Lembranças da infância em Itororó: a
curiosidade do menino sertanejo fugado de uma terrível estiagem que assolava Monte
Alegre da Bahia (hoje Mairi) e atarantado com o vigor de tanto verde e tanta água
um dia conheceu a velha charqueada do Bandeira do Colônia. Toneis inteiros ou
meados substrato fervendo vísceras, mulheres limpando-as. No local do abate os
quartos das reses pendurados e ofertados à despostagem, ossos fazendo uma pilha
deles próximo. Em torno das ossadas recém limpas um punhado de crianças com
faquinhas, curtas (tipo quicé, do escritor paraibano José Américo de Almeida)
ou mesmo de tiras de flandres, afiadas, raspavam o que restava ainda pregado no
osso e punham, cada uma, no embornal que — como soube depois — seria levado
para casa para ajudar na refeição.
O estranho substrato para o manjar
causou espécie, porque tudo não passava de restos colados aqui e ali do que a
faca do hábil açougueiro não conseguira trazer junto às postas de chã de dentro
e de fora (que incluía o paulista e a picanha), alcatra, contrafilé, filé, as
dianteiras etc.
Nunca nos saiu da cabeça aquela cena.
Primeira lição para entender o quão representava a desigualdade social e
ausência de políticas de distribuição de renda do que viríamos a ler e
compreender nos anos futuros.
A pergunta, deste aquele instante,
nunca nos saiu da cabeça: por quê?
Uma capa do Jornal Extra para
corresponder ao título da matéria “A dor da fome” exibiu a corrida de
miseráveis em busca a restos de comida, ossos e carne rejeitados por supermercado
no Rio de Janeiro. Repercutiu no exterior onde o jornal britânico The Guardian
classificou as imagens como “de partir o coração”.
Aqui — nesta terra onde acontece tal estágio
barbárie — ninguém repercute
ou se incomoda. Ou enfrenta.
Sob essa vergonhosa vertente (é muito
difícil para um europeu encontrar justificativa para tal situação em um país
rico como o Brasil) vivenciamos no curso desta semana a singular discussão — a partir
dos donos do país — em torno
do que é melhor para o futuro. A referência se basta em imaginar o ‘novo’ como
paradigma da perfeição simplesmente porque é novo.
É o que diz o maioral do Grupo Itaú em entrevista ao Jornal O Globo, repercutida no 247: "O Lula foi um bom presidente. Seu
primeiro mandato manteve a política econômica bem apertada, a inflação baixa, o
Brasil cresceu”.
Ou
seja, foi um bom presidente, mas...
A Vale
do Rio Doce — caríssimo e paciente leitor —
distribui R$ 40 bilhões aos seus acionistas. (Perguntemos se algum deles anda ‘roendo’
osso!). Imaginamos que a responsável por desastres ambientais e centenas de
mortos já correspondeu às suas obrigações para com os prejudicados. Não!
Há dados que registram pelo menos 2
milhões de famílias ingressando no nível de extrema pobreza entre 2019 e o
presente instante. No curso seguinte ao golpe de 2016 o número alcançado em dezembro
de 2018 chegava a 12,7 milhões de famílias; em junho de 2021 a 14,7 milhões. Os
números, que representam a crueldade presente na distribuição de renda no país,
nos remetem a lembrar que em 2001 o percentual de famílias em estado de extrema
pobreza era — para o
Banco Mundial — de 13,6%
e fora reduzido para 4,9% em 2013.
A verdade histórica, comprovada e
posta à discussão não interessa se tal não corresponde aos ‘meus’ interesses,
os interesses dos ‘donos do poder’ (encômios para Raymundo Faoro).
Assim, para o banqueiro — ainda que reconheça em Lula um bom presidente, que, se eleito, "vai pegar o país em frangalhos" — distribuir renda, reduzir a fome e a desigualdade social, ampliar a oferta de emprego, reduzir o desemprego a patamares civilizados, fortalecer a indústria nacional não representa nada porque ‘precisa’ do novo que só há em sua mente e representa aquele que corresponda aos ‘meus’ interesses. Afinal, ‘não preciso raspar ossos’.
Para a Vale importa a alegria de seus
acionistas, que recebem o que deveria ter sido pago às famílias dos mortos e ao
Estado pelos prejuízos (alguns irreparáveis) ao Meio Ambiente.
São essas, caro e paciente leitor, as
pérolas que dominarão os próximos meses, até o resultado das eleições.
Conviveremos, novamente, com a ‘busca
do novo’. Tudo como antes no quartel de Abrantes. Afinal, o ‘velho’ tem mania
de querer olhar mais para os desfavorecidos que ainda precisam disputar o resto
preso nos ossos jogados fora. O ‘novo’ ideal é alguém como o atual inquilino do
Alvorada... bem envernizado. Para que não percebam que o ‘novo’ não tem nada além
de um ‘velho teimoso’ que insistem em colocar para atender à banca dos
interesses individuais.
Ora, vivemos mais uma fase em que os
donos da verdade, que manuseiam os meios de comunicação e de informação,
provarão que aspirina difere de ácido acetilsalicílico.
Porque enquanto a miséria alheia clama
aos céus há quem a queira permanente.
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