Cá estamos retomando a busca por incomodar o estimado e paciente leitor. Algo temos escrito. E publicado em livro. No entanto, por razões que não conseguimos explicar, não levamos à publicação aquilo que nos zumbe na forma de crônicas, ensaios e poesia. Mas algo nos pede para retornar. E o fazemos explorando e abusando daqueles que leram e escreveram algo sobre este escriba de província.
Assim, como o fez o escritor e jornalista Antônio Lopes.
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Em busca das
palavras perdidas
Antônio Lopes *
Inquieto e indignado, Adylson Machado é capaz de dissertar, desde
que tenha auditório interessado, sobre variados temas. É um erudito, sem
ofensas. A história, a filosofia, a literatura de ficção, a economia, os
estudos de Direito e a degradada política partidária nacional formam sua agenda
diária. Na rua, no ABC da Noite ou em
sala de aula, a palavra, límpida, cortante e justiceira, é sua lança, brandida
contra todas as formas de injustiça, mesmo que venham disfarçadas em moinhos de
vento.
Admitamos que, grosso modo, o romance é o ápice da produção
ficcional, de culto difícil, às vezes doloroso, quase vedado a principiantes.
Estes costumam ensaiar a memória, a crônica e o conto, antes do voo mais
arrojado. Adylson, fiel ao seu modo desafiante de ser, logo enfrentou e venceu
as armadilhas do romance, estreando com Amendoeiras
de outono (Via Litterarum/2005), obra que surpreendeu positivamente quantos
a leram.
Ali, críticos atilados perceberam uma linguagem com nuances de
Joyce ou tinturas de Proust, num bem-sucedido esforço de ligadura
passado-presente pela via da palavra escrita. O autor imprime em seus trabalhos
as pegadas do novo, sem ruptura com o passado, mas não se aprisiona ao
saudosismo doentio ou ao romantismo piegas. Ainda que vagueie por pasárgadas e
utopias, sua face de realista fantástico está sempre desnuda.
Em verdade, trata-se de um artista que escreve como quem vive: sua
tessitura ficcional sabe a Julio Cortázar, num combate diuturno contra o que
está posto: há de se mudar a escrita e o mundo, parece nos dizer. Nesse anseio,
ele, a poder de construções alicerçadas na crueldade dos dias sujos e no ideal
espaço da poesia, se propõe a desconstruir velhos moldes, para dar lugar ao
provir – preservando o que, por ventura, deva ser preservado.
Em O cinza e o silêncio,
ora dado a lume, ele comprova essa suspeição de inquietude destruidora (no
sentido cortazariano da palavra), e inverte os termos da equação: do romance,
foi ao conto (não o contrário), transgredindo a práxis consuetudinária. O cinza... é uma coletânea de apenas
oito estórias curtas, sendo que a mais densa (O queiro) tem treze páginas, algo
como frasco pequeno para perfume de alta qualidade – se mereço clemência pelo
lugar-comum.
É escritura engagée:
denúncia das desigualdades sociais (sobretudo num meio rural com relações
vassalo-suserano), expressões regionais com sabor de coisa antiga e boa
(certamente não sabidas dos moradores do asfalto), em moldura de poesia em
prosa – como a tornar menos cruel a vida dos seus anti-heróis. Isto lembra
Amendoeiras? Felizmente, sim – do contrário não teríamos um estilo. E temos.
Um conto deve ser fechado, unir início e fim, de sorte que a
impressão inicial seja confirmada no fecho – adverte o mestre Hélio Pólvora,
divulgando valiosa lição de Tchekhov: “Se no primeiro capítulo aparecer uma
espingarda, mais adiante alguém terá de dispará-la.” Nesse particular,
agradou-me sobremaneira uma navalha que surge em Carrilhões e que, no fecho,
terá papel decisivo.
Teria sido Mallarmé quem afirmou estar a poesia nas palavras, não
nas ideias e sentimentos, mesmo que sejam destes, os sentimentos, que vêm ao
poeta as palavras justas. Adylson maneja as palavras, sugeridas pela força
subliminar do seu espírito de artista, como verdadeiro poeta.
Músico, ele lapida o texto como se anotasse melodia em pentagrama,
o que resulta numa escrita cuidadosa, limpa, detalhista, sonora, colorida:
começa com um acorde, muda de modo, vai do maior ao menor (ou vice-versa),
improvisa, voa, viaja, retoma o tema e encerra no acorde inicial, às vezes
discreto, às vezes apoteótico.
Além de Carrilhões, é imperioso destacar Espelho Partido, pelo seu
ambiente de tragédia grega, ambos os contos dignos de antologia. Anote-se ainda
um sujeito que “vestia arrebóis e alvoradas” (em Sísifo, uma estória que soa
com sutis citações de Stendhal), o suave erotismo de Encontro, outra vez o
trágico, com punição para o pecado. O queiro (que nos dá a deliciosa expressão
“a viúva a cântaros, diariamente”) é sobre um personagem esfacelado, posto
atônito diante do mundo, angustiado, esmagado pelo peso dos dias iguais que se
sucedem, talvez qualquer um de nós. Essa rotina é como um queiro inflamado (ou
dentiqueiro, ciso ou queixeiro) – nos lembrando que pior do que dor de dente,
só dor de amor... E se mais não aponto é por não querer tirar do leitor o
prazer das descobertas.
Adylson Machado, se falamos dessa coisa um tanto vaga, aqui
chamada arbitrariamente de “literatura do sertão” (seja no romance ou na
estória de mais curto fôlego), lembra Graciliano Ramos, tangencia Guimarães
Rosa e assenta-se ao lado de Francisco J. C. Dantas. Não é pouco.
* Jornalista