Afirmado desde tempos de antanho: na
guerra quem primeiro morre é a verdade. Essa verdade, tão antiga, atribuem a
Ésquilo (525/524 a.C-456/455 a.C.) o primeiro a expressá-la. Não por
casualidade o dramaturgo grego tido como o ‘pai da tragédia’. E guerras são
sempre tragédias.
Ao ingênuo parece verdade absoluta o
revelado pelas informações que nos chegaram no início da semana de que a
Ucrânia ‘resistia’ à invasão russa. Ingenuidade presumir que o ataque que em
poucas horas já deixara sitiada a capital do país esteja preocupado com a
‘resistência’ de civis convocados para o serviço militar no curso do conflito.
Em meio à guerra midiática, de
informação e contrainformação, também a mensagem de que Vladimir Putin
responderá no Tribunal de Haia por genocídio e crimes de guerra na Ucrânia.
Ainda que não sejamos defensor de
guerras, intervenções e quejandos outros pausamos em torno do divulgado diante
desta ‘verdade’ levada aos quatro cantos: Putin respondendo por crimes de guerra
e genocídio em razão da intervenção na Ucrânia.
Sob tal viés – considerando o que significa genocídio e crimes de guerra – cabe lembrar ao caro e paciente leitor que tais ‘elementos do tipo’ (linguagem jurídico-penal) correspondem a algo mais além que simplesmente guerrear, mas à planejada destruição de populações ou povos. É caracterizado o genocídio como a deliberada intenção de exterminar “todos” os indivíduos de determinado grupo humano específico. Por tal razão não está afeto tão somente a tempos de guerra, também de paz. Assim, não é a guerra em si que define o espaço onde praticado o genocídio, mas a consciente intenção de extinguir, de eliminar, determinado grupo étnico, racial ou religioso.
Por outro lado, lamentável dizer que
há genocídios em outra dimensão, lentos e paulatinos (como os dos indígenas),
que de tão permanentes passaram a integrar a realidade ‘normal’.
E não seria exagero ver na fome
endêmica uma forma de genocídio por omissão dos povos.
O termo criado por volta de 1943 pelo jurista judeu polonês Raphael
Lemkin, que defendia a compreensão do fenômeno como imprescindível à
configuração de um ordenamento penal próprio. Ciganos e judeus tornaram-se
os exemplos clássicos de vítimas do nazismo. São um capítulo à parte dentro das
tragédias humanitárias que alimentam a definição para “crimes contra a
humanidade” capitulados no Art. 7º do Estatuto de Roma, tais como homicídio,
extermínio, escravidão, deportação ou transferência forçada de uma população, tortura.
Mas, não sós: genocídio armênio, em
Ruanda, cambojano, indígena, japonês, palestino etc. etc.
Os que falam hoje em prática genocida
dos outros não desejam que sejam reconhecidos como praticantes de tão nefanda e
inumana arma.
Deixemos a Noite de São Bartolomeu (1572) quando assassinados entre os dias 23 e 24 de agosto de 1572 entre 5 a 30.000 huguenotes (protestantes) a mando de Carlos IX da França, ou – mais recentemente – a matança que durante todo o século XIX atingiu os povos indígenas dos Estados Unidos ou, ainda, o que promoveram holandeses na África, em particular o apoio da Inglaterra na África do Sul sob a batuta do apartheid.
Mas, somos propensos a admitir não a
leitura dos fatos históricos, mas aquela posta diante de nós como se o fato em
si não existisse, tão somente aquele que desejamos ver. Cabe entender que o que
“desejamos ver”, em tempos de comunicação controlada, é o que nos chega pelo
sistema (jornais e revistas, radiodifusão, internet etc.).
Sob esse viés vivemos – sem sombra de dúvida – uma singular Era da Hipocrisia. A mentira, a falsidade, a dissimulação distorcendo a realidade/verdade.
Num primeiro instante não temos hoje praticado pela Rússia de Putin na Ucrânia nada diverso do que o praticado pelos Estados Unidos e aliados mais de uma vez nas últimas décadas mundo a fora. No fundo, a reação russa consumada na invasão da Ucrânia representa simplesmente o aprendizado – militares e/ou informativos – praticados/capitaneados pelos Estados Unidos na Líbia, Iraque, Iugoslávia, para citar os mais recentes.
No quesito mortandade de civis longe está do que fizeram os EUA em Hiroshima e Nagasaki (Japão), em Mai Lai (no Vietnã). A propósito de Mai Lai, em 16 de março de 1968, 504 civis desarmados – incluindo idosos, mulheres e crianças (17 delas grávidas dentre as 170), assassinados a sangue frio. “Em apenas quatro horas, mataram os animais, queimaram as choupanas, violaram, mutilaram e fuzilaram as mulheres e trucidaram homens e crianças”. E mais não morreram graças à corajosa e humanista intervenção do piloto Hugo Thompson Jr. (Wikipédia)
No âmbito do respeito aos direitos
humanos o que dizer da reação dos Estados Unidos em relação a Abu Dabi, ao
massacre de Mai Lai, ao uso de agente laranja sobre populações civis do Vietnã, ao centro de tortura instalado por eles em Guantânamo?
Quem anda apoiando bombardeios a territórios da Síria, da Somália e do
Iêmen?
Invasões e massacres têm sido a tônica nas últimas décadas, se não
quisermos percebê-los desde o final do século XIX, apenas para situá-los a
partir da Era Moderna. Oriente Médio, África, Cuba, Nicarágua, Honduras. Genocídios
e bombardeios são lugar comum.
Restando o Japão para a vitória final, as forças já recuando em todos os
fronts e tome-lhe bomba atômica. E mais outra. Não sobre as forças militares, mas
sobre a população civil (homens, mulheres e crianças).
Nada que justifique uma invasão em
desrespeito ao princípio da autodeterminação dos povos. O fato sob o contexto
do por que ocorrendo, já analisamos em torno do presente (geopolítica e hegemonicamente)
(aqui aqui aqui) e a defesa da não-violência (em todas as dimensões) pode ser
compreendida no recente “Eles não leem Tolstoi”, publicado no Diário Bahia.
Mas, o bom senso e a isenção – afirmamos peremptoriamente – não nos permitem enveredar pela mesmo trilhar que ‘discute’ a realidade a partir de ‘lados’, pautados nos bons (nós) e nos maus (os outros) quando as ações de uns e outros em muito idênticas.
Estádios europeus enchem-se de faixas
contrárias à invasão da Ucrânia. Louvável atitude! Mas, não vimos igual verve
em relação ao Iraque, Síria, assim como desconhecemos qualquer delas cobrando
respeito aos territórios e ao povo da Palestina ocupados por Israel. Muito
menos contrárias à guerra mais cruel: a fome que campeia e atinge mais de 800
milhões em dados referentes a 2001 mundo a fora (praticamente a população
reunida das Américas, do Norte, Central, do Sul e Caribe, estimada em pouco
mais de 900 milhões). Tragédia que mata 11 pessoas a cada minuto.
Em tempos de guerra (qualquer guerra)
a verdade é a versão dita por cada
lado.
A informação que nos chega, se a
acatamos literalmente sem a mínima reflexão à luz da contraposição e da verificação
da realidade, nos tornará “pobres de espírito”, assim o cremos. Não aqueles ‘pequeninos’
de que falou o Mestre, mas dos citados por Millôr Fernandes, no verbete ‘Paraíso’,
na Bíblia do Caos: “Se o Reino dos Céus é dos pobres de espírito, então, meu
Deus, já estamos no Paraíso”.
Genocidas posando de santos e
querubins. “Hipócritas e fariseus”... “sepulcros caiados”, verberaria Cristo
hoje, como o fez ao seu tempo (Mateus, 23;27).
Até porque, aqui e alhures,
hipocrisia acima de tudo e de todos é inconcebível.
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