Os anos 60 nasceram sob a batuta de reformulações políticas e culturais. João Gilberto fixara em 1958 os parâmetros de uma nova estética musical, elaborada — como o afirma o maestro baiano Aderbal Duarte — sob a raiz modal que existe no Nordeste. Os anos JK despertavam na nova década a esperança de um país que andasse sobre os próprios pés. E Jango anunciava, assim que recuperou o poder presidencial, suas ‘reformas de base’, logo atropeladas pelo golpe civil-militar de 1964.
A morte da democracia e dos sonhos reformistas
não atingiu uma parcela da geração que caminhava por outros degraus e tomou as
artes como torreão para a defesa dos valores em ebulição. Na Música, no Cinema
e no Teatro.
Na Bahia uma geração (que também convivia com as
raízes do modalismo) aperfeiçoava-se musicalmente sob o condão de Ernst Widmer (1927-1990)
e Hans-Joachim Koellreutter (1915-2005), secundada por Anton Walter Smetak
(1913-1984), no cadinho que efervescia da Escola de Música da UFBA, que sucedera
aos Seminários Internacionais de Música da UFBA (nascidos do idealismo do
reitor Edgar Santos).
Nessa geração experimentalista Glauber Rocha (1939-1981)
ofertava novos tons estéticos à Sétima Arte, Lina Bo Bardi (1914-1992) despertava
o MAM da Bahia, Martim Francisco (1919-1973) e a Escola de Teatro da UFBA revolucionavam
no então Teatro Santo Antônio e Tom Zé se fazia presente ao lado de Caetano Veloso,
Gilberto Gil, Torquato Neto e Capinam trocando filigranas enquanto um certo Raulzito
tocava bateria no “seus panteras”.
Dessas fileiras, ampliadas com presenças de
Hélio Oiticica, Rogério Duprat, Os Mutantes, Nara Leão, Rita Lee, Zé Celso e
inspirações concretistas, surge no início da segunda metade dos anos 60 do
século passado o denominado Movimento Tropicalista.
Não haverá quem o compreenda plenamente sem que tenha lido “O Banquete”, de Mário de Andrade (1893-1945). Isso porque a dimensão estética nele embutida — capitaneada pelo personagem Janjão — traz à mesa a reformulação proposta por Mário para a cultura pátria com o fito de afastar o país da aculturação europeia já se ensaiando para a estadunidense. Não à toa mais autêntica “a feijoada” que a salada americana e seus singulares acepipes alheios à conformação cultural de nossa gente. Traduzida na proposta tropicalista de deglutir tendências, manifestações de pensamento e informações várias em algo genuinamente pátrio, originalmente nosso. Para tanto, do popular ao erudito, passando por samba, xote, baião, rock e o que pudesse contribuir para a mescla, como bem traduziu Torquato Neto no breviário “Tropicalismo para principiantes”:
"Assumir completamente tudo o
que a vida dos trópicos pode dar, sem preconceitos de ordem estética, sem
cogitar de cafonice ou mau gosto, apenas vivendo a tropicalidade e o novo
universo que ela encerra, ainda desconhecido".
Dito isso, mais fácil fica então compreender a salada contida em “Tropicália
ou Panis et Circensis” (1968): ‘Miserere Nobis’, ‘Geléia Geral’, ‘Panis et
Circensis’, ‘Parque Industrial’, ‘Baby’, ‘Bat Makumba’, ‘Mamãe Coragem’, ‘Lindonéia’
em meio a ‘Coração Materno’, ‘Três Caravelas’ e ‘Hino ao Senhor do Bonfim’.
Mas — triste mas! —, eis o bizarro em que nos tornamos: o nome símbolo da revolução cultural não nos lembra hoje o que representou, mas a tragédia nossa de cada dia, onde a vida humana volta a ser experimento como se à senzala houvéssemos retornado.
Por ironia destes trópicos, diante de um
quiosque Tropicália, na Praia da Barra da Tijuca, o sangue voltou a correr como
nos troncos do pelourinho. No tombadilho castro-alvense mais um africano se foi
neste imenso “Navio Negreiro”.
“Enquanto as pessoas na sala de jantar / são
ocupadas em nascer e morrer” (Panis et Circensis) que pelo menos nos levantemos
contra, “Antes que definitiva noite / se espalhe em Latino América” (Soy loco
por ti, America).
E há quem ainda pergunte, ultrapassadas as
bodas de ouro do Tropicalismo, por que choramos tanto!
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