O
pensamento e a ciência política moderna, o Estado e o governo, encontram em
Maquiavel (1469-1527) seu reconhecimento em razão de sua análise diante do que
representavam, do que realmente eram, e não do ‘como’ deveriam ser.
No
limiar da Era Moderna então abriam-se as portas para discutir uma atuação
estatal dentro de limites de legitimidade, trânsito para as teorias
monárquico-absolutistas de Thomas Hobbes (1588-1679) e seu Leviatã (concentrando
o poder), a Jacques Bossuet (1627-1704) teorizando ser a vontade divina a fonte
do poder do monarca até que o advento do Século das Luzes ilumina o repensar em
torno deste Estado sob o condão de valores como a razão para a fonte da
autoridade e da legitimidade e a liberdade, o progresso científico, a
tolerância, a igualdade, a fraternidade e uma ordem constitucional (decorrente
de um ordenamento discutido por representantes do povo) que assegurasse a
efetiva participação dos representados nas decisões (sem falar no
calcanhar-de-Aquiles do Absolutismo, ferido de morte pelas novas ideias: a
relação Igreja-Estado).
No
alvorecer desta época Étienne de La Boétie (1530-1563) cunha de tirania a governança, a partir de um questionamento vinculado à
legitimidade, uma vez que não discutia em torno de serem as formas de República
“melhores que a monarquia” mas se “as diversas formas de governar a coisa
pública... num governo no qual tudo depende de um só” (p. 32) seriam o melhor
caminho.
Daí,
questiona ele:
“[...]
gostaria de entender como tantos homens, tantos burgos, tantas cidades e tantas
nações suportam às vezes um tirano só, que não tem mais poder que o que lhe dão[...]”.
(p. 32).
Adiante
avalia circunstância da eleição do dirigente relacionando-o às outras formas de
ascensão ao poder (como a guerra ou a hereditariedade):
“Parece-me
que aquele a quem o povo entregou o Estado deveria ser mais suportável, e o
seria, como creio. Mas, logo que se vê elevado acima dos outros, encantado com
esse não sei quê que chamam grandeza, decide não sair mais. Considera quase
sempre o poder que o povo lhe conferiu como devendo ser transferido aos seus
filhos. E, desde que adotaram essa ideia, é surpreendente ver como superam os
outros tiranos em todos os tipos de vícios, e mesmo em crueldade”. (p. 42).
Ainda
dele extraímos:
“É
incrível ver como o povo, quando é submetido, cai de repente num sono tão
profundo de sua liberdade, que não consegue despertar para reconquistá-la.
Serve tão bem e de tão bom grado que se diria, ao vê-lo, que não só perdeu a
liberdade, mas ganhou a servidão”. (p. 44).
Dirá
o precioso e estimado leitor aonde pretende chegar este escriba de província em
plena terceira década do século XXI trazendo a lume análise vinculada
historicamente ao século XVI.
Paciente
leitor, os que compreendemos a existência da patologia social em suas diversas
vertentes, dentre elas o transtorno delirante, cremos que Boétie transita ao
seu tempo em torno dele, vinculando todas as mazelas ao tirano/governante.
Por
estas bandas diverso o instante e o rótulo do perfume, mas não a essência.
Temos
que cinco séculos não fizeram qualquer contribuição à construção do Estado
brasileiro. Em nada aperfeiçoado à luz dos ditames elaborados no curso do
Iluminismo. De tudo utilizamos os rótulos: do Estado, do exercício do Poder
(tripartido para os Pensadores de então), da representação popular em níveis de
executivo e legislativo.
Não
construímos um conceito de nação. Tão somente do Estado patrimonialista que
serve à classe dominante em suas várias esferas e do povo apenas se serve, em
plenitude este daquele a que se refere Boétie para justificar o tirano na
contraposição.
Da
Antiguidade à Contemporaneidade o Poder exercido em suas diferentes vertentes
no curso da História avançou apenas na conformação administrativa criando
funções e instituições para asseguramento do Estado Nacional organizado.
Sob
este aspecto fomos buscar em Boétie o retrato do que vivemos. E o fazemos –
para não nos alongarmos mais – diante de mais uma tragédia, ora vivenciada por
uma destas favelas desta vida de meu Deus!
É
que o Estado brasileiro faliu no exercício de uma de suas competências institucionais
primárias: do clássico combate ao crime, desde que – há muito – deixou de investigar
e articular prisões e levar a julgamento os infratores da lei. Substituiu-o
pela cômoda situação de eliminar por eliminar, de fazer a estatística
substituir a cruel realidade. Para essa gente não importa se algum inocente
morreu, porque em seus ‘relatórios’ todos que sucumbem às suas balas resistiram
à prisão ou receberam as forças de segurança(?) à bala.
Não
lhes falta apoio: desde a mídia que se vale de sangue para vender mercadorias
aos que sonham retornar ao velho faroeste roliudiano.
Não
vê o homem comum, vítima por excelência de tamanha brutalidade, que sempre morrem
os eleitos para tanto: moradores das periferias, negros em sua maioria. Sob o
nominado ‘combate às drogas’ as chacinas se avultam. Ainda que desconheçamos
ações policiais ou a mínima atuação repressora em aviões presidenciais ou
helicópteros de políticos transportando drogas ou em bairros nobres das grandes
cidades onde se efetivam sua distribuição.
Em
meio ao processo de destruição das instituições democráticas, onde o Estado
Absolutista regido sob o codinome ‘democracia’ assegura o controle do poder a
quem detenha a força, caminhamos céleres para unirmo-nos sob dois extremos: o policial-militar
miliciano e a sociedade servo-consentida.
Nada
à toa. Há quem sonhe tornar-se o personagem perfeito de Thomas Hobbes
(1588-1679) amparado na teoria absolutista de Jacques Bossuet (1627-1704).
Pouco importando que Boétie se faça vivo cinco séculos depois.
Afinal,
uma linha tênue separa o pensamento de Boétie da contemporaneidade tupiniquim. Apenas
não tinha como saber o francês que outros seriam os meios de convencimento,
tampouco que de outros instrumentos se valeriam os tiranos contemporâneos. Não
apenas os tipos de Gutemberg dão-lhes coliseus, altares, fantasias etc.
Também
outras as formas de servidão. Dentre elas a que aplaude a criminalização da pobreza
e da miséria.
Não
repitamos aqui o dito por Karl Marx no “18 de Brumário de Luís Bonaparte”. (Reler). Permaneçamos
com Étienne de La Boétie, no século XVI que se faz XXI:
“Hoje não
são melhores os que, antes de cometer seus crimes mais graves, sempre os fazem
preceder por alguns belos discursos sobre o bem público e o interesse geral”. (p.
58)
______
Valemo-nos
neste dominical de “Discurso da Servidão Voluntária”, de Étienne de La Boétie, na
Edição bilíngue da Martin Claret, traduzida por Casemiro Linarth, reimpressão de 2017).
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