Aproveitando o que nos oferece a biblioteca particular encontramos em Vinicius de Moraes — Poesia Completa e Prosa (volume único), editado pela Nova Aguillar, em 1968 — uma peça que nos motivou a crônica “Outros tempos”, que consta do nosso Portal da Piedade (Via Litterarum, 2018). Diz o motivo que “O exercício da crônica” (pág. 509 da obra original) nele se materializava em sentar-se diante de sua máquina, acender o cigarro e olhar através da janela e buscar fundo em sua imaginação um fato qualquer, de preferência colhido no noticiário matutino, ou da véspera, em que com suas artimanhas particulares possa injetar um sangue novo.
Trilhamos no ‘exercício’ provinciano de situar
os tempos de distintos entre o cronicar de Vinicius e o deste escriba de
província, esparsados em torno de setenta anos, e tomamos o “sangue” em sua
literalidade, sob o viés de ‘novo’ como tratado nesta contemporaneidade aonde
norteia a (des)informação que ampara
o consumismo que aliena e concluíamos:
“Nossa resistência — utópica que seja! — talvez resida no texto de uma artéria aberta da qual se esvai o sangue Esperança.
Tantas as mazelas e os desencantos como leitura do cotidiano que — muito certamente — não escrevemos crônica, mas o laudo de uma hemodiálise”. (Pág. 13)
Verdade, caro e paciente leitor, que a
distância entre o romantismo que levava Vinicius de Moraes a escrever suas
crônicas e o que ensaiamos está a anos-luz. Os tempos não são somente distintos; os atuais queimam como ferro em brasa.
E assim folheamos o que nos chega como motivo.
20 novos brasileiros integram a relação de
bilionários; em meio à pandemia, de patrícios a além-mar, crescem no quesito
riqueza aqueles que constituem insignificativo punhado aritmético no planeta
que acolhe tantos bilhões de almas mas que concentra nas mãos destes poucos
mais da metade da riqueza produzida.
Ler sobre riquezas incomoda qualquer que pense humanisticamente, que deseje redução das desigualdades e — o mais imprescindível — que a fome desapareça.
No Brasil mais da metade da população já não tem garantia de comida em casa — afirma-o pesquisa veiculada na Istoédinheiro. Ou seja: não somente os que já se filiam ao infame número de miseráveis (27 milhões, triplicado em seis meses segundo o IBGE, via 247); também os que ainda fora dele estão perdendo empregos e desfazendo-se das escassas poupanças não têm assegurado o direito ao filho de comer um pedaço de pão.
De uns tempos para cá — em especial no Brasil a partir de 2016 — passamos a descrer na humanidade em nível de Civilização. Não podemos admitir progresso paralelo à miséria de milhões.
Espasmos de reação ocorrem aqui e ali: o estado
de Nova York deseja (!) aumentar impostos de pessoas com renda superior a US$ 1
milhão. Cremos que tal pretensão morra no nascedouro.
O status
quo que domina o planeta cunhou uma expressão para macular quem fale em
distribuição de renda, menos desigualdade: comunista. Mas comunismo para essa
gente é justamente não a doutrina que defenda o socialismo real (ainda utópico)
mas o que o sinonimize com um autoritarismo na linha stalinista.
O cristianismo primitivo, os socialdemocratas,
como os comunistas têm em comum a preocupação em relação aos pobres como
destinatários da miséria material e espiritual programada para o planeta. Mas,
como o disse Dom Hélder Câmara: “Quando dou comida aos pobres me chamam de
santo; quando pergunto por que são pobres me chamam de comunista”.
Em outra vertente nos deparamos com singulares diálogos e tratamentos com que se passaram a tratar Excelências encasteladas no STF (exemplo do que se perpetra em boa parte das cortes do país): um Advogado-Geral da União esquece do Direito amparado na Lei Maior do Estado de Direito ao qual cabe defender e se baseia na Bíblia para justificar seu ponto de vista(?!!!). O Procurador-Geral da República afirma que a fé “também salva vidas” (faltou quem perguntasse o que têm Malafaia, Edir Macedo, Valdomiro, Bispo Rodrigues e quejandos de contribuição no combate à pandemia). Uma das Excelências — diante do absurdo defendido por outrem — diz ter o indigitado chegado de Marte.
Sendo assunto de cada segundo cotidiano a
pandemia em sua versão Brasil do inquilino do Alvorada já vislumbra logo ali a
possibilidade de cinco mil mortes diárias (alerta do presidente do Butantan). A
fala começou a se tornar realidade na quinta-feira (8) quando o número de mortes alcançou
4.249.
Enquanto isso hospitais das Forças Armadas
deixam até 85% de leitos ociosos e não permitem que sirvam para atendimento a civis (247).
E por aí vamos! Este o ‘sangue’ de que
dispomos para escrever.
No mundo real um punhado debocha da
humanidade; um outro, encastelado por entre pilares dos palácios que os abriga,
perde o bom senso e nada mais nada menos traduz em deboche o que se tornaram
estes tempos.
Certo estamos que entre o mundo ideal e o
deboche estes tempos bizarros escolheram o último.
Ótimo texto
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