendo que a Carta Maior não vale e que a condenação em Segunda Instância se torne regra geral.

Naturalmente — se possível — explicitando que o ex-presidente Lula seja levado imediatamente à masmorra de Curitiba.

Estes os apedeutas que — à guisa de intérpretes — estão levando o Direito à sepultura. Porque para eles o Direito não o é por estar fixado na lei, mas no fato conforme o veja a mídia e as conveniências às quais servem.

Às calendas as conquistas da Civilização.

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Post scriptum: pondo nossa utilidade pública a serviço do estimado e paciente leitor recomendamos cautela aos que se utilizam dos dedos molhados na saliva para contar dinheiro em cédulas.

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