domingo, 1 de maio de 2022

O Creador desmoralizado pela criatura

 

Apegamo-nos neste instante textual em não reconhecer o que a contemporânea tradução dicionária entende como sinonímia plena e leva a constituir como única fonte verbal ‘criar’ para corresponder ao ‘creare’ do Latim, expressão de manifestação da essência absoluta, origem de tudo (Deus) e aquela que representa o originado da existência para outra existência. Compreender que, ainda que haja homens geniais, capazes de ‘crear’ pela abstração das ideias e conclusões não detêm eles a ‘essência’ de se constituírem origem de tudo.

Assim, Deus  origem e essência primordial é o ‘Creador’ do universo e de tudo o que nele há e o homem Sua mais expressiva criatura que, enquanto tal, “cria” no plano da existência que dela se origina: cria (cuida de) animais, cria (inventa) mecanismos e utilidades, cria (cozinha) pratos etc.

A quem atente tratar de uma relação entre o Ser do qual tudo se origina e aqueloutro dele originado melhor fará nominando o primeiro de creador e o segundo de criatura (capaz de criar nos limites de sua existência derivada).

No entanto, a ideia de fonte primeva, fonte de algo que dela se origina encontra no contemporâneo entendimento léxico o verbo criar para a tudo corresponder. Mas, há de ser entendido, sob o que aqui pretendemos, a dimensão deífica posta adiante como razão de existência.

Dito isso o que estimula a digressão para justificar o título reside no fato de  ainda que no plano da existência para a existência  existirem típicas figuras ou elementos que derivam da iniciativa ou postura de outro e que configuram a ideia do ‘crear’ em contraposição à criatura. Ainda que possa, de forma simplista, ser entendida a criatura como um objeto resultante da ‘criação’ no plano da existência, como nesta contemporaneidade de típica ‘creação’, que se dá por força do convencimento amparado na comunicação exaurida na repetição em torno de um determinado tema levando o homem comum a consumir, acreditar na ‘verdade’ transmitida, reconhecer valores que não o são etc. etc.

Ocupou parte do recente noticiário o fato de efetivação de um enfrentamento envolvendo instituições do Estado brasileiro, representadas no Poder Judiciário e do representante do Poder Executivo, em que uma decisão oriunda daquela foi questionada, com foros de impugnação, pelo titular da segunda. Como sabido, o atual inquilino do Alvorada, insatisfeito com uma sentença condenatória em relação a alguém próximo, utilizou-se de poder da graça ou indulto para fazer desaparecer a decisão (e seus efeitos), prolatada pelo STF.

Sobre o tema já tratamos dele sob outro ângulo (aqui). Mas ora nos atemos ao fato singular sob o prisma que abre este texto (“creador” e “criatura”; “crear” e “criar”), razão por que vemos no fato ou novela uma singularidade: quem hoje enfrenta o STF nada mais é aquele que foi (ainda que não diretamente) posto no alto cargo da nação por quem inviabilizou uma candidatura que fatal e irreversivelmente o derrotaria. Que, não fora a atuação consciente da Corte, muito provavelmente não teria alcançado o sucesso que veio a obter.

Nesse torreão uma sequência de atos concretos, elaborados e postos em prática através de seus membros (individual ou colegiadamente) o STF inviabilizou a candidatura imbatível do ex-presidente Lula em 2018, mesmo chegando ao absurdo de impedir sua manifestação de opinião em entrevistas ou de apoio ao candidato do partido, com decisão da lavra do ministro Luiz Fux (aquele do escândalo do título de Capitalização de Sílvio Santos, quando então relator da matéria no STJ) que cuidou de aplicar uma típica ‘lei do silêncio’ inexistente no ordenamento jurídico pátrio.

Tudo começa, ainda antes do impeachment (sem crime) contra a presidente Dilma Rousseff, quando o ministro Gilmar Mendes interferiu na nomeação do ex-presidente Lula para a Casa Civil e ‘desnomeou-o’. Em andamento um processo que se voltava para apurar atos de corrupção (histórica) na Petrobrás e das investidas do juiz Sérgio Moro contra o ex-presidente Lula (tudo hoje desfeito e demonstrado que não passava de uso judiciário para obter resultados político-eleitorais envolvendo o ex-presidente, hoje até mesmo declarado perseguido pelo magistrado como o diz decisão da Comissão de Direitos Humanos da ONU). Em apoio ao pretendido  e como não havia tempo para que uma sentença transitasse em julgado para produzir efeitos para 2018  o ‘creador’ STF de logo entendeu que a condenação em 2ª instância (julgamento por um tribunal regional) justificaria a prisão, ainda que tal decisão violasse frontalmente a Constituição da República.

Na ameaça de instauração do processo de impeachment ‘acreditou’ a então presidente Dilma Rousseff que vivia dentro de um Estado Democrático de Direito, aonde o respeito à lei é sustentação primacial, impetrou Mandado de Segurança junto ao STF denunciando a inexistência de crime de responsabilidade e, portanto, de justa causa para o processo legislativo de impeachment. A ministra Rosa Weber, do STF, simplesmente se negou a se manifestar no prazo que a lei lhe determinava (de 48 horas), fazendo-o cerca de quatro anos depois quando o Mandado de Segurança perdera o objeto, uma vez que o impeachment se consumara, como preconizado no diálogo de Sérgio Machado e Romero Jucá: “...com Supremo, com tudo”.

No curso da Lava jato, no particular de Lula os atos arbitrários determinados por Moro (incluindo uma condução coercitiva, busca e apreensão no imóvel particular do ex-presidente, inclusive de um celular do neto (criança de tenra idade) tudo foi legitimado pelo STF.

Quando questionado o STF sobre a incompetência da justiça de Curitiba para julgar o ex-presidente (fato comprovado interna e externamente) o ministro Edson Fachin cuidou também de ‘sentar no processo’ somente reconhecendo-a quatro anos depois.

Cuidando o Poder Judiciário, capitaneado pelo STF, de pedregulhar e esburacar a estrada por onde pretendia passar o ex-presidente nada mais fez que pavimentar o caminho largo e cada vez mais alargado para eleger o atual inquilino do Alvorada, sua mais perfeita criatura.

A reação do presidente contra a decisão do STF tecnicamente é estapafúrdia diante das razões fáticas, materializando vontade própria de enfrentar a decisão do STF. Uma postura que não fica no plano do enfrentamento em si, mas da plena desmoralização do STF (poder judicante) como Poder da República ao ser enfrentado por outro Poder, o Executivo (não judicante).

Considerando o fato concreto de que a não participação de Lula como candidato nas eleições de 2018 viabilizou a eleição do atual inquilino do Alvorada àquela circunstância há de ser atribuída a sua vitória e não o que teria levado de propostas para o país durante a campanha, até mesmo porque se negou a participar de todo e qualquer debate em torno de projetos e propostas.

Por mais singular que possa parecer a atuação do Poder Judiciário, capitaneado por ações e omissões deliberadas a partir do STF, afastou do processo e do debate eleitoral o então imbatível candidato e escancarou a corrida para a eleição do atual mandatário, levado pela mão de Suas Excelências. Para tanto cumpriu até ‘ordem unida’ de general para que não julgasse habeas corpus em favor de Lula.

Exagero que possa parecer, a verdade crua e nua é esta: quem garantiu o resultado eleitoral em favor do atual inquilino do Alvorada foi o Supremo Tribunal Federal e a desmoralização impingida a ele (expressão máxima do Poder Judiciário) pelo presidente da república nada mais é do que a criatura se voltando contra o creador.


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