domingo, 1 de novembro de 2020

A violência que nos assusta e a quem interessa

Pessoa que convive conosco nos dizia aturdida, tomada de temor visceral: a polícia já avisou de operação no meu bairro para pegar bandido no fim de semana. Não a atormentavam a carestia, a pandemia, a moradia, o que esperar das eleições, o dia de amanhã. Em seu olhar de gente simples estampada a expressão dos desvalidos nesta sociedade contemporânea, interpretada a partir de uma conclusão inexorável: a quem apelar? Que se ajusta à realidade, como reação dela — espontânea — a uma pergunta que não ocorreu: “— Meu filho (de doze anos) não deixo sair de casa”. Teme ela uma bala perdida.

É por demais singular estes tempos em que uma protagonista de significado nunca imaginado no antanho tenha se tornado o centro de atenção no palco das tragédias: a ilustre e nada shakespeariana “bala perdida”.

Mas, caríssimo e paciente leitor, a diva não se apresenta, é forçada a fazê-lo. Expressão central de um discurso que ocupa de tratados a meras postagens sensacionalistas: violência.

Nestes tempos pré-eleitorais lá está o tema recorrente: combater a violência, dar paz e tranquilidade às gentes. Para tanto, todos querem mais polícia nas ruas; mais operações como a que assusta nossa amiga acima.

Ninguém questiona as razões por que da violência e — mais estonteante — da violência promovida pelo Estado no combate à dita cuja. Tornou-se ‘necessária’, imprescindível, única saída, naturalmente institucionalizada como instrumento de combate à marginalidade.

Mas, indaga este escriba de província: cabe ao Estado ser agente de violência? Fonte de temor e terror do cidadão quando quem deveria temê-lo era o marginal? O que mudou nestes anos todos?

E não imaginemos exemplo neste mundo nosso de cada dia. Chegam — legitimando a nossa quase ‘idolatria’ em relação aos Estados Unidos — na forma como tem agido o aparato policial por aquelas bandas. Certamente não na dimensão da letalidade aqui alcançada.

Talvez por estas terras esteja a se aprofundar o que Hannah Arendt observou em relação ao que acontecia nos anos 60 e muito bem se refletia nos Estados Unidos:


“Em nenhum outro lugar fica mais evidente o fator autodestrutivo da vitória da violência sobre o poder do que no uso do terror para manter a dominação [...] O terror não é o mesmo que a violência; ele é, antes, a forma de governo que advém quando a violência, tendo destruído todo o poder, em vez de abdicar, permanece com controle total“.

[...] Seria interessante saber se, e em que medida, a taxa alarmante de crimes não resolvidos é igualada não apenas pelo conhecido e espetacular crescimento das agressões criminosas, mas também por um aumento definido na brutalidade policial”.

Vinculando o aumento da violência ao fato — pouco avaliado — da insignificante resolução de crimes pelo estamento policial e mais agravado àqueles que alcançam os tribunais reflete, que pode não atingir 10% (ou seja, investiga-se pouco e aprecia-se, em nível de Judiciário e consequente condenação menos ainda):


[...] “Assim, probabilidades a favor dos criminosos são tão altas que o constante aumento dos crimes parece apenas natural. Quaisquer que sejam as causas para o declínio espetacular da eficiência da polícia, o do declínio do poder da polícia é evidente, e, com ele, aumenta a probabilidade da brutalidade. Os estudantes e outros manifestantes são presa fácil para uma polícia que se acostumou a dificilmente capturar um criminoso”.

Hannah Arendt (1906-1975) publicou “Sobre a Violência” em 1969, pautada na relação poder e violência, democracia e totalitarismo, mais concentrada nos movimentos que desaguaram no final daquela década. Extraímos das páginas 71 e 124, da 2ª edição brasileira, pela Civilização Brasileira-2010, da tradução de André Duarte, os enxertos acima.

O que nos faz buscar Arendt é a preocupação expressada por nossa confidente: a polícia avisa que fará operação etc. etc.

Evidente o fracasso na capacidade investigativa da polícia civil, que não consegue identificar fontes e focos criminosos, apesar de todo e qualquer morador, aqui e alhures, saber onde vendidas drogas — o exemplo mais clássico em evidência e motivo de operações como a anunciada na abertura desta coluna. A falência da investigação científica torna-se flagrante, muito vinculada à falta de investimentos estatais.

E mais dizemos — especulação que seja — sobre o grande motivador de tudo ocorrer: alguém levando vantagem. Não houvesse a concentração da riqueza como instrumento de poder certamente tal não ocorreria. Afinal, hipocrisia não reconhecer que bancos e empresas de investimento são fachada para lavar dinheiro criminoso, assim como financiar templos, políticas e políticos.

Elege-se este ou aquele país, ou esta ou aquela gente como o “boi de piranha” para justificar a submissão do Estado/Polícia/Judiciário aos interesses criminosos (lícitos ou ilícitos). Naturalmente o formador de opinião e a informação sob controle. Então um helicóptero com mais de meia tonelada de pasta de cocaína – à guisa de exemplo mais recente — vai sendo esquecido enquanto o Estado/polícia investe (sob cobertura da imprensa) sobre comunidades periféricas (social e urbanamente) em busca de criminosos. Para tanto, o terror muito ajuda. Fácil o ‘traficante’ da favela/periferia em vez daquele encastelado no Leblon, na Barra ou no Góes Calmon.

Com relação aos anos 60 dizia Arendt, “Os estudantes e outros manifestantes são presa fácil para uma polícia que se acostumou a dificilmente capturar um criminoso”.

Cinquenta anos depois tudo aí: inova-se avisando a comunidade que a polícia fará operação, onde a “bala perdida” explica a incompetência do Estado e da ação policial lançando a triste realidade às calendas da razão. E em vez de “estudantes e outros manifestantes” os desassistidos das periferias, negros e pobres de meu Deus! Se não alcançar o criminoso (que eu deveria prender) a bala se torne “perdida” ainda que a indigitada vítima esteja no recôndito de seu lar.

Porque importa mais o terror implantado a fórceps no inconsciente coletivo para que a violência que nos assusta continue a beneficiar alguém, encastelado em qualquer forma de poder. 

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