Guimarães Rosa cunhou, através de Riobaldo: “viver é muito perigoso”; Mafalda, personagem do cartunista argentino Quino, estende a uma outra vertente o perigo: “Viver sem ler é perigoso, te obriga a crer no que te dizem”.
Entre os sertões e veredas de Riobaldo e esta
contemporaneidade não descuramos de perceber a acentuada visão posta por
Mafalda. Que se agrava diante de um fato singular: há gente que se imagina
capaz de entender porque estudou. Aí o busílis: ler (quando lê) e não entender
o que leu. Daí para aquele universo levado a “O delírio e ‘vade retro satana’” nenhum
óbice.
Mas o que deve ser criticado não é somente o
que não lê, mas o que lê e não entende. E o pior deles, o que se dizendo lido promove
severa discussão com quem não lê para provar que o supera por haver lido.
Confuso, parece!
Na esteira da tirinha que trazemos de Mafalda
podemos acrescentar: é muito mais perigoso ler sob encomenda e fazê-lo sem
dispor da mínima condição de dialetizar, de comparar fatos em busca de uma conclusão, de desconhecer o passado
como lição e o presente como passo para o futuro.
Mas, caro e paciente, leitor enveredamos por
este trilhar diante dos esgueirares de membros do STF e o inquilino do Alvorada
no curso desta augusta semana em que as instituições entraram no ringue e dele
saltaram para o terreno da galhofa. Trocaram farpas aqueles, sentindo-se
feridos por este.
Dispensamo-nos — por respeito ao leitor — do registro
de Carl Jung em seu livro de memórias (Memórias, Sonhos, Reflexões), mais ou
menos nos seguintes termos: ‘Aprendi a não dizer aos outros o que não podem
entender”. Eis um caminho para os que cultuam a sensatez. Mas não o somos a
contento.
Em meio às diatribes na troca de farpas entre
o inquilino e membros do STF temos que aquele se sai vencedor, ainda que
desmoralizado e acovardado. Não porque tenha formação intelectual e nesse
terreno os tenha superado, mas por ter sido competente em trazer para seu palco
de batalha algumas daquelas singulares Suas Excelências.
O que as levou a caírem no fosso deixa a
pensar! No palco deste não menos singular mambembe esculachar é aula de Latim e
Grego, partitura de Beethoven, texto de Machado de Assis. Essa gente não lê
Milton Santos, Celso Furtado —
porque
são comunistas —
tampouco
interessa saber quem foram e o que fizeram D. Hélder Câmara, Dom Paulo Evaristo
Arns etc. etc.
E olha lá um deles (das Excelências!) — com toda a
empáfia que a transmissão televisiva permite — voltando a justificar a segurança do
processo eletrônico-eleitoral do Brasil. Depois de ‘vencedor’ com a queda do
projeto no Congresso insiste em provar.
Provar o quê? Que a dúvida persiste, caro
leitor. Inclusive nele.
Fazemos de nossa parte a leitura que outros
não fazem: das responsabilidades de cada um no atual processo de desagregação e
desestruturação institucional do país regido pela cegueira mental, que é a pior
forma de cegueira.
Os que desceram do patamar para guerrear na
planície formaram turbas/tribos diversas, mas – pelo nível da logística e da estratégia
da batalha – tornaram-se farinha do mesmo saco.
Não precisa ser doutor (bastam os bons autores
e as boas obras) para entender que de priscas eras formou-se no Brasil uma
classe dominante que disputa com igual tear mundo a fora para saber quem mais
medíocre na capacidade de olhar para o próprio umbigo como se fora ele a origem
do mundo. “Elite branca” (Cláudio Lembo) ou “Elite do atraso” (Jessé Souza) fez
dela derivar uma classe média – mais pequeno-burguesa que outras tantas – que
alimenta no curso da história uma sub-intelectualidade boçal, iletrada, desinformada,
invejosa e odienta, em especial diante daqueles que a superem em informação e conhecimento.
No fundo, um conflito de classes dela se
origina sem que disponha do minimo
minimorum em nível de informação absorvida. Sua burrice, em muitos casos,
deriva da exploração alheia até no fazer provas antigamente às custas de colas
fornecidas pelos menos favorecidos. Resulta daí o ódio por aquele que aspassou
mas que não é da mesma classe.
E não se trata, caro e paciente leitor, de
transitarmos por níveis de escolaridade. Este é o biombo que também se expressa
naquilo que denominamos de “cultura da certificação”. Ou seja, de o ‘certificado’
falar por si, ainda que quem o detenha possa tê-lo conseguido por vias pouco
escrupulosas, alguns, inclusive, respondendo a apurações criminais. Muitos
frequentaram altos níveis de escolaridade mas somente sentaram nos bancos
escolares e responderam avaliações em limite mínimo necessário à aprovação, que
nesta terra brasilis em geral é 5,0.
Eis que descobrir o ‘conhecimento’ das coisas,
interpretar o que diante de si exista, trilhar por saberes lógicos e racionais
incomoda aos que negam o pensamento crítico como meio de pensar e ver o mundo que
não lhes interessa porque lhes foge a capacidade de desenvolver qualquer liame de
uma consciência crítica.
É a turma que não aprendeu, portanto não sabe,
e crê em qualquer coisa que lhe digam sem pestanejar. Formam uma enciclopédia de
páginas vazias sem capa.
Caro e paciente leitor, estamos sob permanente
estado de vigília. Bem que podíamos – parodiando Guimarães Rosa, “acordar de
alguma espécie de encanto” outro, não este que nos acomete e atordoa. Deixarmos
de estar “no meio da travessia”. Afinal — não custa esperar — “Deus é
paciência. O contrário é o Diabo”. O que não podemos perder é “a vontade de ter
coragem”.
Para esse “campo de batatas” em que se tornou
a terrinha de todos nós, em nível de rés do chão — sem Rubião como interlocutor — convergem
não só “duas tribos famintas”, mas, em desespero por mais espaço, militares
fora dos quartéis, pentecostais e carismáticos longe das igrejas, e loucos de
todo o gênero longe dos hospícios que passaram a formar uma estranha consciência de um pensamento
inusitado que assola o país.
Decididamente “viver é muito perigoso” em meio a certas expressões/personalidades que povoam esta que já foi ‘terra de Mãe Preta e Pai João’. “Navegar” não mais “é preciso” — negam, os da lagosta e caviar, o repensar de Fernando Pessoa, que trouxe ao seu idear o "Navigare necesse; vivere non est necesse" proclamado por Pompeu (general romano, 106-48 a.C.) — bastando “acreditar na boa fé”!
A eles “as batatas” — diria Quincas
Borba. Mais sadia a Humanitas do ‘bruxo do Cosme Velho’ que a “boa fé” desta
contemporaneidade.
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