segunda-feira, 31 de março de 2014

Assim caminhou

A consolidação do golpe civil/militar

Alguns ficaram vivos. Por pouco tempo, uns, como a baiana Nilda Cunha, ou o mineiro Frei Tito; outros, um pouco mais para testemunharem o que negam os torturadores. Centenas - enterrados em covas clandestinas, como os de Perus, ou lançados ao mar depois de desenterrados, como Rubens Paiva - aguardam sair da lista de 'desaparecidos'..

Nos 50 anos do "dia que durou 21 anos" alguns relatos e testemunhos do que fizeram com os que defenderam as instituições democráticas.

Certamente na mente de alguns quarteis ou nas ruas de "marchas" alienadas - ainda que neste século XXI - aclamarão a Idade Média. Aplaudirão o coronel reformado Paulo Malhães e suas declarações à Comissão da Verdade no Rio de Janeiro:

"Matei quantas pessoas quanto necessário". "A tortura é um meio". "Naquela época não existia DNA. Quando você vai desfazer de um corpo, quais partes podem determinar que é a pessoa? Arcada dentária e digitais. Então você quebrava os dentes. As mãos cortava daqui para cima". (Extraído de texto de Matheus Pichonelli, p. 48 e 50, da Carta Capital 793)

O martírio da jovem Nilda Carvalho Cunha, 17 anos, nos porões da ditadura

PODERIA TER SIDO SUA FILHA, SUA IRMÃ, SUA NAMORADA...
Nilda Carvalho Cunha foi presa na madrugada de 19 para 20 de agosto de 1971, no cerco montado ao apartamento onde morreu Iara Iavelberg. Foi levada para o Quartel do Barbalho e, depois, para a Base Aérea de Salvador. Sua prisão é confirmada no relatório da Operação Pajuçara, desencadeada para capturar ou eliminar o guerrilheiro Carlos Lamarca e seu grupo.
Nilda foi liberada no início de novembro do mesmo ano, profundamente debilitada em consequência das torturas sofridas. Morreu em 14 de novembro, com sintomas de cegueira e asfixia. Ela tinha acabado de completar 17 anos quando foi presa. Fazia o curso secundário e trabalhava como bancária na época em que passou a militar no MR-8 e a viver com Jaileno Sampaio.
[...] um pouco do que Nilda contou de sua prisão:
 – Você já ouviu falar de Fleury? Nilda empalideceu, perdia o controle diante daquele homem corpuloso. – Olha, minha filha, você vai cantar na minha mão, porque passarinhos mais velhos já cantaram. Não é você que vai ficar calada [...]. Dos que foram presos no apartamento do edifício Santa Terezinha, apenas Nilda Cunha e Jaileno Sampaio ficaram no Quartel do Barbalho. Ela, aos 17 anos, ele, com 18. – Mas eu não sei quem é o senhor... – Eu matei Marighella. Ela entendeu e foi perdendo o controle. Ele completava: – Vou acabar com essa sua beleza – e alisava o rosto dela. Ali estava começando o suplício de Nilda. Eram ameaças seguidas, principalmente as do major Nilton de Albuquerque Cerqueira. Ela ouvia gritos dos torturados, do próprio Jaileno, seu companheiro, e se aterrorizava com aquela ameaça de violência num lugar deserto. Naquele mesmo dia vendaram-lhe os olhos e ela se viu numa sala diferente quando pôde abri-los. Bem junto dela estava um cadáver de mulher: era Iara, com uma mancha roxa no peito, e a obrigaram a tocar naquele corpo frio. No início de novembro, decidem libertá-la. [...] Na saída, descendo as escadas, ela grita: – Minha mãe, me segure que estou ficando cega. Foi levada num táxi, chorando, sentindo-se sufocada, não conseguia respirar. Daí para a frente foi perdendo o equilíbrio: depressões constantes, cegueiras repentinas, às vezes um riso desesperado, o olhar perdido. Não dormia, tinha medo de morrer dormindo, chorava e desmaiava. – Eles me acabaram, repetia sempre [...].
 Em 4 de novembro, Nilda foi internada na clínica Amepe, em Salvador [...] No mesmo dia, os enfermeiros tentaram evitar a entrada do major Nilton de Albuquerque Cerqueira em seu quarto de hospital, mas não conseguiram. Na presença da mãe, ele ameaçou Nilda, disse que parasse com suas frescuras, senão voltaria para o lugar que sabia bem qual era. O estado de Nilda se agravou, e ela foi transferida para o sanatório Bahia, onde faleceu, em 14 de novembro. No seu prontuário, constava que não comia, via pessoas dentro do quarto, sempre homens, soldados, e repetia incessantemente que ia morrer, que estava ficando roxa. A causa da morte nunca foi conhecida. O atestado de óbito diz: “edema cerebral a esclarecer”.
(Trecho do livro Direito à memória e à verdade: Luta, substantivo feminino Tatiana Merlino – São Paulo: Editora Caros Amigos, 2010.)
Nilda não foi violentada apenas por seus torturados. Foi violentada pelos donos dos meios de comunicação que apoiaram e sustentaram o regime militar. Foi violentada também por todos aqueles empresários e políticos reacionários que financiaram a repressão e lucraram com seu sangue, com suas lágrimas e com sua dor.
Nilda poderia ter sido uma adolescente comum, feliz, cheia de sonhos. Mas a ganância, o egoísmo e a brutalidade de uma elite privilegiada e sem compromisso com nosso país, deram esse trágico fim a sua vida. Esta elite jogou milhares de jovens na clandestinidade, os torturou e os matou.
Nilda ainda vive em cada um de nós, que acreditamos e lutamos pelos direitos humanos, pela vida, pela justiça e pela igualdade social. Mas ela continua sendo torturada nos dias de hoje. Ela está sendo torturada pela mídia que é contra os julgamentos dos criminosos da ditadura militar. E ela continuará sendo torturada enquanto políticos e empresários que apoiaram esse regime bárbaro continuarem livres. Ela foi torturada pelos atuais ministros do Supremo Tribunal Federal que recusaram o pedido de condenação dos praticantes de violações contra os direitos humanos nos porões do exército.
Não deixe que aqueles que tentaram apagar Nilda da História tenham êxito. Nosso país somente terá democracia plena quando acertar as contas com seu passado. Apóie a Comissão da Verdade e Reconciliação que irá julgar os crimes praticados pelos órgãos de repressão do regime militar. Crimes contra a humanidade não prescrevem!
________________________

Os sinais da tortura em Vera Magalhães

Uma fotografia inédita da ex-militante de esquerda Vera Sílvia Magalhães (1948-2007), tirada em 1970, revela os efeitos da tortura a que foi submetida em um prédio do Exército no Rio de Janeiro.
Vera, que disse ter sido submetida a tortura durante vários dias, aparece na imagem sem conseguir ficar em pé, tendo que ser amparada pelo também prisioneiro Cid Benjamin. A foto, obtida pela Folha, está sob a guarda do Arquivo Nacional em Brasília.
Militantes da organização política de resistência à ditadura militar MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro), Cid e Vera participaram do sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick em 1969, uma das mais importantes ações urbanas da esquerda armada.
"Não tinha visto essa foto. Eu tinha que segurá-la porque, naqueles dias, ela não conseguia se sustentar em pé, devido às torturas", contou Cid.
Em outra imagem, essa publicada pelos jornais na época, Vera foi fotografada numa cadeira, diferentemente dos demais presos. As fotografias foram tiradas momentos antes de o grupo ter sido trocado pelo embaixador alemão Ehrenfried Von Holleben, também sequestrado por forças de resistência à ditadura.
Do Rio de Janeiro, o grupo seguiu para a Argélia. Parte regressou clandestina ao Brasil, e alguns acabaram mortos pela ditadura militar. No exílio, Vera estudou sociologia na França. Retornou ao Brasil em 1979, após a aprovação da Lei da Anistia.
Torturas
Em depoimento prestado à Câmara dos Deputados em 2003, Vera confirmou que as torturas a impediram de ficar em pé pouco antes de ser levada para Argélia.
Ainda no depoimento à Câmara, Vera classificou a tortura que sofreu como "inteiramente desmesurada". "Fui a única torturada na Sexta-Feira Santa na Polícia do Exército. E eles me disseram: 'Você vai ser torturada como homem, como Jesus Cristo'", contou Vera.
Ela disse que "nunca mais se recuperou fisicamente". "Para uma mulher, acho que exageraram mesmo. Fiquei cheia de sequelas, cheia de problemas." Vera morreu em 2007, vítima de câncer.
_____________________

O trabalho para a identificação das ossadas de Perus

Para identificar ossadas de Perus, SP cria 1º centro de antropologia forense do Brasil
Articulação da prefeitura de São Paulo com a Secretaria de Direitos Humanos do governo federal criou as bases para o primeiro centro desse tipo no Brasil. Outros desaparecidos poderão ser localizadospor Diego Sartorato, da RBA publicado 28/03/2014 11:54, última modificação 28/03/2014 Perus01.jpg
Ossadas de Perus na Unicamp em dezembro de 1990, onde foram analisadas pela primeira vez
São Paulo – As secretarias de Direitos Humanos da prefeitura de São Paulo e do governo federal, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (Cemdp) e a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) assinaram nesta semana o protocolo de intenções para a criação do primeiro centro de antropologia forense do Brasil, que terá como missão a identificação de militantes assassinados durante a luta contra a ditadura  (1964-1985) entre as mais de mil ossadas encontradas em uma vala comum no cemitério Dom Bosco, no bairro de Perus, em 1990.
Depois de instalado, o grupo poderá também atuar na identificação de restos mortais em outros locais onde o aparelho repressivo militar ocultou corpos de presos políticos mortos pelo regime. O relatório final da Comissão Nacional da Verdade, por exemplo, poderá indicar novos locais onde corpos foram enterrados clandestinamente e há necessidade de identificação de ossadas.
"Em primeiro lugar, trata-se de um reconhecimento de que o Estado, na figura do município, do governo estadual ou federal, ainda deve muitos esclarecimentos para a sociedade e em particular para os familiares de mortos e desaparecidos políticos vítimas da ditadura. A prefeita Luiza Erundina, com muita coragem, há 20 anos, mandou abrir as valas comuns de Perus onde havia 1.049 ossadas, e muito provavelmente há muitos desaparecidos entre elas", afirma o secretário municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo, Rogério Sottili. "Mas, desde então, não se deu nenhum passo adiante, não se tomou nenhuma ação no sentido de buscar a identidade dessas ossadas. O prefeito Fernando Haddad, ao me passar a tarefa de comandar a secretaria de Direitos Humanos, nomeou essa como uma das prioridades da gestão."
A negociação teve início já no primeiro ano da gestão Haddad (PT), mas foi necessário amarrar as condições institucionais para a realização dos trabalhos e, também, superar as deficiências técnicas brasileiras: não há, hoje, produção científica suficiente nesse ramo no país para a realização de trabalho tão complexo. "Vamos contar com o apoio de especialistas da Argentina e do Peru, que têm as técnicas mais avançadas, para atualizarmos nosso conhecimento nessa área. Foi um pedido dos familiares, inclusive, que sabem do expertise nesses países. Inicialmente, o governo estadual nos havia oferecido as dependências do Instituto Médico Legal (IML) para esse trabalho, mas a Unifesp demonstrou muito interesse em abrir esse centro de estudos e mantê-lo", conta Sottili.
Na Argentina, o Estado reconhece oficialmente 13 mil desaparecidos da ditadura argentina (1976-1983), embora movimentos sociais, como as Mães da Praça de Maio, estimem que até 30 mil pessoas tenham sido sequestradas e possivelmente assassinadas pelo regime. O número é próximo do estimado pelo governo do Peru para os mortos e desaparecidos durante os confrontos entre Estado e o grupo maoísta Sendero Luminoso, que levou a disputa de territórios e intensos conflitos armados nas décadas de 1980 e 1990.
Não há estimativa de prazo para a conclusão da identificação das ossadas, mas o trabalho de depuração das ossadas já começou. Com a coordenação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, o grupo de trabalho irá analisar as ossadas levando em conta características como sexo e idade de desaparecidos políticos, bem como a análise das informações disponíveis sobre as vítimas da ditadura no estado para avaliar quais poderiam estar na vala comum de Perus. "Será um trabalho longo, mas pelo qual temos de ter grande cuidado e responsabilidade. É muito importante reforçar que essas famílias já ouviram muitas promessas de que algo seria feito para encontrar seus desaparecidos, e já se decepcionaram muitas vezes. Esta não será mais uma", frisa Sottili.
Bilhete Único
A prefeitura de São Paulo anunciou também a criação de uma edição especial do Bilhete Único com a logomarca dos 50 anos do golpe militar. Serão 15 mil unidades assinadas pelo artista Elifas Andreato com o objetivo de despertar a curiosidade dos paulistanos sobre a ditadura. "O bilhete será permanente, poderá ser recarregado e continuará sendo útil. É uma forma de instigar a curiosidade das pessoas sobre esse período histórico, para que elas busquem mais informações sobre o que ocorreu. Entre as propostas de desenho do Elifas, havia imagens mais fortes, mas preferimos o logotipo para evitar que a reação fosse o choque. O que queremos é mais curiosidade sobre o assunto", destaca Sottili. O Bilhete Único especial poderá ser adquirido por meio de uma recarga de R$ 15 em passagens.

Nenhum comentário:

Postar um comentário