terça-feira, 2 de dezembro de 2025

Retornando aos poucos

Cá estamos retomando a busca por incomodar o estimado e paciente leitor. Algo temos escrito. E publicado em livro. No entanto, por razões que não conseguimos explicar, não levamos à publicação aquilo que nos zumbe na forma de crônicas, ensaios e poesia. Mas algo nos pede para retornar. E o fazemos explorando e abusando daqueles que leram e escreveram algo sobre este escriba de província.

Assim, como o fez o escritor e jornalista Antônio Lopes.

______

Em busca das palavras perdidas

Antônio Lopes *

    Inquieto e indignado, Adylson Machado é capaz de dissertar, desde que tenha auditório interessado, sobre variados temas. É um erudito, sem ofensas. A história, a filosofia, a literatura de ficção, a economia, os estudos de Direito e a degradada política partidária nacional formam sua agenda diária. Na rua, no ABC da Noite ou em sala de aula, a palavra, límpida, cortante e justiceira, é sua lança, brandida contra todas as formas de injustiça, mesmo que venham disfarçadas em moinhos de vento.

    Admitamos que, grosso modo, o romance é o ápice da produção ficcional, de culto difícil, às vezes doloroso, quase vedado a principiantes. Estes costumam ensaiar a memória, a crônica e o conto, antes do voo mais arrojado. Adylson, fiel ao seu modo desafiante de ser, logo enfrentou e venceu as armadilhas do romance, estreando com Amendoeiras de outono (Via Litterarum/2005), obra que surpreendeu positivamente quantos a leram.

    Ali, críticos atilados perceberam uma linguagem com nuances de Joyce ou tinturas de Proust, num bem-sucedido esforço de ligadura passado-presente pela via da palavra escrita. O autor imprime em seus trabalhos as pegadas do novo, sem ruptura com o passado, mas não se aprisiona ao saudosismo doentio ou ao romantismo piegas. Ainda que vagueie por pasárgadas e utopias, sua face de realista fantástico está sempre desnuda.

    Em verdade, trata-se de um artista que escreve como quem vive: sua tessitura ficcional sabe a Julio Cortázar, num combate diuturno contra o que está posto: há de se mudar a escrita e o mundo, parece nos dizer. Nesse anseio, ele, a poder de construções alicerçadas na crueldade dos dias sujos e no ideal espaço da poesia, se propõe a desconstruir velhos moldes, para dar lugar ao provir – preservando o que, por ventura, deva ser preservado.

    Em O cinza e o silêncio, ora dado a lume, ele comprova essa suspeição de inquietude destruidora (no sentido cortazariano da palavra), e inverte os termos da equação: do romance, foi ao conto (não o contrário), transgredindo a práxis consuetudinária. O cinza... é uma coletânea de apenas oito estórias curtas, sendo que a mais densa (O queiro) tem treze páginas, algo como frasco pequeno para perfume de alta qualidade – se mereço clemência pelo lugar-comum.

    É escritura engagée: denúncia das desigualdades sociais (sobretudo num meio rural com relações vassalo-suserano), expressões regionais com sabor de coisa antiga e boa (certamente não sabidas dos moradores do asfalto), em moldura de poesia em prosa – como a tornar menos cruel a vida dos seus anti-heróis. Isto lembra Amendoeiras? Felizmente, sim – do contrário não teríamos um estilo. E temos.

    Um conto deve ser fechado, unir início e fim, de sorte que a impressão inicial seja confirmada no fecho – adverte o mestre Hélio Pólvora, divulgando valiosa lição de Tchekhov: “Se no primeiro capítulo aparecer uma espingarda, mais adiante alguém terá de dispará-la.” Nesse particular, agradou-me sobremaneira uma navalha que surge em Carrilhões e que, no fecho, terá papel decisivo.

    Teria sido Mallarmé quem afirmou estar a poesia nas palavras, não nas ideias e sentimentos, mesmo que sejam destes, os sentimentos, que vêm ao poeta as palavras justas. Adylson maneja as palavras, sugeridas pela força subliminar do seu espírito de artista, como verdadeiro poeta.

    Músico, ele lapida o texto como se anotasse melodia em pentagrama, o que resulta numa escrita cuidadosa, limpa, detalhista, sonora, colorida: começa com um acorde, muda de modo, vai do maior ao menor (ou vice-versa), improvisa, voa, viaja, retoma o tema e encerra no acorde inicial, às vezes discreto, às vezes apoteótico.

    Além de Carrilhões, é imperioso destacar Espelho Partido, pelo seu ambiente de tragédia grega, ambos os contos dignos de antologia. Anote-se ainda um sujeito que “vestia arrebóis e alvoradas” (em Sísifo, uma estória que soa com sutis citações de Stendhal), o suave erotismo de Encontro, outra vez o trágico, com punição para o pecado. O queiro (que nos dá a deliciosa expressão “a viúva a cântaros, diariamente”) é sobre um personagem esfacelado, posto atônito diante do mundo, angustiado, esmagado pelo peso dos dias iguais que se sucedem, talvez qualquer um de nós. Essa rotina é como um queiro inflamado (ou dentiqueiro, ciso ou queixeiro) – nos lembrando que pior do que dor de dente, só dor de amor... E se mais não aponto é por não querer tirar do leitor o prazer das descobertas.

    Adylson Machado, se falamos dessa coisa um tanto vaga, aqui chamada arbitrariamente de “literatura do sertão” (seja no romance ou na estória de mais curto fôlego), lembra Graciliano Ramos, tangencia Guimarães Rosa e assenta-se ao lado de Francisco J. C. Dantas. Não é pouco.

* Jornalista

 

 


domingo, 13 de abril de 2025

Anistia destes tempos

 

A voz corrente para uma corrente da sociedade: anistia. Para alguns eleitos, naturalmente.

Aprende, ao vivo e em cores, o  caro e paciente leitor que não está em pauta a “anistia”, mas a narrativa que dela se faz para a apropriação de interesses em jogo.

Diversamente de outras anistias concedidas a pretendida tem singularidade muito própria à terra brasilis, o que – muito apropriadamente – nos leva a defini-la como a ‘nova’ jabuticaba brasileira: anistiar quem nem mesmo foi condenado. 

E para demonstrar que em nível de jabuticaba o Brasil é ímpar – e inova sob seara surrealista – também se busca que nem o poder estatal incumbido de apurar e julgar exerça o que lhe determina a Constituição.

Como os pretendidos à anistia são um punhado de coitadinhos poderíamos – aproveitando a narrativa que ocupa o noticiário – propor estendê-la de forma explícita e nominada aos deputados que subscrevem o projeto.

Ah! E como há intimidade entre os interesses também incluir os que estão sob investigação por desvio de dinheiro do Orçamento Público (parte de 200 bilhões de reais nos últimos quatro anos).

E como corre em meio a pedidos de anistia a sofrência de intestinos sensíveis sob observação não custa reconhecer tudo como tempero de um mesmo cardápio que naquele órgão se metaboliza.

Cuidemos, por precaução, de tamparmos nossas sensíveis narinas, que não podem ser alvo de anistia!


domingo, 6 de abril de 2025

O que esperar de tão estranhos tempos

 

Cumpre-nos chamar a atenção do caro e estimado leitor que por estas linhas não serão traçados caminhos que se sustentam em convicções. Ou seja, não são propostas para levantar balões em temas que embasam certezas em cada um, tais como carnaval, religião, política, futebol. Ainda que possa alguma interpretação avançar ou se apropriar deste ou daquele “certificado”.

No lapso temporal de 10 anos temos que os últimos quatro definiram – ou estão a definir – uma nova conformação para o país, para sua gente. Como reflexo mundial, mas aqui com sinais muito específicos. O principal deles o de que inexiste – desde tempos pretéritos – uma proposta de país que envolva todos os espectros que o constituem. Assim, mais e mais estamos a confirmar a visão de Jessé Souza de que a “elite” de que dispomos voltada está para o atraso. Que o diga a ‘conveniente’ extinção da escravatura formal e o seu imediato.  

Desde muito perdemos – o que parece definitivo – a capacidade de reconhecer o diálogo, a conversa, a troca de ideias como instrumento natural à civilização. De reconhecer as diferenças e os diferentes como peças de um mesmo tabuleiro.

Não vivemos o fato, mas a narrativa. E no destinatário final (o leitor, o cidadão, o ouvinte, o telespectador) prevalece o que lhe chega e como chega: narrativa.

Inelutável que no imediato do processo eleitoral de 2022 o país vivenciou duas situações que hoje mais esclarecidas estão: a) um avanço de setores conservadores na composição do Congresso; b) um golpe de Estado posto em andamento.

O avanço do conservadorismo no Congresso não se pautou no convencimento do eleitor a reconhece-lo como sua “representação” (basta ver algumas figuras que lá estão!). Sabe-se que parcela considerável se alimentou de um escândalo chamado “emendas” (em suas diferentes espécies) que municiou redutos eleitorais asseguradores de eleição deste ou daquele ‘aliado’ do cacique. Simplesmente dinheiro público desviado escancaradamente para favorecer grotões alimentando a secular compra de votos com um volume de recursos jamais visto. Um outro, de um messianismo à brasileira, o único que vê o sionismo israelense como manifestação de Jesus Cristo!

Do golpe de Estado nada mais há a ser dito: provado e comprovado; com responsabilidades definidas. Até mesmo confessado explicitamente.

O que estranha este escriba de província não é o que aconteceu de então, mas o que não aconteceu desde então. No primeiro caso, o ensaio de enfrentamento pelo Poder Judiciário de buscar a “transparência” que deve ser exigida de dinheiro do povo já começa a ser levado em banho-maria, cozendo o galo em fogo lento até que a “narrativa” possa transformar o fato em mentira; no segundo, lá se vão três anos do golpe e ainda discutido pela "narrativa" como se houvesse dúvida em torno de sua elaboração e início de execução.

Nenhuma dúvida de que o andar da carruagem demonstra o quão frágeis são os caminhos de que dispomos. Tais caminhos têm uma tradução em Política: instituições. Ou seja, a construção histórica da civilização para alcançar e manter o que alcançou.

Mas, não duvide e estimado leitor: não mais são as instituições que orientam a sociedade, mas a narrativa que lhe é oferecida/imposta por quem a controla (a narrativa).

O mundo – o Brasil em particular – está lançando às calendas as conquistas civilizatórias que desaguaram no edifício das instituições simplesmente levando-as à covardia. Ao ponto de nem mesmo mais se reconhecerem que existem como pilares da sociedade.

Diante de instituições acovardadas talvez não haja o que esperar de tão estranhos tempos.


domingo, 30 de março de 2025

Revendo o futuro nas águas de março

 

Eis-nos a quixotear em torno dos moinhos deste nosso tempo. Há meses trilhando caminhos de encontro, distorcidos da realidade compreendida no curso das décadas deste existir efêmero. Com dificuldade para aceitar que o sistema de controle é o mesmo e que todo o avanço científico tão só avança tecnicamente nestes hodiernos tempos em aprofundada proporção inversa aos conceitos de civilização e humanidade.

Relia nossa última postagem. De lá para cá aprofundaram-se os conflitos internos, agravaram-se os externos. E sob a égide da modernidade, do acesso instantâneo ao que acontece aqui e alhures, McLuhan mais se fez atual.

Destaca-se a cada dia a impropriedade da Verdade, superada pela supremacia do dizer e pensar de cada um. A individualidade assomou poderes inimagináveis. E a Verdade aristotélica a cada um destes instantes mais se torna inaceitável e se faz mentira.

Na esteira de tais pérolas o genocídio cometido sobre o povo palestino (sob aplausos de parcela disto que chamam ‘civilização’) está sendo praticado por uma espécie de “sionismo cristão” haja vista os que divulgam e incensam o povo que matou profetas, inclusive Jesus Cristo, como exemplo de país cristão. E não falta quem aplauda a proposta de matar idosos, mulheres, crianças e expulsar os que restarem (quanta magnanimidade!) para que seja dado espaço a uma nova “Riviera” no Mediterrâneo oriental.

Do bom dia a cavalo, rapsódia húngara e quejando tais eis-nos ano depois retomando o tomar o tempo alheio para lembrar que, até que enfim, aquela crítica aos “órgãos de comunicação do Governo” incumbidos de falar em nome dele parece ter sido ouvida (oh! vaidade!).

Tempo também de confirmar que neste estágio de negação da Verdade o coração conveniente esquece a razão. E quem bateu, ameaçou, pretendeu matar descobre que chorar é o melhor dos argumentos. A convencer até mesmo quem se arvora de pautar-se no racional sob a égide de uma toga de um tribunal superior. Mas, tudo pode mudar desde que quem alimente o racional esteja a expressar a “sua” conveniência.

Vivemos o fato singular, de que na disputa entre a Verdade e a Mentira vence(rá?) quem melhor domine e articule o meio para a narrativa. Demonstrando que a negra realidade que se põe diante do olhar que vê é engano ótico de quem não enxergar o azul celeste que não existe, mas propagado.

Era de tudo digitalizar. Mais fácil. Aceito como dogma de fé. Para que pensar, ler para aprender a raciocinar, compor uma nova realidade se tudo, evidentemente mais fácil e imediato, chega pronto e acabado? E dispensando questionamentos porque imediato o resultado!

E descobre a mesma Ciência que a isso chegou que nós, os destinatários de todo o avanço por ela propagado, já estamos na primeira nova geração reduzindo o QI, porque nosso cérebro está sendo reconfigurado, limitado à digitalização como o deus desta contemporaneidade e futuro que dela emana. A produtividade não mais exige atenção; apenas a mecânica da digitalização. Mas isso é coisa desta neurociência orientada por alguns negacionistas etc. etc. etc. inimigos do progresso etc. etc. etc.

E aqui estamos: revendo o futuro. Porque nele somente o avanço tecnológico manuseando o retrocesso civilizatório ao passado mais primitivo a que possamos alcançar.

Ultrapassando as águas de março, imortalizadas na canção elaborada em um tempo em que se pensava e a criação frutificava do pensar, caminhamos para o mês de abril. Que de imediato anuncia o primeiro dia como o “da mentira”. Profético enunciado em calendário de uma época que vai abarcando o futuro em busca do passado que pensávamos haver superado.