domingo, 6 de março de 2022

Hipocrisia acima de tudo e de todos

 

Afirmado desde tempos de antanho: na guerra quem primeiro morre é a verdade. Essa verdade, tão antiga, atribuem a Ésquilo (525/524 a.C-456/455 a.C.) o primeiro a expressá-la. Não por casualidade o dramaturgo grego tido como o ‘pai da tragédia’. E guerras são sempre tragédias.

Ao ingênuo parece verdade absoluta o revelado pelas informações que nos chegaram no início da semana de que a Ucrânia ‘resistia’ à invasão russa. Ingenuidade presumir que o ataque que em poucas horas já deixara sitiada a capital do país esteja preocupado com a ‘resistência’ de civis convocados para o serviço militar no curso do conflito.

Em meio à guerra midiática, de informação e contrainformação, também a mensagem de que Vladimir Putin responderá no Tribunal de Haia por genocídio e crimes de guerra na Ucrânia.

Ainda que não sejamos defensor de guerras, intervenções e quejandos outros pausamos em torno do divulgado diante desta ‘verdade’ levada aos quatro cantos: Putin respondendo por crimes de guerra e genocídio em razão da intervenção na Ucrânia.

Sob tal viés considerando o que significa genocídio e crimes de guerra  cabe lembrar ao caro e paciente leitor que tais ‘elementos do tipo’ (linguagem jurídico-penal) correspondem a algo mais além que simplesmente guerrear, mas à planejada destruição de populações ou povos. É caracterizado o genocídio como a deliberada intenção de exterminar “todos” os indivíduos de determinado grupo humano específico. Por tal razão não está afeto tão somente a tempos de guerra, também de paz. Assim, não é a guerra em si que define o espaço onde praticado o genocídio, mas a consciente intenção de extinguir, de eliminar, determinado grupo étnico, racial ou religioso.

Por outro lado, lamentável dizer que há genocídios em outra dimensão, lentos e paulatinos (como os dos indígenas), que de tão permanentes passaram a integrar a realidade ‘normal’.

E não seria exagero ver na fome endêmica uma forma de genocídio por omissão dos povos.

O termo criado por volta de 1943 pelo jurista judeu polonês Raphael Lemkin, que defendia a compreensão do fenômeno como imprescindível à configuração de um ordenamento penal próprio. Ciganos e judeus tornaram-se os exemplos clássicos de vítimas do nazismo. São um capítulo à parte dentro das tragédias humanitárias que alimentam a definição para “crimes contra a humanidade” capitulados no Art. 7º do Estatuto de Roma, tais como homicídio, extermínio, escravidão, deportação ou transferência forçada de uma população, tortura.

Mas, não sós: genocídio armênio, em Ruanda, cambojano, indígena, japonês, palestino etc. etc.

Os que falam hoje em prática genocida dos outros não desejam que sejam reconhecidos como praticantes de tão nefanda e inumana arma.

Deixemos a Noite de São Bartolomeu (1572) quando assassinados entre os dias 23 e 24 de agosto de 1572 entre 5 a 30.000 huguenotes (protestantes) a mando de Carlos IX da França, ou  mais recentemente  a matança que durante todo o século XIX atingiu os povos indígenas dos Estados Unidos ou, ainda, o que promoveram holandeses na África, em particular o apoio da Inglaterra na África do Sul sob a batuta do apartheid.

Mas, somos propensos a admitir não a leitura dos fatos históricos, mas aquela posta diante de nós como se o fato em si não existisse, tão somente aquele que desejamos ver. Cabe entender que o que “desejamos ver”, em tempos de comunicação controlada, é o que nos chega pelo sistema (jornais e revistas, radiodifusão, internet etc.).

Sob esse viés vivemos  sem sombra de dúvida  uma singular Era da Hipocrisia. A mentira, a falsidade, a dissimulação distorcendo a realidade/verdade.

Num primeiro instante não temos hoje praticado pela Rússia de Putin na Ucrânia nada diverso do que o praticado pelos Estados Unidos e aliados mais de uma vez nas últimas décadas mundo a fora. No fundo, a reação russa consumada na invasão da Ucrânia representa simplesmente o aprendizado  militares e/ou informativos  praticados/capitaneados pelos Estados Unidos na Líbia, Iraque, Iugoslávia, para citar os mais recentes.

No quesito mortandade de civis longe está do que fizeram os EUA em Hiroshima e Nagasaki (Japão), em Mai Lai (no Vietnã). A propósito de Mai Lai, em 16 de março de 1968, 504 civis desarmados  incluindo idosos, mulheres e crianças (17 delas grávidas dentre as 170), assassinados a sangue frio. “Em apenas quatro horas, mataram os animais, queimaram as choupanas, violaram, mutilaram e fuzilaram as mulheres e trucidaram homens e crianças”. E mais não morreram graças à corajosa e humanista intervenção do piloto Hugo Thompson Jr. (Wikipédia)

No âmbito do respeito aos direitos humanos o que dizer da reação dos Estados Unidos em relação a Abu Dabi, ao massacre de Mai Lai, ao uso de agente laranja sobre populações civis do Vietnã, ao centro de tortura instalado por eles em Guantânamo?

Quem anda apoiando bombardeios a territórios da Síria, da Somália e do Iêmen?

Invasões e massacres têm sido a tônica nas últimas décadas, se não quisermos percebê-los desde o final do século XIX, apenas para situá-los a partir da Era Moderna. Oriente Médio, África, Cuba, Nicarágua, Honduras. Genocídios e bombardeios são lugar comum.

Restando o Japão para a vitória final, as forças já recuando em todos os fronts e tome-lhe bomba atômica. E mais outra. Não sobre as forças militares, mas sobre a população civil (homens, mulheres e crianças).

Nada que justifique uma invasão em desrespeito ao princípio da autodeterminação dos povos. O fato sob o contexto do por que ocorrendo, já analisamos em torno do presente (geopolítica e hegemonicamente) (aqui aqui aqui) e a defesa da não-violência (em todas as dimensões) pode ser compreendida no recente “Eles não leem Tolstoi”, publicado no Diário Bahia.

Mas, o bom senso e a isenção  afirmamos peremptoriamente  não nos permitem enveredar pela mesmo trilhar que ‘discute’ a realidade a partir de ‘lados’, pautados nos bons (nós) e nos maus (os outros) quando as ações de uns e outros em muito idênticas.

Estádios europeus enchem-se de faixas contrárias à invasão da Ucrânia. Louvável atitude! Mas, não vimos igual verve em relação ao Iraque, Síria, assim como desconhecemos qualquer delas cobrando respeito aos territórios e ao povo da Palestina ocupados por Israel. Muito menos contrárias à guerra mais cruel: a fome que campeia e atinge mais de 800 milhões em dados referentes a 2001 mundo a fora (praticamente a população reunida das Américas, do Norte, Central, do Sul e Caribe, estimada em pouco mais de 900 milhões). Tragédia que mata 11 pessoas a cada minuto.  

Em tempos de guerra (qualquer guerra) a verdade é a versão dita por cada lado.

A informação que nos chega, se a acatamos literalmente sem a mínima reflexão à luz da contraposição e da verificação da realidade, nos tornará “pobres de espírito”, assim o cremos. Não aqueles ‘pequeninos’ de que falou o Mestre, mas dos citados por Millôr Fernandes, no verbete ‘Paraíso’, na Bíblia do Caos: “Se o Reino dos Céus é dos pobres de espírito, então, meu Deus, já estamos no Paraíso”.

Genocidas posando de santos e querubins. “Hipócritas e fariseus”... “sepulcros caiados”, verberaria Cristo hoje, como o fez ao seu tempo (Mateus, 23;27).

Até porque, aqui e alhures, hipocrisia acima de tudo e de todos é inconcebível.


 


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