Pessoa que convive conosco nos dizia aturdida,
tomada de temor visceral: a polícia já avisou de operação no meu bairro para
pegar bandido no fim de semana. Não a atormentavam a carestia, a pandemia, a
moradia, o que esperar das eleições, o dia de amanhã. Em seu olhar de gente
simples estampada a expressão dos desvalidos nesta sociedade contemporânea, interpretada
a partir de uma conclusão inexorável: a quem apelar? Que se ajusta à realidade,
como reação dela — espontânea — a uma pergunta que não ocorreu: “— Meu filho
(de doze anos) não deixo sair de casa”. Teme ela uma bala perdida.
É por demais singular estes tempos em que uma
protagonista de significado nunca imaginado no antanho tenha se tornado o
centro de atenção no palco das tragédias: a ilustre e nada shakespeariana “bala
perdida”.
Mas, caríssimo e paciente leitor, a diva não
se apresenta, é forçada a fazê-lo. Expressão central de um discurso que ocupa
de tratados a meras postagens sensacionalistas: violência.
Nestes tempos pré-eleitorais lá está o tema
recorrente: combater a violência, dar paz e tranquilidade às gentes. Para
tanto, todos querem mais polícia nas ruas; mais operações como a que assusta
nossa amiga acima.
Ninguém questiona as razões por que da
violência e — mais estonteante — da violência promovida pelo Estado no combate
à dita cuja. Tornou-se ‘necessária’, imprescindível, única saída, naturalmente
institucionalizada como instrumento de combate à marginalidade.
Mas, indaga este escriba de província: cabe ao
Estado ser agente de violência? Fonte de temor e terror do cidadão quando quem
deveria temê-lo era o marginal? O que mudou nestes anos todos?
E não imaginemos exemplo neste mundo nosso de
cada dia. Chegam — legitimando a nossa quase ‘idolatria’ em relação aos Estados
Unidos — na forma como tem agido o aparato policial por aquelas bandas.
Certamente não na dimensão da letalidade aqui alcançada.
Talvez por estas terras esteja a se aprofundar
o que Hannah Arendt observou em relação ao que acontecia nos anos 60 e muito
bem se refletia nos Estados Unidos:
“Em nenhum
outro lugar fica mais evidente o fator autodestrutivo da vitória da violência
sobre o poder do que no uso do terror para manter a dominação [...] O terror
não é o mesmo que a violência; ele é, antes, a forma de governo que advém
quando a violência, tendo destruído todo o poder, em vez de abdicar, permanece
com controle total“.
[...]
Seria interessante saber se, e em que medida, a taxa alarmante de crimes não
resolvidos é igualada não apenas pelo conhecido e espetacular crescimento das
agressões criminosas, mas também por um aumento definido na brutalidade
policial”.
Vinculando o aumento da violência ao fato —
pouco avaliado — da insignificante resolução de crimes pelo estamento policial
e mais agravado àqueles que alcançam os tribunais reflete, que pode não atingir
10% (ou seja, investiga-se pouco e aprecia-se, em nível de Judiciário e
consequente condenação menos ainda):
[...] “Assim,
probabilidades a favor dos criminosos são tão altas que o constante aumento dos
crimes parece apenas natural. Quaisquer que sejam as causas para o declínio
espetacular da eficiência da polícia, o do declínio do poder da polícia é
evidente, e, com ele, aumenta a probabilidade da brutalidade. Os estudantes e
outros manifestantes são presa fácil para uma polícia que se acostumou a
dificilmente capturar um criminoso”.
Hannah Arendt (1906-1975) publicou “Sobre a
Violência” em 1969, pautada na relação poder e violência, democracia e
totalitarismo, mais concentrada nos movimentos que desaguaram no final daquela
década. Extraímos das páginas 71 e 124, da 2ª edição brasileira, pela
Civilização Brasileira-2010, da tradução de André Duarte, os enxertos acima.
O que nos faz buscar Arendt é a preocupação
expressada por nossa confidente: a polícia avisa que fará operação etc. etc.
Evidente o fracasso na capacidade
investigativa da polícia civil, que não consegue identificar fontes e focos
criminosos, apesar de todo e qualquer morador, aqui e alhures, saber onde
vendidas drogas — o exemplo mais clássico em evidência e motivo de operações
como a anunciada na abertura desta coluna. A falência da investigação
científica torna-se flagrante, muito vinculada à falta de investimentos
estatais.
E mais dizemos — especulação que seja — sobre
o grande motivador de tudo ocorrer: alguém levando vantagem. Não houvesse a
concentração da riqueza como instrumento de poder certamente tal não ocorreria.
Afinal, hipocrisia não reconhecer que bancos e empresas de investimento são fachada
para lavar dinheiro criminoso, assim como financiar templos, políticas e
políticos.
Elege-se este ou aquele país, ou esta ou
aquela gente como o “boi de piranha” para justificar a submissão do Estado/Polícia/Judiciário
aos interesses criminosos (lícitos ou ilícitos). Naturalmente o formador de
opinião e a informação sob controle. Então um helicóptero com mais de meia
tonelada de pasta de cocaína – à guisa de exemplo mais recente — vai sendo
esquecido enquanto o Estado/polícia investe (sob cobertura da imprensa) sobre
comunidades periféricas (social e urbanamente) em busca de criminosos. Para
tanto, o terror muito ajuda. Fácil o ‘traficante’ da favela/periferia em vez
daquele encastelado no Leblon, na Barra ou no Góes Calmon.
Com relação aos anos 60 dizia Arendt, “Os
estudantes e outros manifestantes são presa fácil para uma polícia que se
acostumou a dificilmente capturar um criminoso”.
Cinquenta anos depois tudo aí: inova-se avisando
a comunidade que a polícia fará operação, onde a “bala perdida” explica a
incompetência do Estado e da ação policial lançando a triste realidade às
calendas da razão. E em vez de “estudantes e outros manifestantes” os
desassistidos das periferias, negros e pobres de meu Deus! Se não alcançar o
criminoso (que eu deveria prender) a bala se torne “perdida” ainda que a
indigitada vítima esteja no recôndito de seu lar.
Porque importa mais o terror implantado a fórceps no inconsciente coletivo para que a violência que nos assusta continue a beneficiar alguém, encastelado em qualquer forma de poder.
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