domingo, 3 de janeiro de 2021

Em ano que nasce velho resta-nos contar os dias

 

Vivemos em tempos idos de província  áureos tempos!  costumes singulares levados às ruas no formato de celebrações: o enterro do Ano Velho, por exemplo. Alcançamos a tradição de um grupo em desfile noturno carregando um caixão de defunto. Os que estranhavam enterro àquela hora e levavam a curiosidade aos píncaros, afastar os chorões em volta, meter a cara e lá encontrar o ‘defunto’ Ano Velho e abrir na gargalhada. Acompanhantes entoavam loas regadas a cerveja servida em penicos cheios de salsichas... o que escandalizava muita gente  maldosa, naturalmente. Uma toada servia de ‘incelença’: “Minha comadre, meu compadre morreu / e a senhora vai ficar sozinha / se a senhora quiser namorar, minha comadre / a primeira preferência é minha”.

Certo que não havia concentrações gigantescas, espetáculos artísticos e queima de fogos. Sintetizando: não havia a exploração comercial das tradições. Não precisava o que ‘luta pelo pão nosso de cada dia’ cingir-se à esta ou aquela marca de cerveja, à necessidade de comprar uma mesa e quejandos tais. Gasto, mesmo, ocorria para um punhado de sócios de um clube social, que dançava sambas e boleros até a meia-noite (em traje social) e no primeiro instante do ano entrante a orquestra atacava com as marchinhas tradicionais ou as que o rádio lançara a partir de novembro para o momesmo seguinte (quando a indumentária oportuna vinha à tona). E rompia o Carnaval até o amanhecer. Ali o primeiro ‘grito de carnaval’. Mas, efetivamente um ano se findava e outro começava: de esperanças, de começar com o pé direito, de repetir erros do passado.

Ficamos nos passos de cágado que esperamos dar no caminhar para completar três quarteis de existência (adiantamos de logo por que de janeiro a abril o tempo é pouco e não deixa de ser um jeito de fazer soar como esperança a incerteza). E, um pouco de personagem de Millôr Fernandes, com o pé atrás: “’Estou de passagem. Vim só dar uma olhada’ com dizia o outro, entre o berço e a cova”, vendo “numa laje, meu nome meio apagado”

Ultrapassados os cinquenta o existir nos levou a aprofundar reflexões, pensar em torno das coisas, buscar razões em meio às contradições, exercitar a dialética à procura tão somente de uma síntese. Alcançamos a capacidade de refletir, de pensar, de maturar, de inovar e discutir o porquê das coisas.

Em instante de passagem de ano-calendário fica-nos a certeza de que tal abstração atende apenas à limitação humana. Afinal, vida bilionesimamente curta no que toca à Eternidade o tempo medido é apenas um mote para “passar o tempo” sem que isso possa ser considerado um passatempo. Quando nada o calendário é apenas uma convenção humana. O tempo imanente não o reconhece, observa-o com desdém.

Toda a construção humano-civilizatória está pautada no tempo: passado, presente, futuro. Uma ciência o registra quanto ao passado (ainda que conforme quem o registre) como lição para o presente e reflexão para o futuro: a História.

E tudo que em torno dele se faz menos alimenta o Homem/Humanidade, o Ser destinatário de tudo que por este planeta ocorre e mais, muito mais, o que se beneficia de oportunas soluções que atendem apenas uns poucos bafejados pelas oportunidades onde encastelados.

Personagem nosso em “Amendoeiras de Outono” (Via Litterarum, 2005) reflete em torno dos avanços e criações da civilização: “O progresso me traz comodidade, não felicidade”. Eis o mote para refletir em torno da passagem de um ano-calendário: progredimos em busca da Felicidade?.

Arrumando o que chamamos de ‘biblioteca particular’ nos deparamos com duas circunstâncias flagrantemente escancaradas: encontro com velhas e sábias leituras (reservadas para imediatas releituras) e a constatação dolorosa de que de útil para o semelhante pouco adiantou-nos tanta leitura e tanto ler. Até porque quem deu de escrever padece de não ser lido como gostaria ou  quando muito  pouco lido.

Não deixa de ser um caso perdido essa coisa de mais um ano ultrapassado na estrada da vida (nada a ver com Federico Fellini e seu clássico “La Strada”, de 1954).

E em meio aos alfarrábios reencontrados uma edição de “A Revista” (editada por Carlos Drummond de Andrade e Martins de Almeida, em Belo Horizonte, nos idos de julho de 1925), em edição especial reimpressa por José Mindlin/Metal Leve em 1978.

Registra Mindlin que Carlos Drummond protestou porque “...não considerou válido fazer ressurgir do passado uma produção literária a seu ver de pouco valor”.

Registre-se que entre o de “pouco valor” para Drummond o primeiro capítulo de Mário de Andrade “(do romance Amar, Verbo Intransitivo) – (INÉDITO)”.

Em ‘Para os Scepticos’ os editores registram no último parágrafo:


“[...] Ao Brasil desorientado e nevrotico de até agora, oponhamos o Brasil laborioso e prudente que a civilização está a exigir de nós”. (Redação original).

E deixamos o quase um século e partimos para o “Sobre o autor”, de ‘Solo de Trombone (ditos & feitos de Alberto Roisel)’, de Antônio Lopes (Editus-Editora da UESC, 2001):


“Lopes é dono de texto econômico, meditado, não raro irônico, traduzindo um profundo cansaço com o discurso político que o rodeia. Costuma dizer que se ganhasse pelas vezes em que editou a salvação da Pátria (em reportagens e entrevistas) estaria rico, e a Pátria salva. Mas, filosoficamente, reconhece que  apesar do discurso politico repetido  ele e o Brasil continuam os mesmos: um pobre, outro à beira do abismo. Ou vice-versa.”

No limiar deste calendárico 2021 nos debruçamos em reler sobre um “Brasil desorientado e nevrotico” de antanho ou aquele ‘vice-versa’, de “um pobre, outro a beira do abismo”, para concluir que não há quem se oponha. E quando há quem cuide de fazê-lo não falta quem atropele o indigitado “Com Supremo, com tudo”.

Por tal mister  e suas singularidades  temos apenas o tempo permanente, querendo ser imanente, provando que o novo nasce velho. Coisa que nem Benjamin Button* em vice-versa ao cubo resolve.

E nem mesmo temos as províncias enterrando o “Ano Velho” e cantando ‘incelenças’. Resta-nos, tão somente, contar os dias.

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* Personagem do conto homônimo de F. Scott Fitzgerald (1896-1940), publicado em 1921, levado ao cinema sob direção de David Fincher, em 2008.

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